Ensaio

Morte e morrer

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Morte e morrer

Em 1968, um guri de 26 anos cantava que sabia que, adiante, um dia haveria de morrer. De susto, de bala ou vício; em um precipício de luzes, nos braços da mulher que o quisesse.

Caetano pedira a canção a Gil e Capinam (outros dois guris) para, na estreita medida do possível, homenagear o Che Guevara, executado meses antes (e a medida do possível se estreitaria muitíssimo mais, meses depois, com o AI-5.)

Morte de cinema; de morto de estampa de camiseta: romântica, charmosa, heroica. Nenhum lugar para lembrar a agonia e o medo que podem acompanhar o morrer.

Uns 50 anos depois, nenhuma daquelas três fatalidades havia topado definitivamente com Gil, ou ele com elas – e isso que para as três terão sobrado oportunidades. Multiplicaram-se os braços de quem quer ao baiano, ao longo das mesmas décadas – e lá estávamos muitos destes, no Araújo Vianna, celebrando as duas coisas.

E pude assisti-lo, cantando só, a canção Não tenho medo da morte.

Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar

A percussão no violão e o canto grave sussurrado ao início; o formato popular, com algo de cantador; a interpretação do velho autor intérprete (velho, autor, intérprete.)

Desconcertante, e não só porque o assunto tanto o é. Chama a atenção a clareza com que fica exposto um tema que sempre esteve dando voltas, meio escondido, na poesia, na música: morte e morrer, diferença e cotejo. Saí pensando nisso, do Araújo – e como não pensar novamente, nestes dias em que o noticiário trouxe do Amazonas uma inversão na forma como se narrou a pandemia até agora e pôs em primeiro plano a agonia e não a morte?

Desconcertante escrever sobre isso, evidentemente. 

Por outro lado, não há por quê desconcerto, e isso é certo, quanto ao que não tem conserto: talvez o primeiro de quem me lembrei tenha sido meu estimado Augusto Meyer, falando do Bruxo autor das Memórias Póstumas: “Uma cousa, porém, é escrever sobre a morte e outra, morrer.”

Beleza de ensaio com dois temas principais: o Machado de Assis, de que o teuto-gaúcho sabia tanto, e a própria Morte. Narrativa ambientada em velório, com a inversão magnífica jogada já no título, “Os galos vão cantar”.

Minhas referências sulistas, que me são tão mais fáceis, como coisa que está nos bolsos, não nas gavetas. Algumas assomaram, no Araújo Vianna.

“Aquilo, era pra ficar na coxilha, picado de espada, rachado de lançaços, mas não pra morrer como foi, aperreado em cima da cama, o corpo besuntado de unturas e a garganta entupida de melados e pozinhos dos doutores!… 

Pobre de mim!… estou vendo que hei de morrer do mesmo jeito, como um pisa-flores da cidade, como bicho de galinheiro!.,” 

disse Blau Nunes, contando a morte de Juca Guerra.

Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer, sim
A morte é depois de mim
Mas quem vai morrer sou eu

Gil parafraseia Meyer: uma cousa é a morte e outra, morrer. 

E se pergunta, enquanto diz que “a morte já é depois”: “como poderei ter medo se não terei coração? ”

Seria injusto e meio caricaturesco ou simplificador focar na resistência, digamos, “tradicional gaúcha” em expor os próprios medos ou na estratégia de retová-los de honra e emponchá-los de coragem. Exemplos não faltam e trago alguns – mas porque estão nos bolsos, à mão. Não devem ser em absoluto monopólio destas latitudes. 

Quando alguém diz que tem medo de morrer, desconcerta. Morrer desconcerta. 

Medo desconcerta. Aquele mesmo Blau, no maravilhoso conto Trezentas Onças, diz “…o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito… que medo, não, que não entra em peito de gaúcho.” Com seus medos ou respeitos, dez linhas depois ele decide matar-se. Medo e respeito; morrer ou morte. Yupanqui diz “No le tengo miedo a la muerte, a lo que sí le tengo respeto es al trance, el ir hacia allá.” 

El trance… No Dicionário da Real Academia Espanhola, um dos significados é o momento final. Então, como Blau, Yupanqui sentia “respeito”. Certo… Duas belas frases, convenhamos: Simões Lopes e Atahualpa deixam claro que de medo se trata e nos propõem o pacto de pudor; citam ambos o medo para em seguida dizer “tá, mas não falemos nisso”, “não chamemos assim”. 

