Ensaio

James Joyce é ali na esquina

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James Joyce é ali na esquina

Sempre achei que há muita semelhança entre a leitura e a caminhada. As pernas que nos conduzem pela rua e nos fazem decifrar as mais diversas paisagens são como os nossos olhos percorrendo uma página: lê-se a cidade da mesma forma que se acompanha o desenrolar de uma narrativa, passo a passo, quadra a quadra, capítulo a capítulo, rua a rua. Afinal de contas, a experiência urbana é carregada de experiências multissensoriais e fragmentadas, tão comuns à leitura. 

Durante boa parte de minha vida cultivei o hábito de varar a pé enormes distâncias da cidade. Não digo que essa prática não tenha se desenvolvido por grandes dificuldades financeiras pelas quais passei durante o final da minha adolescência, mas também é verdade que a ideia de me deslocar por uma imensa distância usando como combustível somente a força das minhas pernas sempre me fascinou. Foi assim que eu me acostumei a, por exemplo, ir a pé do bairro São João ao Mercado Público, na maior tranquilidade. Uma hora de caminhada não me parecia nada demais. No início da minha vida profissional, eu me deslocava a pé até os cursinhos do Centro para dar aula. Pelo caminho, ouvia música, bolava enredos de romances que eu nunca escreveria, tinha ideias de contos que se perderiam no ritmo dos passos. Eu acompanhava os detalhes dos muros, tentava adivinhar que histórias se escondiam por trás daquelas janelas dos prédios na Cristóvão Colombo em uma quarta-feira às quatro da tarde, pensava na quantidade de pessoas que já tinham pisado nas mesmas pedras que eu. É claro que os meus destinos foram vários, de ida e volta, a partir do bairro São João: Iguatemi, Praia de Belas, Redenção, Parcão e, até mesmo, Barra Shopping, meu recorde de caminhada. 

Não foi em minha graduação em Letras a primeira vez que ouvi falar em James Joyce. Em algum momento de minha vida de leitor, provavelmente durante a adolescência, devo ter manuseado Ulisses em alguma livraria e ficado impressionado com o seu peso. No entanto, foi na faculdade de Letras que o nome de Joyce se fez cada vez mais presente. Com o tempo, aprendi a respeitar e admirar, de longe, Ulisses. Fosse pela fala de alguns professores, fosse pela tentativa frustrada de leitura de alguns colegas, a obra me parecia algo impossível de ser lido. Teimoso, no entanto, um dia fui à biblioteca e peguei uma velha edição, na pioneira tradução de Antônio Houaiss. Li os dois primeiros episódios e… não entendi nada. Parecia uma perda enorme de tempo eu tentar desbravar tantas outras centenas de páginas. Mantive o meu respeito. Mais de longe ainda. 

Mas algo aconteceu em 2022. Tive acesso a tantos artigos, podcasts, postagens em redes sociais sobre Ulisses, que completa cem anos de vida agora, que acabei me convencendo que estava na hora de transformar o meu conhecimento teórico e historiográfico sobre a importância de Ulisses na literatura do século XX em experiência de leitura. Motivado, comprei a edição da Companhia das Letras, com tradução de Caetano Galindo. Para diminuir ao mínimo as minhas possibilidades de desistência, também comprei Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao Ulisses de James Joyce, também de Galindo. Abertos os dois livros, um ao lado do outro, lancei-me à leitura.

E o que eu encontrei foi um outro livro, muito diferente daquele que tentei ler em minha graduação. Com a ajuda extremamente pedagógica do guia, o que se desenrolava à minha frente era uma estética verbal que eu nunca tinha lido, com um imenso peso semântico a cada frase. Complexo? Sim. Desafiador? Muito. Tratava-se de uma obra que, sem dúvida, se abria em inúmeras camadas de sentido: de onde quer que se olhe, Ulisses é um caleidoscópio, polissemias, intertextos, interpretações. Mas, sim, é possível lê-lo. 

A jornada (anti)épica de Leopold Bloom pelas ruas de Dublin tem como objetivo principal inverter a lógica idealizada da tradição clássica e assentá-la no mais prosaico do cotidiano da cidade grande e, dessa forma, dar um caráter também épico aos anseios de um homem urbano comum. A dificuldade que a leitura de Ulisses oferece a todos os seus leitores decorre, portanto, das multiexperiências que a obra aspira a representar, inclusive nos seus aspectos mais formais. Em um dos meus trechos preferidos, Bloom explicita o sentimento da união do mundo clássico ao prosaico, ao se questionar se as estátuas têm ânus e planejar ir a um museu verificar a existência dos orifícios:

(…) Néctar, imagine beber eletricidade: comida dos deuses. Jononianas esculpidas, lindas formas femininas. Lindas imortais. E a gente enfiando comida em um buraco e saindo por trás: comida, quilo, sangue, bosta, terra, comida: tem que alimentar como quem abastece uma máquina. Elas não têm. Nunca olhei. Vou olhar hoje. O zelador nem vai ver. Me abaixar deixei cair alguma coisa ver se ela.

