Ensaio

Manuel Bandeira: “A dor da gente não sai no jornal”

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Manuel Bandeira: “A dor da gente não sai no jornal”

A obra de Manuel Bandeira é um dos melhores exemplos de convivência íntima ou de diálogo criativo fecundo com a tradição literária e, ao mesmo tempo, de abertura para experiências poéticas de vanguarda, superando o confinamento esterilizador em padrões estéticos estabelecidos. 

Como teve vida longa e consequentemente trajetória literária extensa, o poeta pernambucano conviveu com várias gerações de escritores brasileiros. No longínquo ano de 1917 publicou A cinza das horas, o primeiro livro, cujos poemas estão muito vinculados ao neoparnasianismo e ao neosimbolismo, além de revelarem seu apreço pela poesia portuguesa, como atestam os sonetos a Camões e a Antônio Nobre. Bandeira, grande leitor e cultor da tradição, não foi o primeiro, mas foi certamente o mais importante poeta na literatura brasileira a fazer uso do verso livre já na década de 20, aprimorando-o no decênio seguinte, como registrou o crítico Davi Arrigucci Jr. (Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira). O emprego desse tipo de verso pelo autor de “Libertinagem” foi importante para sua rotinização em nosso modernismo. Escreveu em 1918 o poema “Os sapos”, paródia dos cacoetes parnasianos, que posteriormente viria a ser “uma espécie de hino nacional dos modernistas”, segundo definição de Sérgio Buarque de Holanda (“Trajetória de uma poesia”). Dialogou intensamente com outros grandes modernistas, como, por exemplo, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Bandeira demonstrou interesse pela poesia concreta e, em Estrela da tarde, até fez experiências nessa corrente poética.

Em conhecida passagem de “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, capítulo do livro Literatura e sociedade, Antonio Candido explica o vínculo decisivo entre a assimilação da arte de vanguarda europeia e “um mergulho no detalhe brasileiro” por nossos modernistas. Quero destacar agora essa atenção à peculiaridade do país para continuar a escrever sobre Manuel Bandeira.

A seu modo discreto, sem alarde, o poeta pernambucano contribuiu muito para esse propósito modernista de pôr o foco em aspectos importantes de nossa particularidade. Muitos dos poemas de Estrela da vida inteira estampam imagens, termos, modos de falar e personagens brasileiros, como “Evocação do Recife”, “Ouro Preto”, “Lenda brasileira”, “Cunhantã”.  Destaco também, nesse sentido, a atenção que o poeta reservou ao cotidiano humilde e a situações de pobreza. Talvez seja essa sua forma principal de revelar e pôr em causa a realidade brasileira. Trata-se de um elemento central da poética bandeiriana derivado de um momento pessoal do poeta, de que ele próprio deu notícia no Itinerário de Pasárgada: sua residência no morro do Curvelo de 1920 a 1933. Esse viver humilde foi considerado por Bandeira como fundamental para o amadurecimento de sua poesia. No cotidiano cruzam-se a experiência pessoal com parcos recursos e a experiência da pobreza brasileira “mais dura e mais valente”, como se lê no mesmo Itinerário.

Como a citação que acabo de fazer indica, Bandeira nem sempre tem como intento revelar o cotidiano em registro ameno. Na verdade, em alguns de seus momentos altos, sua obra aponta para a tragédia social brasileira, cuja contínua reprodução faz parte da experiência de viver nesta “pátria tão despatriada” (“Louvação da tarde”, Mário de Andrade).

No já citado livro Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira, Davi Arrigucci Jr. escreveu que a prática poética de Bandeira está “configurada num estilo humilde”. A matéria de sua poesia é extraída, “desentranhada” tantas vezes do dia a dia, do já referido “humilde cotidiano”. Ao estudar a poesia brasileira produzida em parte do século XX, Guilhermino César apontou um de seus traços fortes: a incorporação do “trivial” ou do que chamou de “grande mundo das pequenas coisas” pelo verso (“A poesia brasileira de 22 até hoje”). Nas palavras de José Guilherme Merquior, em comentário à comunicação de Guilhermino César acima citada, trata-se de “democratização da matéria lírica, associada (…) ao que Leo Spitzer denominou ‘democracia das palavras’ e Auerbach (…) analisou como predomínio do ‘estilo mesclado’ na linguagem poética”. Como Bandeira foi por certo o poeta modernista que realizou melhor essa preferência por motivos prosaicos, pelas “pequenas coisas”, talvez por isso sua poesia pareça às vezes fácil, “menor” – ele próprio se definiu, com autoironia, como “poeta menor”. Na verdade, é inteiramente insustentável a consideração segundo a qual a obra de Bandeira é ingênua ou puramente espontaneísta. A leitura atenta dos poemas e das observações sobre o fazer poético no Itinerário de Pasárgada não deixa dúvida quanto à difícil conquista da técnica indispensável para escrever poemas aparentemente simples, mas, na verdade, complexos.        

