Ensaio

O dia em que Caio F. rendeu tributo a Oracy D.

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O dia em que Caio F. rendeu tributo a Oracy D. Oracy Dornelles (Foto: Breno Serafini)

“Numa cidadezinha perdida, dois malditos que se reconhecem sem que seja necessário falar sobre isso”. (12/01/82) 

Esta epígrafe é o fragmento de uma carta de Caio Fernando Abreu, o mais incensado dos escritores santiaguenses, a Oracy Dornelles, escritor consagrado em sua aldeia sem o devido reconhecimento além-fronteira. Na missiva, Caio, depois de receber um exemplar de um livro de Oracy, relata a sua admiração pela obra do conterrâneo e confessa ter sido ele a primeira pessoa a lhe despertar para a poesia e para a música erudita.

O livro em questão é Poemas opus 4 (1981), quarta publicação de poesias de Oracy, antecedida por Agonia das Trevas (1954), Belkiss (1955) e Ninguém e Mais Eu (1959), obras lançadas, portanto, na infância de Caio, nascido ele em 1948. 

A carta, então única correspondência trocada entre os dois, escrita no calor da leitura, desperta em Caio reminiscências dos seus tempos de guri. Diz ele, textualmente: “Com o seu livro nas mãos, me voltou imediatamente na memória a visão que eu tinha da casa de vocês da janela do meu quarto. Uma casinha de madeira quase escondida atrás de muitas plantas, com um coqueiro de onde surgia a lua, quando estava cheia”.

No livro, que traz uma seção com uma seleta dos três livros anteriores, facilmente se pode perceber as evocações que tenha atiçado em Caio o poema Coqueiro de casa, ao recordar de sua terra natal:

Coqueiro moreno

Vigia da rua

Que é minha, que é tua,

És tal como sou:

Humilde e pequeno

Cresceste sozinho

Na estrada de espinho

Que a vida plantou.

(…)

Quando eu for-me embora

Para outros recantos

Escuta meus cantos

Que irei te mandar,

Coqueiro sagrado

Ao som da poesia

Na mitologia da voz popular.

Exilado na Terra da Garoa, não é difícil imaginar o coqueiro (que, aliás, é uma palmeira) no imaginário de Caio, e a confissão de tão significante inspiração, motivada tanto pela árvore quanto pelo lirismo da obra do autor, parece arrematada em chave de ouro pelos versos finais de Santiago, minha cidade: “— Ó pátria das minhas pandorgas, / Minha infância te saúda!…”. Mais que isso, o poema oracyano oferece ainda uma pérola: “— Cidade do meu presente:/ Velhas juntas de bois pastando/ o verde/ da sinaleira automática…”, ao retratar com ironia o contraste entre tradição e inovação, o poeta modernista a explorar o conflito entre a carroça e o ford, a tecnologia ordenadora do tráfego chegando à cidadezinha do interior. 

Como se pode perceber, eram vizinhos, habitavam a Duque de Caxias, que, posteriormente, em 2007, passou a ter parte dela nominada Rua dos Poetas, inicialmente um quarteirão repaginado, depois mais três, em homenagem a 30 escritores da cidade, estampados em bustos nas calçadas (inclusive Caio), com fragmentos de poemas, bancos e luminárias. Tal rua, adornada em uma de suas extremidades com uma estátua do grande Aureliano de Figueiredo Pinto, santiaguense de coração, espraia-se de um lado a outro da parte central da cidade, passando pela praça.

Mas voltando ao livro de Oracy: que outros poemas teriam sensibilizado Caio? Talvez este Soneto com trinta letras, experimentalismo a pleno, considerado pelo autor “o menor soneto do mundo”, em clara provocação ao cânone da forma, mesmo que ainda não de todo desvencilhado dela em suas obras iniciais: 

Se

E

Ó

Zé,

Em

Ti.

Ri

Sem

Dor,

Flor!

