Ensaio

O filme de uma época

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O filme de uma época Pra frente, Brasil (Cartaz/Reprodução)

O letreiro inicial de Pra frente, Brasil (1982), filme rodado por Roberto Farias nos balbucios da abertura política brasileira depois de vários anos de ditadura militar, refere que sua narrativa trata duma página virada de nossa história. No letreiro final, o dizer é mais seco: “Este é um filme de ficção”. Para o espectador adulto do início dos anos 80, a página da história brasileira não estava bem virada; e era bom lembrar que as páginas viradas voltam ao sabor do vento, lê quem quer ou se interessa. Filme de ficção? Sim: o roteiro de Reginaldo Faria, irmão do diretor e um dos intérpretes centrais do filme, construiu uma história a partir duma memória dum interrogatório policial que lhe fizeram ao estar num aeroporto, mas a história se aproxima de tantas outras do Brasil dos anos de chumbo. Roberto Farias, com estes letreiros que abrem e fecham seu filme, tentava moldar-se naqueles anos de abertura controlada do regime autoritário dos generais; ainda assim, Pra frente, Brasil teve problemas com a censura de então; exibido em Gramado em 1982, só circulou pelo país no ano seguinte, pois a censora-mor do país, Solange Maria Texeira Hernandes, considerava que “havia excessos de liberdade no cinema e no teatro”, e o diretor da Embrafilme que liberara recursos para a realização do filme, Celso Amorim, perdeu o cargo.

O cineasta brasileiro Roberto Farias fizera no passado um policial bem feito, Assalto ao trem pagador (1962), e algumas aventuras musicais de ocasião, como Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968). Em Pra frente, Brasil ele empresta seus bons ofícios de diretor de cinema para um policial-político digestivo mas cheio de impacto; tem os problemas de estereótipos e superficialidades do cinema de Farias, mas acerta o ponto para descrever uma certa quadra da vida brasileira. Pra frente, Brasil diz tanto sobre o período mais violento do regime militar (fim dos anos 60, começo dos 70) quanto sobre o momento em que o filme foi feito, a ditadura militar acenando com novos tempos mas movendo-se em algumas catacumbas.

O filme inicia com um dia histórico bem caracterizado. É o dia em que o Brasil disputa o primeiro jogo da Copa do Mundo de Futebol de 1970, no México. É neste dia que, enquanto seu irmão Miguel e outros se preparam para ver aquela partida inaugural, Jofre, um apolítico, é surpreendido por estar, ao acaso, com um homem da luta armada contra a ditadura; este homem é morto e Jofre é preso, torturado durante vários dias e no fim jaz sem vida num dos planos finais do filme, em que sua imagem de corpo torturado é contraposta ao uso de imagens de arquivo do jogo no México e da multidão nas ruas festejando a vitória da seleção brasileira.  Farias faz ali a ligação entre o futebol e a alienação política, o futebol como alienante, o que vai no campo contrário de Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, o futebol como fonte de cultura popular. É curioso reavaliar esta posição intelectual da época: como podemos estar interessados em futebol quando nossos irmãos são mortos? Nos tempos das redes sociais (agora no século XXI), a própria discussão política se tornou mais alienante que crítica. Observadas essas redes, não há grande diferença entre as questões de futebol e de política: ambas são passionais, irracionais.

Uma das críticas que se fez em seu tempo a Pra frente, Brasil é a ausência do papel dos militares no autoritarismo e na violência e tortura. O que aparece em cena são organismos parapoliciais que supostamente se referem a comandos maiores. No entanto, isto não retira de Pra frente, Brasil sua força narrativa: é violento e crítico. Comparado com a encenação da violência em Marighella (2019), o atual filme de Wagner Moura, pode-se dizer que Pra frente, Brasil vai muito mais longe em sua capacidade de impressionar a sensibilidade do público. Há um sentido de cinema que, ao que parece, ao longo dos anos fomos perdendo, para que um filme como Mariguella fosse possível. Pra frente, Brasil dá a dimensão desta defasagem.

À maneira de Desaparecido, um grande mistério (1982), de Constantin Costa-Gavras, Pra frente, Brasil propõe uma estrutura narrativa em que duas personagens saem em busca do paradeiro policial duma terceira, desaparecida: em Gavras é a esposa e o pai do desaparecido que mergulham no Chile de Pinochet, em Farias é o irmão e a esposa destes desaparecidos que percorrem as burocracias do regime brasileiro para ver o que aconteceu. Farias não tem o engenho de Gavras para superar os estereótipos políticos e cinematográficos; mas, notamos, tem o senso de fazer cinema de que os diretores brasileiros se ausentaram, influenciados por várias coisas, entre elas a televisão majoritária.

E como é bom reencontrar alguns intérpretes brasileiros em seus melhores dias. Reginaldo como o apolítico torturado, Antônio Fagundes longe dos desgastes comerciais que os anos na televisão lhe trouxeram, Natália do Valle em sua melhor melancolia, Elizabeth Savala uma surpreendente guerrilheira, Carlos Zara magnífico como torturador, Cláudio Marzo em sua escassa mas precisa aparição como o guerrilheiro assassinado no início do filme, mais Neuza Amaral, Paulo Porto, Ivan Cândido, Milton Moraes, rostos hoje quase esquecidos de nosso mundinho audiovisual.


Eron Duarte Fagundes é crítico literário e de cinema. Publicou Uma vida nos cinemas (Movimento, 1999).

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