Ensaio

O futuro da cinemateca brasileira

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O futuro da cinemateca brasileira

Dia 29 de julho, em São Paulo, um galpão da Cinemateca Brasileira pegou fogo, destruindo toneladas de documentos e ainda não se sabe quantas cópias únicas de filmes, e confirmando as piores previsões que se faziam há alguns anos, como resultado do descaso do governo federal com essa instituição específica, pra não falar do resto. Uma semana depois o Canal Curta! e a Associação Paulista de Cineastas promoveram um debate online sobre “O futuro da Cinemateca”. Carlos Augusto Calil, que já dirigiu a Cinemateca Brasileira, fez um ótimo resumo histórico da instituição, desde que ela foi criada nos anos 1950. Roberto Gervitz, que desde o ano passado tem liderado o movimento S.O.S. Cinemateca, mediou o encontro. Cacá Diegues, Tizuka Yamasaki, Fernando Meirelles, Joel Zito Araújo, Sandra Kogut e Ana Maria Magalhães também falaram, cada qual tentado projetar um futuro possível pra memória do audiovisual brasileiro. Eu, como único convidado de fora do eixo Rio-São Paulo, falei o texto abaixo.

A menção ao Paulo José no primeiro parágrafo foi espontânea: eu sabia que ele não estava bem, mas nem imaginava que ele nos deixaria tão cedo. O adjetivo que eu usei ficou até tímido, mas é o mínimo que se pode dizer dele: grande Paulo José.

Encontro online promovido pelo Canal Curta e Apaci, em 06/08/2021


“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.” Essa frase, na voz do grande Paulo José, é que encerra o “Ilha das flores”, filme que o Jorge Furtado realizou em 1989, que eu tive a sorte de ter montado, e cujas matrizes de imagem e de som estão depositadas em alguma prateleira da Cinemateca Brasileira.

Mas a frase, originalmente, é do “Romanceiro da inconfidência”, da Cecília Meirelles, publicado em 1953. Ou seja, antes do filme, existiu um livro, que felizmente estava numa biblioteca, na escola onde o Jorge Furtado estudou. E antes do livro existiu o acontecimento histórico, no século 18. Eu lembro inclusive que a própria Cecília Meirelles contou que, pra escrever esse livro, ela passou quatro anos pesquisando, foi muitas vezes a Ouro Preto, visitou museus e o arquivo nacional pra ler o processo de julgamento dos inconfidentes, pra conhecer a história de Vila Rica e de seus personagens e poder escrever sobre ela.

Esse é um exemplo simples pra mostrar que cinemateca, biblioteca, museu, arquivo, são instituições (cada uma com as suas especificidades) que lidam com a memória, portanto com o passado, mas que são fundamentais no presente pra que a gente possa inclusive compor novas obras, com as quais se constrói o futuro.

O digital muitas vezes nos dá uma falsa ideia de imaterialidade. As muitas cópias do “Ilha das flores” que existem na internet, por exemplo, podem sugerir que o filme está em todo lugar, ou que não está em lugar nenhum. Mas às vezes acontece um acidente, que não precisa ser um incêndio. Pode ser o pendrive que quebra, o HD que trava, ou o celular que cai dentro da privada, pra que a gente se dê conta da materialidade daqueles textos, daqueles audios, daquelas imagens que estão lá dentro, e que de repente podem desaparecer. “Ah, mas tá na nuvem…” A nuvem também é um lugar, ou alguns lugares, como os 18 centros de dados do Google, em Mumbay, em Singapura, ou na Finlândia. O digital é informação codificada, mas também é matéria, está em algum lugar, ocupa espaço, tem peso, e como toda matéria está sujeita à lei da gravidade, à dor de dente, quem sabe à luta de classes.

Se eu quiser hoje assistir “Bye bye Brasil” ou “Gaijin” ou “Feliz ano velho” ou “A idade da terra”, provavelmente eu vou encontrar cópias digitais em algum serviço de streaming. Mas, pra ter certeza de que essas cópias vão estar sempre com a melhor qualidade possível, e vão ser repostas quando necessário, as matrizes originais têm que estar em algum lugar, e este lugar muito provavelmente é a Cinemateca Brasileira.

E, se eu quiser assistir, por exemplo, “Um é pouco, dois é bom”, filme gaúcho de 1968, que foi o primeiro longa-metragem brasileiro dirigido por um cineasta negro, Odilon Lopez (que aliás era mineiro), na internet eu só vou encontrar a metade do filme – graças ao esforço de outro cineasta negro, Zózimo Bulbul, também já falecido. Mas o filme inteiro, hoje, só existe em alguma prateleria da Cinemateca Brasileira. Mas hoje não tem quem possa encontrar esses filmes, porque a Cinemateca está sem funcionários qualificados pra isso. Uma cinemateca não existe sem arquivistas.

Eu, como cineasta de Porto Alegre, tenho a obrigação de lembrar também que um sistema totalmente centralizado não é o melhor sistema possível, inclusive pra cinematecas. Eu acho que nós já fomos menos frágeis quando parte do acervo cinematográfico do país estava na Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro. E que fortalecer a Cinemateca Brasileira passa também por investir na Cinemateca Capitólio em Porto Alegre, na Cinemateca do Museu Guido Viaro de Curitiba, na Cinemateca Pernambucana, etc.

Mas isso, hoje, é sonho. Defender a Cinemateca Brasileira é a nossa obrigação imediata nesse momento tão complicado que o país tá vivendo. Só que a gente tem que entender que o que nos colocou nesse momento foi a política, e que só pela luta política a gente vai conseguir sair dele. Negar a política é como negar a memória, negar a tecnologia, negar a vacina, negar o sistema eleitoral. Chega de negacionismos.

E, hoje mais do que nunca, nenhuma luta política se dá isolada das outras. Não dá pra defender a Cinemateca Brasileira sem dizer também que a Ancine precisa recuperar sua capacidade de investimento, e deixar de ser o Tribunal do Santo Ofício em que ela se transformou desde 2016. Não dá pra defender o cinema brasileiro sem defender a Fundação Palmares, que desde 2019 se tornou um antro racista de negacionismo da nossa vergonhosa história escravocrata.

Não dá pra deixar de defender junto a autonomia das universidades, o sistema público de saúde, a desmilitarização das polícias, os direitos humanos, a capacidade do estado de reduzir a pobreza, a preservação do que resta da Amazônia, o direito dos povos originários do país de viver nas suas terras.

Quem viu “Ilha das flores” sabe que o conceito de liberdade que aparece no final do filme é colocado ali de uma forma irônica: que porra de liberdade é essa que gerou um sistema econômico em que alguns são obrigados a viver do lixo dos outros? Mas o filme volta pro conceito, e pra Cecília: não precisa explicar, a gente sabe de que liberdade a gente tá falando. É a única coisa sem explicação num filme que arma um raciocínio pra tentar explicar tudo, mas não consegue responder como é que nós viemos parar aqui.

E como é que nós viemos parar aqui? Trinta anos depois do Ilha das flores, o que a gente vive hoje no Brasil, eu acho, é uma luta política da civilização contra a barbárie. Não tem outro nome. Fora dessa luta, eu não vejo futuro nenhum pra Cinemateca Brasileira, nem pra nós.


Giba Assis Brasil – Montador e roteirista em diversos filmes. Professor do curso de Realização Audiovisual da Unisinos desde 2003, também deu aulas na UFRGS entre 1994 e 2005.

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