Ensaio

Maurício Pereira e os relógios

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Maurício Pereira e os relógios

Para falar sobre Outono no sudeste, disco mais recente de Maurício Pereira, retomando o álbum anterior do cantor e compositor paulista, que tem carreira consolidada na música brasileira. Pra Marte e Outono no sudeste são lançados em 2007 e 2018, respectivamente. Onze anos separam os dois discos, que apresentam algumas semelhanças estéticas, apesar de ênfases um pouco distintas. Pra Marte parece um disco mais do “eu”. Um álbum de um sujeito apaixonado, integrado a SP ou ao sudeste urbano, mas que, por vezes, deseja fugir, seja imaginando ser boi em Minas, seja projetando um penhasco de onde observa a cidade. A dimensão da lenda, em A loira da Caravan, ou a levada sertaneja, em Dourado, dão o tom da presença de uma aura interiorana, que convive com a ambiência urbanófila de outras letras. A paisagem metropolitana oferece os signos que definem o sentimento amoroso em Trovoa, possivelmente a canção mais famosa de Maurício. Interpretada por diversos artistas, ela expressa uma declaração amorosa em que a atmosfera paulistana não está de modo algum descolada da própria caracterização do eu cancional e do interlocutor (objeto da devoção). Guardemos esses apontamentos para voltarmos a eles mais adiante. 

Tal comunhão entre o indivíduo e o entorno caótico, hesitante e oscilante em Pra Marte, aparece, em Outono no sudeste, de forma inequívoca. Chama a atenção que o eu-lírico das canções não sofre com a confusão, com os barulhos, os vaivéns e a rapidez que a convulsão cosmopolita apresenta. Ao contrário dos eus poéticos de escritores como Mário de Andrade, Álvaro de Campos, Baudelaire, Rimbaud, entre outros que lidam com a modernização ou a modernidade, o sujeito das criações de Maurício Pereira parece bem confortável, familiarizado com o desvario da sua terra natal. O que possibilita fazer piada dos descompassos ou apenas apreciar, com certa ironia, a paisagem da pauliceia. Em vez da “feia fumaça que sobe apagando as estrelas”, o “ar particularmente imundo” “deixa o pôr do sol ainda mais bonito”. Atento, o observador-habitante-compositor percebe as contradições e aponta as iniquidades e os sinais de uma vida pautada pela pressa e pelo consumo. 

Mas não se ressente no íntimo com as disparidades. Não sofre, aparentemente. Não deixa de ver beleza na incoerência, usando o riso como uma ferramenta de denúncia. As incongruências do real e o descompasso do desenvolvimento brasileiro, ainda que sintomáticos de um sistema opressivo, guardam sua graça e lirismo, captados com singularidade pelo cancionista. O convívio com o clima do sudeste é constitutivo da própria percepção da vida irremediavelmente caótica, mas, ao mesmo tempo, bonita na sua comunhão de tempos e de velocidades, nunca completamente sincronizados. 

A ironia fina destrava a arma do ressentimento, e o olhar crítico, mas não planfetário, nos apresenta com maior profundidade o lastro das disparidades vividas em megalópoles. Não há uma divisão entre os dilemas do humano e os paradoxos do mundo. Tudo converge entre essas duas entidades, embora a pedra no meio ou à beira do caminho ainda possa apontar para o distanciamento ou para a observação mais contemplativa, que caracterizam algumas criações de Pra Marte

O gesto tropicalista à Tom Zé, que percebe com humor o dia a dia da locomotiva do Brasil, cria uma unidade entre as composições de Outono no sudeste. A vida interiorana, de quem precisa namorar sob o olhar vigilante da irmã mais nova, estabelece um contraste interessante com as relações mais diretas e menos às escondidas, vividas na era dos apps de encontros amorosos. Piquenique no horto apresenta resquícios de hábitos e visões de mundo de uma realidade (época) que parece superada, mas que se mantém viva mesmo em grandes cidades. Esses valores mais arcaicos (virgindade, casamento etc.) ainda sobrevivem e ganham força, sendo driblados por uma menina apaixonada que (ora direis!) adora conquistar estrelas. Soltar o cabelo ou marcar um passeio são vitórias para uma jovem que não se priva de realizar seus desejos, embora os pais possam reprová-los. 

[Continua...]

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Tal comunhão entre o indivíduo e o entorno caótico, hesitante e oscilante em Pra Marte, aparece, em Outono no sudeste, de forma inequívoca. Chama a atenção que o eu-lírico das canções não sofre com a confusão, com os barulhos, os vaivéns e a rapidez que a convulsão cosmopolita apresenta. Ao contrário dos eus poéticos de escritores como Mário de Andrade, Álvaro de Campos, Baudelaire, Rimbaud, entre outros que lidam com a modernização ou a modernidade, o sujeito das criações de Maurício Pereira parece bem confortável, familiarizado com o desvario da sua terra natal. O que possibilita fazer piada dos descompassos ou apenas apreciar, com certa ironia, a paisagem da pauliceia. Em vez da “feia fumaça que sobe apagando as estrelas”, o “ar particularmente imundo” “deixa o pôr do sol ainda mais bonito”. Atento, o observador-habitante-compositor percebe as contradições e aponta as iniquidades e os sinais de uma vida pautada pela pressa e pelo consumo. 

Mas não se ressente no íntimo com as disparidades. Não sofre, aparentemente. Não deixa de ver beleza na incoerência, usando o riso como uma ferramenta de denúncia. As incongruências do real e o descompasso do desenvolvimento brasileiro, ainda que sintomáticos de um sistema opressivo, guardam sua graça e lirismo, captados com singularidade pelo cancionista. O convívio com o clima do sudeste é constitutivo da própria percepção da vida irremediavelmente caótica, mas, ao mesmo tempo, bonita na sua comunhão de tempos e de velocidades, nunca completamente sincronizados. 

A ironia fina destrava a arma do ressentimento, e o olhar crítico, mas não planfetário, nos apresenta com maior profundidade o lastro das disparidades vividas em megalópoles. Não há uma divisão entre os dilemas do humano e os paradoxos do mundo. Tudo converge entre essas duas entidades, embora a pedra no meio ou à beira do caminho ainda possa apontar para o distanciamento ou para a observação mais contemplativa, que caracterizam algumas criações de Pra Marte

O gesto tropicalista à Tom Zé, que percebe com humor o dia a dia da locomotiva do Brasil, cria uma unidade entre as composições de Outono no sudeste. A vida interiorana, de quem precisa namorar sob o olhar vigilante da irmã mais nova, estabelece um contraste interessante com as relações mais diretas e menos às escondidas, vividas na era dos apps de encontros amorosos. Piquenique no horto apresenta resquícios de hábitos e visões de mundo de uma realidade (época) que parece superada, mas que se mantém viva mesmo em grandes cidades. Esses valores mais arcaicos (virgindade, casamento etc.) ainda sobrevivem e ganham força, sendo driblados por uma menina apaixonada que (ora direis!) adora conquistar estrelas. Soltar o cabelo ou marcar um passeio são vitórias para uma jovem que não se priva de realizar seus desejos, embora os pais possam reprová-los. 

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