Há vários anos, um cantor ainda enlutado pela morte do parceiro, com o qual formava uma dupla sertaneja, dava entrevista do tipo “pinga-fogo” ou “bate-pronto” e chegou perto da formulação de Gil, de uma forma – perdão – algo engraçada: 

Pergunta: “- um medo”… 

Resposta: “Por incrível que pareça… de morrer!!”

Pera lá, peão: a quem isso pareceria incrível, se não em um âmbito de esforçada, trabalhosa negação do assunto chato? 

E o Juca Guerra. Que nome! “Cambará macho não morre na cama”. Esses são para morrer como o Che (bueno, ainda não se tinha recuperado o relato dos momentos finais e da execução, em sua feiúra). Não como bicho de galinheiro. Assim afirma Blau – muito mais, aliás, do que o poderia fazer Simões Lopes; esse era homem de farmácia e não de guerra, acostumado às unturas, melados e pozinhos da medicina do início do século passado – e nem um pouco a espadas e lanças. 

Mas as guerras não são permanentes ou totalmente constantes, mesmo no Rio Grande do Sul tradicional. Ainda bem; não há mal que dure cem anos, nem tento que não se corte.

Como seguir, em tempos de paz, desafiando a morte; provocando-a, toureando-a, convocando-a, talvez – é o que afinal estou arriscando dizer aqui – em grande parte por um medo de morrer retovado de honra destemida?

Não quero morrer de doença
Nem com u’a vela na mão
Eu quero é guasquear no chão
Com um balaço bem na testa
E que seja em dia de festa
De carreira ou marcação 

João da Cunha nos obriga a pensar nas decantadas temeridades gaúchas, no arriscar-se em peleias ou provas equestres e de qualquer outra espécie. Serão parte da mesma estratégia, levada ao novo normal da antiga província outrora sempre conflagrada? 

Saí do Araújo Vianna e ainda andava às voltas com esses assuntos, caminhando pela Osvaldo Aranha – aquele que foi ferido gravemente jogando a vida em uma quixotesca carga de lança na ponte do Ibirapuitã; aquele que morreu, subitamente, em sua cama, décadas depois. 

Pensei até mesmo nos suicídios de campeiros fronteiriços, pesquisados no trabalho belo de Ondina Fachel. Enforcar-se no maneador ou no laço talvez seja mais morte do que morrer, como tombar num duelo de Borges em El Encuentro ou Sur. 

Pensei nisso de deliberar e manejar a própria morte, muitas vezes e em distintas culturas considerado algo digno. Mesmo quando essa associação é nada mais do que poética, como quando Julio Cesar Castro conta com surpresa a morte de seu amigo: “Alfredo Zitarrosa agarró y se murió”. 

Pegou e morreu!! Surpresa, sim; espanto, inesperado – mas quanto de vontade de conferir potência e negar a dolorosa passividade do momento final. 

Hernán Figueroa Reyes cantava “o Tata está velho… Se um dia há de ir-se, que nem se dê conta, ao tranquito, nomais. Deuzinho, te peço que apague sua vida qual se apaga um palheiro, sozinho, sem pitar.” 

Há menos arrogância aí, mas a ideia é a mesma: que a morte, coisa natural da vida, “como comer, caminhar”, como diz Gil, não obrigue o pai a um morrer. 

Pensei no patriarca Júlio de Castilhos. 

Amaro Juvenal, no Antônio Chimango, falava da morte daquele Coronel Prates com espanto: 

Um dia… ansim, de repente,
Esta notícia correu:
– O Coronel Prates morreu!
A muitos custava crer;
Como havia de morrer,
Se ele nunca adoeceu?

Mas Júlio (o Coronel Prates, do poemeto) teve, sim, seu morrer. Manteve-se arrogante ou lendário mesmo nele – ou assim se conta -, com a famosa resposta a quem tentou animá-lo nos instantes finais dizendo “coragem!!!”

“Coragem eu tenho; o que me falta é ar.”

Era 1903, ainda antes da Espanhola…  

Júlio; Che e Gil e Yupanqui; Juca Guerra, João da Cunha e Machado de Assis, seus morreres e suas mortes, entremesclados nos dias em que o noticiário falou mais da agonia do que da perda de tantos manauaras. Dias de respiração cortada, dias sem oxigênio, em que cada brasileiro se chocou para além do suportável contra seu medo dessas duas coisas: a morte e o morrer. 

Qual seria a diferença, você há de perguntar…  


Demétrio de Freitas Xavier é cantor, violonista, intérprete da obra de Atahualpa Yupanqui, e radialista, que manteve por muitos anos o programa “Cantos do sul da terra”.

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