Ensaio

História de uma foto: a invasão das mulheres

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História de uma foto: a invasão das mulheres Foto: Luiz Eduardo Achutti

com depoimentos de Luiz Eduardo Achutti 

As eleições municipais neste 2020 em Porto Alegre colocam no centro de nossas preocupações a discussão sobre a participação feminina e nos fazem enfrentar as históricas e gritantes formas de exclusão de mulheres e negros e negras, de grupos que nem cabe nomear como minorias. O nosso senso comum já não consegue ser indiferente à obscena imagem de exclusão social que a nós se impõe em pleno século 21. Damo-nos conta que nem mesmo a ideia de que uma minoritária representação na vida política ou uma minoritária participação desses grupos aos bens coletivos (acesso à educação, à informação, à saúde, à infraestrutura) consegue nos dar algum alento pois – e é preciso insistir – mulheres, negros e negras, assim como pobres, não são minorias.

Conversávamos sobre essas coisas – exclusão das mulheres e lutas para superá-las –, e a foto icônica de Achutti registrando a invasão da Casa dos Estudantes da UFRGS (a CEU), na avenida João Pessoa, em frente à Faculdade de Economia, em abril de 1980, se impôs. Aquela imagem não dizia mais respeito apenas àquele evento, ocorrido quarenta anos atrás, mas a todas as lutas por acesso a lugares que são vedados a alguns, aos que não são homens, aos que não são brancos, aos que não são heterossexuais, aos que não são parte da elite ou não usufruem de qualquer outro privilégio que se estabeleça como condição de participação e critério estruturante da vida nossa de cada dia. Mas a foto em si, em sua muda estética, ensurdece com o burburinho da festa, dos sorrisos, da chuva de papéis picados, e da vitória que enuncia: as mulheres entraram! Pequena vitória: subiram pelas escadas até o último andar, onde uma assembleia iria acontecer. Andar por andar, a multidão de mulheres, que incluía estudantes, mães, irmãs e até avós de moradores da Casa, era recebida com salvas de palmas, refrões e cartazes de boas-vindas. Grande vitória: as mulheres penetraram em um espaço que lhes era negado. Através da imagem escutamos o grito forte, uníssimo e cadenciado daquele dia enquanto subíamos as escadas da CEU: “Mulher não é boneca, mulher não é feijão, mulher luta contra a repressão!”  

Imagem-testemunho de uma festa de conquista que nos remeteu à história da foto. Toda imagem traz consigo uma memória. 

“Lembro – diz Achutti – que no dia anterior tu me disseste que no dia seguinte as mulheres iriam invadir a CEU, e perguntaste se eu não queria ir para bater umas fotos.  Eu tinha vinte e um anos de idade, ainda morando na casa dos pais… Eu não sabia de nada, não havia participado de nada. Na época acho que era ator, já nem lembro, se ensaiava ou estava em uma peça em cartaz, estava iniciando o Curso de Ciências Sociais na UFRGS, no Campus do Vale, e tratando de me dedicar também às minhas fotos. Tinha tido alguma participação no movimento estudantil, quando ocorria algum evento de maior proporção. Não fazia muito, alguns cursos da UFRGS tinham sido deslocados para o Campus do Vale, que carecia de infra-estrutrutura, e brigávamos pra ter mais linhas de ônibus e pelo curso noturno.  Criamos o jornalzinho Band-aid Infecto, não é? Fazíamos crítica com bom humor, sem a sisudez dos diretórios acadêmicos. Fazíamos alguma política e muita festa. A política era velada e a festa pública. Queríamos a abertura política, democracia, dar um basta nos já quase vinte anos de ditadura. A ditadura tinha quase a minha idade.  O encontro da “invasão das mulheres” seria no dia seguinte, acho que cedo demais para mim, seria no bar da Engenharia o encontro para articular os detalhes e pintar cartazes. Fui, estava com muito medo, mas fui”. 

Era meu último ano nas Ciências Sociais. Um grupo de estudantes, mulheres, próximas ao coletivo Liberta, que discutia demandas de emancipação das mulheres, lia Simone de Beauvoir e tinha uma ainda tímida agenda feminista. A UNE, fechada pela ditadura, tentava se reorganizar, e promessas de uma abertura política “lenta e gradual” vinham da própria junta militar.  1980 é ano da fundação do PT; eu tinha me mobilizado nesse contexto. Era também o momento do ressurgimento do movimento estudantil, e a prioridade dos centros acadêmicos e do DCE era a redemocratização. A liderança estudantil, majoritariamente masculina, acreditava que as demandas das mulheres poderiam ser adiadas para depois da reconquista do estado democrático de direito.

