Ensaio

Esconderijo perfeito: parte 1

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Esconderijo perfeito: parte 1

 

Um lugar acima de qualquer suspeita protege de vazamento os intocáveis segredos da desigualdade, a variante verde-amarela da perversidade social. Ninguém desconfia do esconderijo perfeito, frequentado assiduamente por chusmas de pessoas irrequietas e bisbilhoteiras que a si mesmos se chamam envaidecidamente de jornalistas. A inusitada atividade lhes concede supostos dons de clarividência no destrinchamento do mistério de todos os calibres, menos para as causas e consequências da desigualdade. 

São homens e mulheres, agora mais elas do que eles, de juramentada fidelidade aos preceitos éticos da verdade e da justiça na narrativa da realidade. Gente empenhada em atender às demandas de interesse público em benefício do bem comum. No fundo contam pedaços peculiares de histórias, como num quebra-cabeça incompleto. Corporificam a mão de obra especializada no relato cotidiano de contingências incomuns de um empreendimento privado de alta relevância, a comunicação da sociedade consigo mesma e com outras.

Obviamente, precisam mover-se em liberdade e segurança, de que pouco adiantam se não dispuserem de autonomia na garimpagem e lapidação das pedras preciosas da verdade. 

NECA DE PITIBIRIBAS 

De propósito ou não, a narrativa influi no que a sociedade sabe e pensa de si, a ponto de agir ou reagir em função de descobertas inesperadas. Do mesmo modo, deixa de agir ou reagir na falta ou falseamento da narrativa. Num e noutro caso, a atitude da sociedade depende da fidelidade da narrativa ao interesse público e ao bem comum, de responsabilidade direta do narrador e indireta do empreendedor, o tutor da integridade da informação. É algo estranhamente não assuntado num país de gente que não sabe e não pensa o que precisa saber e pensar.

Não podia ser diferente, os narradores cultivam especial curiosidade em torno das causas da desigualdade, os incontáveis procedimentos, legais e extralegais, de apropriação desproporcional de recursos e vantagens que, por justiça, deveriam ser de distribuição equitativa.

Neca de pitibiribas. Causas e consequências da desigualdade extrema não figuram entre as preocupações da comunicação social, sob o pretexto de que não são de interesse púbico nem prejudicam o bem comum.

Em atenção aos inúmeros negócios colaterais, os empreendedores priorizam o incentivo ao consumo de bens físicos e também dos simbólicos, em aliança de unha e carne com a propaganda comercial, cuja função oculta é a de produzir a aparência de igualdade social, ao custo de inesgotáveis prestações a juro zero.

A aversão dos empreendedores à curiosidade sobre a desigualdade equipara a redação ao shopping center na rejeição a pobres. A lógica é a mesma. Ambos ambicionam lidar exclusivamente com clientela de notório poder aquisitivo, gente bonita e elegante. Para todos os efeitos, só o consumidor de primeira classe detém os direitos e prerrogativas da cidadania. À distância, redação e shopping atuam sincronizadamente para satisfazer privilégios que definem como de interesse público. Por isso, posam de oásis luxuriantes a salvo das ameaças do deserto urbano em volta. Pobre não entra para não ser saído. O shopping se socorre das regalias da livre iniciativa, a redação apela para os subterfúgios da livre expressão, como justificativa à pobrefobia.  

CÓDIGO ESTÉTICO DE EXCLUSÃO  

Assim como o shopping seleciona a clientela pela aparência, a redação se vale de regras informais para rejeitar informações tidas como indesejáveis. Sem necessidade de uma só linha escrita, mas sabido de cor e salteado, um código estético racista, étnica e socialmente, unifica a escolha da informação por parte dos empreendimentos de comunicação, os conglomerados de jornal, rádio e tevê.

O eixo de interesse das informações selecionadas tem o objetivo, na prática, de tapar o buraco dos indesejáveis. Uma linha editorial de desinformação corre paralelamente à de informação e, em determinadas situações, é difícil saber a mais importante. Na álgebra da informação, mais com mais dá menos. Comunicação rima com desinformação.

Além da cor da pele e origem social, são quesitos cruciais da discriminação dos protagonistas da informação a renda, profissão, grau de instrução, crenças, convicções, fala e, claro, aparência. Apresentadores, colaboradores esporádicos e colunistas são escolhidos a dedo para ditar os padrões obrigatórios de bom senso e elegância e carimbar breguice a esmo.