Enquanto eu lia, era impossível não lembrar das minhas caminhadas por Porto Alegre. Muitas vezes eu havia feito coisas relativamente semelhantes a Bloom: passar por inúmeras ruas, encontrar muitas pessoas em inúmeros lugares, perder-me nos mais absurdos pensamentos, medos, aflições, alegrias. Enfim, a obra me fez entender que a satisfação que eu havia sentido em caminhar, por exemplo, do Barra Shopping até o bairro São João era uma espécie de consciência épica em relação não só à distância percorrida, mas também às inúmeras experiências pelas quais eu havia passado no trajeto. E a cidade que eu presenciava nessas minhas caminhadas estava muito longe da idealizada Porto Alegre dos cartões postais e propagandas oficiais. O que eu experimentava, tal qual Bloom vivencia na sua Dublin de 1904, era o prosaico do cheiro das ruas, das vielas, dos detalhes do chão, dos tipos populares.

Porto Alegre, nos seus 250 anos, merecia ter o seu Ulisses. Seria lindo deslocar um personagem pelas ruas, misturando histórias, memórias, identidades, desconstruindo a cidade “politizada” e expandindo-a em direção a suas ruas periféricas, com seus tipos peculiares, suas histórias, suas aflições. Seria uma maravilha algum personagem querer, por exemplo, saber qual o tamanho do membro do Laçador. Talvez o meu Ulisses se passasse na zona norte da cidade. Assis Brasil, Benjamin Constant, Dom Pedro II e inúmeras outras ruas e locais serviriam como cenário para as andanças do meu protagonista. Pelo caminho haveria inúmeros episódios com tipos populares. 

O português da igreja São João, sempre presente em todas as missas, vestindo camadas e mais camadas de casacos, por mais quente que estivesse, e exalando um odor que contrastava fortemente com o cheiro de hóstia. A ex-professora que enlouqueceu e andava pela Benjamin com um pedaço de pau que eventualmente usava para agredir algum transeunte, e que também se grudava nos orelhões do bairro, fazendo chamadas para o Presidente da República: alô, Fernando Henrique Cardoso, aqui quem fala é a fulana, estou entrando em contato com o senhor para solicitar que a situação discriminada anteriormente nos documentos seja levada em consideração o quanto antes… Havia também a velha Zazá, que usava roupas de homem, uma “mulher-macho”, como se dizia em minha infância, que andava de bengala pela Benjamin Constant, sempre resmungando e de cara feia. E como não contemplar o Seu Nélson, pipoqueiro que durante vinte e cinco anos trabalhou na esquina da Assis Brasil com a Honório Silveira Dias, bem em frente à igreja São João?

Existem, é inegável dizer, inúmeras obras que trabalham com a ideia de uma outra cidade, mais popular e cotidiana. E aqui nem falo de Os Ratos, mas penso especificamente nos excelentes O avesso da pele, de Jeferson Tenório, e em Os supridores, de José Falero, para citar apenas dois. Mas, mesmo assim, sempre fico com a sensação de que ainda nos falta uma obra de fôlego que busque abordar frontalmente as nossas questões identitárias e formativas como cidade. 

É claro que Ulisses é um livro difícil, e certamente ele não teria a importância que tem e nem conseguiria ser tão inovador se tivesse, por exemplo, duzentas páginas. No entanto, apesar de sua justa fama de obra hermética, o que nas centenas de páginas é representado parece não querer envelhecer quando tentamos compreender a nossa experiência urbana. É por isso que, mesmo separada por mais de um século e por milhares de quilômetros, a Dublin de 16 de junho de 1904 me parece estranhamente familiar da Porto Alegre de 2022. Para mim, as nossas tão vandalizadas estátuas da Redenção parecem dizer menos sobre a cidade de 2022 do que o rosto daquele excêntrico autor irlandês, de bigode e óculos arredondados. Para mim, James Joyce é ali na esquina.


Cristiano Fretta é mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, professor nos colégios Santa Inês e Marista Champagnat. Autor de Chão de Areia (romance, editora Multifoco, 2015) e Tortos Caminhos (novelas, editora Multifoco, 2017), músico amador, desde sempre é morador da Zona Norte e pesquisador da história da região.

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