Diz o Achutti: “Sim, vocês ficaram se organizando no bar da Engenharia e monitorando a presença da Brigada. Quando cheguei, a João Pessoa já estava cheia de brigadianos.  Tudo estava coordenado com os guris moradores da Casa.  Isso só fui saber muitos anos depois, tanto que, naquele dia, foi o efeito da chuva de papéis picados que tanto me surpreendeu: aquilo foi mágico para mim! Eu quis captar aquela imagem.  Hora de atravessar a rua e enfrentar a Brigada. Achei que ficaria protegido se ficasse atrás de vocês, atrás das mulheres. Foi o que fiz. Vocês chegaram, carregavam uma grande faixa e entraram na Casa sob os aplausos e papéis picados que vinham das sacadas. Eu fiquei olhando para vocês meio perdido, sem saber o que iria acontecer, quando sobre mim caíam como pétalas os pedacinhos de jornais de todos os tamanhos. Ato reflexo, fui para a borda da calçada e olhei para cima. Putz, como fotografar aquilo com uma lente normal, que fechava o quadro no primeiro andar, para pegar o todo, porém sem ideia de perspectiva? Solução: tratei de compor a foto na parte de baixo, o primeiro andar do prédio, meu primeiro plano, com as pessoas visíveis, e a parte de cima da foto coloquei os vários fios elétricos dos postes no meio, e no todo aquela imensidão de papéis picados de todos os tipos e distâncias, o que também lhes dava diferentes tamanhos. Fiz duas ou três fotos: uma torta, outra meio sem foco e uma em que as mãos dos estudantes na sacada estão no primeiro plano à esquerda de quem olha.  Depois, ainda temeroso, decidi subir. Sabia que todos iriam até o terraço para uma assembleia dos estudantes. Meio fotógrafo egoísta, fui ver os papéis picados do ângulo inverso, todos que estavam no chão e que compunham uma espécie de exótico tapete com falhas. Mais duas fotos e fui embora. Eu morava na casa da minha mãe e não tinha o alcance da situação, e temia que a Brigada subisse. A foto, com a chuva de papéis picados, guris e gurias nas sacadas do prédio, que marcava a conquista da casa de estudantes da UFRGS pelas mulheres, fixou-se como um ícone dos anos finais da ditadura em Porto Alegre”.

De fato, naquele dia 21 de abril de 1980, conforme o combinado, um grupo grande de estudantes se encontrou cedo no bar e no CEUE, o Centro de Estudantes Universitários de Engenharia, para pintar cartazes e organizar a invasão. No dia anterior a UFRGS havia publicado uma “nota à imprensa” no jornal Correio do Povo, assinada pelo reitor, avisando que não permitiria a entrada de mulheres na casa. A nota era um alerta público da determinação da reitoria de permanecer em sua posição de não permitir a visita de mulheres à CEU, e era o corolário de várias tentativas feitas pela comissão de moradores da CEU para que houvesse mudança do regimento interno da Casa nesse sentido. Mesmo mães, avós, ou irmãs não podiam visitar os moradores, até mesmo na eventualidade de uma enfermidade. A misógina administração da universidade acreditava que a condição feminina trouxesse consigo o sexo, a ameaça, o risco e a desordem. O reitor, Homero Jobim, em reunião anterior com a comissão de moradores da casa, tinha sentenciado: “Se quiserem transar vão para a Redenção”. Como se a presença feminina em si significasse a liberação desenfreada da sexualidade – afinal, na perspectiva daquele senhor, para o que mais poderiam servir as mulheres? 

Depois de repetidas negativas da reitoria para que visitas femininas fossem permitidas − o reitor enquanto isso reafirmava sua posição autocrática: “Enquanto estivesse no cargo não iria permitir que mulheres entrassem na Casa” –, uma assembleia de moradores da casa tomou a decisão de que, independentemente da proibição da reitoria, íamos marcar uma visita pública de mulheres à CEU. Um panfleto mimeografado foi amplamente distribuído na universidade e explicava resolução da assembleia dos moradores da Casa, que se posicionava totalmente contrária à decisão da reitoria de manter um regimento arcaico e repressivo que proibia a entrada de mulheres. O panfleto dizia que os moradores consideravam essa medida uma visão maniqueísta da mulher: “Fala-se em mulher, necessariamente fala-se em cama. Não sabemos o porquê de não termos em nossa própria casa a mesma convivência entre homens e mulheres que, por exemplo, numa sala de aula”. O panfleto era um convite a todas as mulheres a visitar a Casa no dia 29 de abril de 1980, em uma manifestação de desobediência. O texto concluía com três palavras de ordem: “Livre acesso feminino à CEU”; “Contra a discriminação Sexual”, “Pelo fim da repressão aos moradores”. O clima geral no país, no início dos anos 80, era o de dar um basta de ditadura, “Abaixo a repressão” era a palavra de ordem do momento e era o anseio de todos, até mesmo dos liberais de sempre, que tinham até então apoiado e participado do golpe militar. A história nos mostra que desejos nada liberais ocorrem aos ditos personagens liberais sempre que governos democraticamente eleitos eventualmente não se coadunam com suas prioridades e com seus projetos de manutenção de privilégios. 