Ou um eu-lírico em pleno voo, confirmando cada vez mais um movimento inicial de rompimento com as amarras do romantismo, do parnasianismo e do simbolismo para bater asas nos céus do modernismo, sem medo de queimar sua pena:

Eu Ícaro

Voar

Voar em v

Como ponta de flexa

voar em v

como o vento

mítico

voar em verso

e voltar

oracícaro

Nos poemas, alguns exemplos da poética de Oracy claramente em transição para um formato mais afinado com seu tempo, cada vez mais a forma a serviço do conteúdo beirando o concretismo e mantendo uma característica constante da obra, a mordacidade.

Além da leitura deste livro de Oracy por Caio, não se sabe ao certo o quanto um teria acompanhado a obra do outro enquanto contemporâneos. No momento da carta, Caio já era um nome consagrado na literatura brasileira e trabalhava na imprensa do centro do País, escrevendo no caderno de cultura de O Estado de São Paulo e tendo lançado Morangos Mofados, seu quinto livro[1].

Sabe-se do encontro que tiveram, num tete à tete, em dezembro de 1995, no Centro Cultural da cidade. Ambos tinham publicado outros títulos, Oracy tendo escrito ainda Poes ia a dois, em 1984 (Martins Livreiro, junto com o conterrâneo, também poeta, Antonio Manoel Gomes Palmeiro) e, dez anos depois, Cantares ares (IEL,1992), que viria a ser, em alguma medida, a expressão do reconhecimento da importância da obra de Oracy em toda a província do RS. Já Caio havia publicado mais quatro livros[2] e era reconhecido por todos como um dos ícones da literatura nacional.  

E o fato de Caio, bastante fragilizado pela AIDS, fazer questão de voltar ao torrão natal, por certo carrega todo um simbolismo de quem quer dar uma última visada no seu Passo da Guanxuma[3], mesmo que nem sempre tenha sido reconhecido nele à altura do que merecia, certamente por preconceito. Mas por tudo narrado até aqui, expresso com todas as letras na Carta de Caio, esse não foi um encontro qualquer, talvez a derradeira reverência ao mestre, com carinho. 

Sobre esse fato, na verdade, pouco se sabe. E embora há quem diga que tenham posado para uma foto na praça central da cidade, se o registro existe, algum dia deve aparecer, porque parece impossível que ninguém tenha se preocupado em deixar para a posteridade o momento. Afinal, um filho finalmente reconhecido com orgulho pela terra encontrava outro louvado por todos (da aldeia) como um multiartista[4].

Uma das possibilidades para explicar esse lapso é que talvez tenha partido dos próprios escritores. Caio, sabedor de sua condição, e Oracy, arredio a holofotes, talvez tenham preferido preservar esse momento de comunhão único, íntimo —interior.

E talvez tenha sido melhor assim — cada um que imagine o que foi tratado, o que disseram, o silêncio entre as palavras trocadas pelos dois. Ao que se saiba também, Oracy nunca comentou exatamente que impressões trocaram um com o outro… E depois, com o falecimento de Caio, isso talvez tenha se perdido nas brumas do tempo.

Mas, depois disso, a obra multifacetada de Oracy seguiu a pleno, com painéis, micropinturas em pauzinhos de erva-mate e em grão de soja, rodando o Brasil televisivo com seu folclórico Circo de Pulgas amestradas, criando caricaturas, etc. Em relação à literatura, foram mais sete títulos[5], tendo como uma das marcas do seu reconhecimento nacional a escolha de dois de seus poemas para uma coletânea nacional de poesia, de José Lino Grünewald[6]. Uma grande honra, por certo, mas muito abaixo do que sua obra merece. Oracy produziu até a sua morte, em 2019, aos 89 anos. Aliás, a sua prolífica vida ainda espera para ser contada. E sua obra, então, mais ainda a ser (de)cantada.

Mas nesse tempo, como já citado, haveria a criação da Rua dos Poetas, com a inauguração de um busto de Caio e a fundação, em 2008, da Casa do Poeta, com seu nome. Por outro lado, a gradativa extensão da Rua dos Poetas atingiria o seu ápice com a instituição, em 2012, na praça Moisés Viana (a mais importante da cidade, palco de várias feiras do livro), de uma calçada da fama, em tributo aos santiaguenses que se notabilizaram no cenário artístico e cultural. E dentre os atuais nove homenageados[7], que deixaram a marca de suas mãos no cimento da praça, o primeiro deles foi justamente Oracy, secundado por Neltair Abreu (o cartunista Santiago), em 2013.