Outra coisa que reforça essa aparente facilidade é o uso da linguagem coloquial por Bandeira, ao compor versos com a fala comum, brasileira (sem abdicar na sua obra dos registros cultos e eruditos em outro nível de linguagem). O procedimento artístico, que nada tem de fácil, consiste no tratamento literário elevado e complexo de problemas e situações mediante o emprego das palavras simples do cotidiano. Na verdade, assim como o poeta desentranha poesia do prosaico e faz versos com a linguagem de todo dia, os leitores têm de desentranhar ou perceber a complexidade que reside no aparentemente simples da expressão poética bandeiriana.

“O poema tirado de uma notícia de jornal” constitui um bom exemplo de poema que toma acontecimentos do cotidiano como matéria, mas não se resume ao registro ameno, pois constitui depoimento poético sutil da situação apartada dos pobres. Embora o poema “informe” sobre ações comuns de um dia na vida de um trabalhador (numa noite certo João bebeu, cantou e dançou no bar), o último verso “noticia’ acontecimento que não é de modo algum “trivial”, porque se trata de algo trágico, morte em espaço público, em bairro bacana do Rio de Janeiro, no qual talvez não seja descartável a suspeita de suicídio. Ou seja, um dos raros assuntos da vida de um pobre-diabo, como o personagem do poema, que poderia se transformar em breve matéria jornalística, em oportunidade para rápida exploração do acontecimento trágico. Já os sofrimentos de seu cotidiano não atrairiam o mesmo interesse, porque, tomando certa liberdade com a letra de um samba de Chico Buarque, cujo título é justamente “Notícia de jornal”, “a dor [comum] da gente [comum] não sai no jornal”. É uma tragédia, mas a morte de um desvalido logo será esquecida e, nesse sentido, é um acontecimento banal, como tantos outros que cotidianamente despertam pouca atenção. 

Na hierarquia dos assuntos de imprensa, a morte de um pé-rapado é notícia, quando muito, para uma pequena nota de jornal. Talvez possamos dizer que os versos “noticiam” o acontecimento como se este fosse “tirado” daquele tipo de escrita jornalística, com os diferenciais da linguagem poética. A composição é muito sintética, o poema se reduz a elementos de registro sumário, é breve como uma nota de jornal. No entanto, ao transfigurar, enquanto matéria de poesia, o que não mereceria mais do que rápida notação jornalística, o poeta se contrapõe a certa perspectiva de classe, para a qual a vida e a morte dos humildes se inscrevem na pauta dos assuntos sem relevo. Observemos que o tratamento da “notícia” sustenta uma atitude distanciada, convergente, por um lado, com o registro de imprensa, e afinada, por outro lado, com certo traço da escrita literária moderna. O distanciamento evita o sentimentalismo e a condescendência, e por isso os versos não chancelam a postura piedosa ou a posição de quem olha de cima, desativando assim o travo de superioridade classista. Contudo, o poema consegue ser muito tocante ao apontar, num relance, nossa fratura social exposta.  

Em tantos outros poemas de Bandeira o desamparo marca o cotidiano, tratado sem as atenuações do sentimentalismo. Cito alguns: miseráveis e raquíticos, os meninos carvoeiros trabalham como se brincassem e parecem “espantalhos desamparados” (“Os meninos carvoeiros”), o filho da lavadeira dá duro na composição do jornal e tosse muito (“Na Rua do Sabão”), os meninos pobres olham e desejam os balõezinhos de cor que não podem comprar e “fazem um círculo inamovível de desejo e espanto” (“Balõezinhos”).

A grandeza de um poeta pode revelar-se ainda na sua capacidade de proporcionar acerto artístico a outros escritores, inclusive àqueles que se expressam pela prosa de ficção. Digo isso a respeito de Resumo de Ana, de Modesto Carone, publicado em 1999. Carone declarou, em entrevista à revista Rodapé, a dívida que tem com Bandeira por ter assimilado em seu livro aquele tratamento da pobreza que suprime o sentimentalismo. Assim como o poeta pernambucano, o escritor paulista afirmou não abrir mão da compaixão, mas procurou evitar uma “atitude condescendente para com os pobres” nas novelas de Resumo de Ana.

Bandeira louvou muitas vezes outros escritores, como Rachel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade. Nunca é demais louvá-lo também. Uso suas próprias palavras, um verso do poema no qual saudou um de seus confrades, “Saudação a Murilo Mendes”: Manuel Bandeira, “Grande amigo da Poesia”.


João Roberto Maia –  Professor e pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (FIOCRUZ)

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