Detalhe do panfleto distribuído na universidade

Naquele dia de abril, o 29, a casa dos estudantes da UFRGS amanheceu com grandes faixas nas sacadas de cada andar do prédio dando boas-vindas às mulheres. Uma das faixas dizia: “Abram as grades desta prisão”. A invasão da casa estava marcada para a hora do almoço, horário em que naturalmente haveria a concentração dos estudantes na fila do RU, o restaurante universitário. Enquanto isso, desde cedo, no prédio do CEU, um grupo grande de estudantes, sobretudo mulheres, incluindo mães e avós dos moradores que tinham vindo do interior do estado, se ocupava pintando faixas e cartazes. 

Lembro que estava orgulhosa do trocadilho que fiz em um dos cartazes que pintei, onde escrevi: “O CEU é também das mulheres”.  Tão ocupadas e animadas estávamos, que víamos com indiferença a crescente chegada de camburões e a presença da Brigada Militar, que ia armando barreiras na movimentada avenida João Pessoa, que separava o prédio antigo da Engenharia da CEU. A presença dos policiais militares era apenas um detalhe já corriqueiro na paisagem urbana daqueles tempos de repressão e violência. A reitoria ousaria permitir a Brigada dentro do campus da universidade? Como atravessaríamos a rua?  A cavalaria da Brigada viria também? Os guris já tinham providenciado as bolinhas de gude? 

Na mobilização no CEUE a divisão sexual do trabalho era clara: nós, as gurias, pintávamos cartazes e acalmávamos as angustiadas e atordoadas mães e avós dos moradores que tinham sido convocadas a vir visitá-los naquele dia. Eles, os guris, martelavam faixas e cartazes e eram responsáveis pela logística e segurança. Para onde correríamos? A Casa seria uma grande brete sem saídas…  Esperávamos o pior, mas há momentos em que enfrentar o pior se faz necessário, e a concentração de pessoas no entorno aumentava a cada minuto. Soube-se então que, naquela mesma manhã, no jornal Correio do Povo, havia saído outra nota do reitor que, distinta da nota do dia anterior, agora dizia que uma visita pública à CEU, permitindo a presença de mulheres, estava sendo oficialmente autorizada naquele dia e no dia seguinte.  A notícia passava de boca em boca em um rápido zum-zum. Percebeu-se então que a nova nota era uma “manobra de esvaziamento da reitoria” e também como uma “vitória das massas” e que a reitoria rendia-se ao inevitável. 

A multidão, sobretudo mulheres, aglomerava-se no entorno da Escola de Engenharia, no pátio do Direito e em frente à Casa. Uns tinham vindo comovidos pelo direito dos moradores receberem visitas; outros movidos pelos direitos das mulheres em terem as mesmas condições dos estudantes homens e igual direito à moradia estudantil; outros porque não deveria haver espaços em uma universidade pública que excluísse mulheres; outros ainda para soltar aquele grito de “Abaixo a repressão” já contido por tanto anos e dar um basta ao autoritarismo, ou ainda porque era hora do movimento estudantil ter voz… E muitos e muitas estavam lá por todos esses motivos juntos. 

Rapidamente pintamos muitos outros cartazes que explicitavam a demanda de acesso permanente das mulheres à casa dos estudantes.  Novos cartazes feitos na pressa diziam: “Acesso feminino livre”. Já não se falava mais em visita, mas no direito das estudantes à moradia. “Dois dias?” Perguntava um cartaz.  Em outro, grande lia-se “Dois dias? Livre acesso feminino à CEU”. “Direitos iguais: moradia estudantil feminina”. Ditos, escritos, gritos, palavras de ordem e panfletos foram tomando conta da multidão e daquele espaço, da rua e da Casa. As mulheres que entravam na Casa iam chegando às sacadas do prédio e saudavam a multidão ainda na avenida.  A CEU não comportava a multidão que ali estava. Configurou-se uma massa em um número talvez 100 vezes maior do que o número de brigadianos ali presentes e, de repente, eles estavam ali segurando o trânsito para nos dar passagem. Foi-se o medo, ficou a festa. 

Dois dias? Viemos para ficar. Com os papéis picados, a cidade inteira nos saudava. Afinal, mulher não é boneca, mulher não é feijão, mulher luta contra a repressão.   


Ondina Fachel Leal é antropóloga e foi professora titular da UFRGS.  Possui PhD em Antropologia Social (University of California, Berkeley, 1989), com tese sobre cultura e identidade gaúcha.  Dedicou-se também à área de antropologia médica, com estágio de Pós-Doc na Havard Medical School. Escreveu A Leitura Social da Novela das Oito (1986) e tem pesquisas e publicações nas áreas de cultura; sexualidade e saúde reprodutiva; e propriedade intelectual. 

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