Logo em seguida, a Rua dos Poetas foi estendida ainda por mais um quarteirão, com a inauguração do Memorial da Poesia Contemporânea, espaço que homenageia, além de Caio F., outros dois autores santiaguenses[8], e que abriga hoje a Casa do Poeta. 

Pois não é que tal quadra margeia justamente a esquina onde ficava a casa da família de Caio (hoje outra edificação) e aproxima-se da casa do coqueiro de Oracy, um pouco mais adiante?! Sabe-se que existe um projeto de incorporar este último quarteirão à Rua dos Poetas — e com um adendo importante, a famosa Casa do Coqueiro sendo transformada em um Memorial Oracy Dornelles. 

A extensão seria a maior tributo que a cidade poderia fazer a esses dois artistas. Se impossível o Memorial, que ao menos se registre para sempre a ligação existente entre os dois. O mais novo quarteirão em prol da poesia poderia exibir, em cada um dos endereços, uma placa, para que nunca se esqueça que ali, naquele chão, um coqueiro embalou os sonhos de dois grandes na Terra dos Poetas — em vez de malditos, a bem dizer, benditos — Caio F. e Oracy D.

Notas

  1.  Inventário do Ir-remediável (1970); Limite Branco (1971); O ovo apunhalado (1975); Pedras de Calcutá (1977); e Morangos Mofados (1982). 
  2.  Após a carta, publicou Triângulo das Águas (1983); Os Dragões Não Conhecem o Paraíso (1988); Onde Andará Dulce Veiga (1990); e Ovelhas Negras (1995).
  3.  Assim Caio F. se referia ficcionalmente à sua cidade natal.
  4.  Em 1977, Oracy organizou o Arquivo e o Museu Municipal, também atendendo à Estação de Meteorologia. Criou o Brasão Municipal e a Bandeira da Cidade. Faz vários monumentos em ferro para as praças, inclusive o Monumento ao Centenário de Santiago; em 1980, fundou, com mais dois amigos, o Clube de Música Amigos de Beethoven. Participou da criação do Festival de Música Crioula de Santiago, tendo criado a capa do disco do primeiro Festival; e em 1992, foi condecorado pela Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira, pelo Monumento à FEB, de sua autoria.
  5. Antologia a (2000), Cânticos de hoje (2006), Páginas Impossíveis (2008), Poesias Novíssimas & Antycqüas (2009), 320 Caricaturas Menos Uma (2009), Epitáfios e Últimos poemas (2010) e Poesia y chronica (2011) – compondo um total de 15 livros.
  6. Pedras de toque da poesia brasileira (Ed. Nova Fronteira, 2003).
  7. Em 2014, o músico e compositor Nenito Sarturi; 2015, o artista plástico Othelo Ribeiro; 2016, o cantor Júlio Saldanha; 2017, Miguel Marques; 2018, a professora Enadir Vielmo e o compositor Sadi Machado; e por último, até então, em 2019, o escritor de livros infantis Auri Sudati.
  8.  Cácio Machado da Silva e Ney Aramy Dornelles.


Breno Serafini é natural de Santiago-RS, nascido em 14 de março de 1961. Com doutorado em Letras pela UFRGS, é autor dos livros Mosaico Laico (poesia – CBJE, 2010), Geração Pixel (poesia – Edições do Autor, 2012), Millôres Dias Virão (ensaio – Libretos, 2013), Picassos Falsos (crônicas – Buqui, 2014), Bichos de Todos os Reinos, (poesia infantil – Edições do Autor, 2015) e Colloríssimo – a coroação e o destronamento de Collor segundo Verissimo (ensaio – AGE, 2016). No momento, planeja o livro POAlaroides urbanos – uma ode visupoética a Porto Alegre (poesia e graffiti), a ser lançado em março de 2022 e publicadas em parte na Parêntese.

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