Ensaio

O doutor japonês

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O doutor japonês

Histórias de quando adoecer era parte da vida

A respiração doía um pouco e a tosse era forte. Ir ao hospital consultar me parecia a melhor opção naquela manhã de inverno. Na rua o termômetro chegava a 7 graus. Sair da cama cedo não era uma dificuldade para mim, aluna no campus de Viamão da universidade federal. As aulas de línguas tinham o mau hábito de iniciarem as 7 e meia da manhã, céu ainda escuro, temperaturas baixas. De modos que enfiei o capote de lã quase tocando o chão e minhas inseparáveis luvas de lã.

No guichê das consultas pedi pelo doutor japonês. Aqui não tem nenhum japonês, falou rispidamente a atendente com cara de sono. Era enfadonho tanta explicação, mas eu não lembrava do nome do médico. Engolindo a bronca comigo mesma, conforme pensava no velho médico ia descrevendo pra jovem sonolenta. Não precisei ir muito longe. O rosto dela se iluminou, ah! O doutor Victor Hugo! Não, ele não é japonês, minha senhora, ele é peruano e atende aqui no térreo mesmo – como se essa localização o desmerecesse de alguma forma. Anotou meu nome numa grande folha de papel e de mau humor ordenou que eu desse lugar ao próximo paciente. Enveredei pelo hall do grande hospital até chegar à área de labirintos, passar por novo guichê de controle, receber uma senha e sentar num dos numerosos assentos vazios àquela hora.

Quando vi o médico na sua salinha já não me parecia tão japonês. Tinha o imperceptível sotaque dos falantes de espanhol, o cabelo de fios espessos de índio, a cor azeitonada da pele. Observando melhor, tudo nele era latino-americano, sobretudo os olhos saltitantes. Era uma pessoa idosa, frequentador da gafieira da Venâncio Aires, tomava seus chopes com os amigos parecendo aproveitar completamente a solteirice àquela altura da vida. Entre queixas dos pacientes e comentários dele sobre doenças variadas, o doutor peruano desfiava pedaços da sua vida fora do hospital. Outra diferença dos sisudos nipônicos, pelo menos da imagem que temos deles. O doutor Victor Hugo não tinha papas na língua, como bem experimentei a seguir, o que, de muitas maneiras, salvou minha vida.

Vim lhe pedir um xarope. Tô sem fôlego, doutor.
Em silêncio me auscultou e voltou ao grande birô de madeira clara, incongruente com a saleta modesta. Fiquei esperando por um veredito, alguma coisa. Foi então que o afável idoso falou em seu tom de sempre. Dona Maria (eu já me acomodava na cadeira esperando algum elogio sobre a minha saúde – logo eu), estou impressionado com a senhora, dizia, e eu esperando o despejo do elogio imaginário. Impressionado com a sua cara de pau de vir me pedir um xarope pra tosse, uma fumante inveterada como a senhora. Fiquei como um tomate. A vergonha, senti fisicamente, subiu dos pés à cabeça. Queria sair dali, mas o homem não havia terminado. A senhora vá até a Santa Casa e procure o serviço antitabagista. Nem bem
ouvi a última frase, arranquei de sobre a escrivaninha minha receita e saí dali sem dizer adeus ao médico.

Da mureta da ponte da Azenha fiquei olhando um instante o Dilúvio passar. Rumei em direção à Santa Casa. Nunca mais voltei ao consultório do doutor japonês. E nunca mais fumei.


Maria Regina Pilla é jornalista e escritora. Autora de Volto semana que vem (Cosacnaify, 2015).

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