Exceções confirmam a regra na escalação rigorosa do time que garante a coesão ideológica dos operadores do código, bem como dos usuários. O tráfico de opinião não se configura como crime na legislação penal.

Na contramão da evolução da sociedade, a agenda jornalística é pilotada por um sistema de cotas ao avesso. Haveria outro motivo para a oposição unânime da grande mídia à inclusão de alunos afro nas universidades públicas? O jornalismo de cotas para ricos não tem como escapar da demonização dos partidos de esquerda e da pré-fabricação de totens eleitorais da direita da cepa de Jânio, Collor e Bolsonaro.  

INFORMAÇÃO SABOROSA, DESINFORMAÇÃO SUCULENTA

O caráter institucional chapa branca, notarial, cumpre a função extra de vitaminar a hierarquia inflexível da sociedade. A informação saborosa abre caminho para a desinformação suculenta. O subentendido flutua nas entrelinhas. O não escrito vale como prescrito.

O jornalismo gráfico desvia sua energia em tecer a pauta política de direita das outras mídias. Nos intervalos das eleições, concentra-se em desenhar o retrato falado dos pretensos inimigos públicos. Depois dos sem-terra, é a vez dos funcionários públicos.  

CUMPLICIDADE ESCABROSA 

O oligopólio que monopoliza a ferro e fogo a fala midiática reage histericamente a qualquer tentativa de democratização da informação. Por isso, assiste catatônico o tsunami das redes sociais em que cada um é dono de sua palavra. Desesperado, precisa ocupar novos espaços no jogo pesado de manipulação do imaginário coletivo. Sem esse esforço não consegue desencadear ondas massivas de subjetividade de encomenda.

No jogo limpo, não tem como produzir falsos consensos, tampouco opinião pública fajuta no lugar da vontade pública.

Tatuar os pobres com o estigma da inferioridade requer mais do que prática e habilidade na tessitura da teia de desinformação. Implica em ter consciência da cumplicidade na condenação de milhões a uma vida sem dignidade do berço ao túmulo.

É o triste papel que o dito grande jornalismo aceita desempenhar, de avalista da desigualdade extrema. Cabe-lhe moldar e impulsionar os argumentos de legitimação do colonialismo caseiro, cópia grotesca do modelo original.

O jornalismo pós-realidade considera imutáveis as causas da desigualdade e irreversíveis as consequências. Naturaliza a pobreza para ter o pretexto de criminalizar os pobres em programas policialescos de rádio e tevê. Normaliza as anormalidades, como a devastação da natureza, a última chance de nos unirmos em defesa do bem comum.

Na ânsia de desinformar, o jornalismo pós-realidade aposta todas as fichas no colapso da identidade brasileira. Sem constrangimentos, empenha-se em dar sentido ao próximo capítulo da trama de apagamento do sentimento de brasilidade. Já chegou ao estágio torpe de afirmar, escancarada e descaradamente, que o brasileiro não existe mais como povo, a não ser como uma mega quadrilha de ladrões e trambiqueiros.

O jornalismo pós-realidade é concebido para gerar e tensionar a narrativa de negação da realidade, com o propósito de capturar e imobilizar as pulsões de inteligência e sensibilidade, individuais ou coletivas, de um dos povos mais criativos do planeta. Há algo mais terraplanista do que descrever a sociedade múltipla, disforme e fraturada como una, uniforme e homogênea?

Neste momento tenebroso em que a demofobia asfixia a vocação solidarista do jornalismo, abrem-se as cortinas do santuário secreto, o esconderijo perfeito das causas e consequências da desigualdade social. Tudo com vocês. 

  • Este ensaio tem 3 partes. Continue sua leitura em Parte 2.

Carlos Alberto Kolecza é jornalista autodidata. Ex-A Platéia, Folha Popular, Última Hora, Jornal do Dia, Zero Hora, Jornal do Brasil, UPI, Rádio Gaúcha, Folha da Manhã, Jornal de Santa Catarina, Denúncia, Sul e Porém, Assessoria de Imprensa do PDT, Supervisão de Imprensa da Assembleia Legislativa RS, Secretário do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Porto Alegre.  

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