Ensaio

Oitenta anos de Noel Guarany

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Oitenta anos de Noel Guarany

Desde que desertou do Exército Brasileiro com farda, fuzil e violão num caminhão com amigos para a Argentina, Noel “Borges do Canto” Fabrício da Silva foi desenvolvendo sua arte e sua identidade de gaúcho missioneiro. O cantor e guitarreiro Noel Guarany sempre “cantou opinando”, como já anunciava o velho Martín Fierro no século XIX. Crítico da ditadura, dos militares, do MTG, da OMB, dos festivais, das gravadoras, da mídia e de tantas personalidades e instituições no estado e no país, o “Cantor da Bossoroca” chegou a ser chamado de “Pajador Maldito”. Era o preço que pagava por exercer sua cidadania no sentido mais profundo e por lutar tanto pelo simples direito à opinião. 

Nascido em 1941 na Bossoroca (antigo distrito de São Luiz Gonzaga, um dos chamados Sete Povos das Missões), será ainda na adolescência que, a contragosto de seu pai, ele começará a se interessar pela música e especialmente pelo violão. Abandonou a escola quando uma professora não acreditou que ele mesmo havia composto uma redação em versos. A ascendência italiana que seu pai trouxe dos Fabrício não o mobilizou tanto quanto a indígena, de sua mãe. Batizado Noel por ter vindo à luz um dia após o Natal, adotou o Guarany a partir de sua ancestralidade materna, da região missioneira em que nasceu e da qual fez o espaço geográfico e humano de suas legendárias “andanças”, como ele mesmo as denomina em texto de seu próprio punho. Os antigos Sete Povos eram parte também dos chamados Trinta Povos das Missões, território que hoje abrangeria partes do Brasil, do Paraguai, da Argentina e do Uruguai.

Sem nenhum estudo formal, ele desenvolveu em suas “andanças”, apenas ouvindo e observando, um canto e uma guitarreada bastante expressivos e originais. Sempre pesquisando, entrevistando, conversando com peões de estância, indígenas, folcloristas, músicos e críticos em geral, foi formando a sua maneira de cantar as Missões.  Assim trouxe grande riqueza de ritmos e de repertório para o cancioneiro do estado. Fez amizade e mantinha correspondência com diversos artistas desses países vizinhos, como Aníbal Sampayo, Osvaldo Sosa Cordero e Santiago Chalar. Nessas viagens aprendeu “desde a língua guarani ao clássico espanhol” (“Filosofia de Gaudério”) e conta que não fazia como os pesquisadores incautos que levavam gravadores para entrevistar os indígenas; os que assim faziam, segundo ele, fatalmente retornavam com um material cheio de chistes e absurdos que os entrevistados diziam apenas para rir e se divertir com o pesquisador.

Em 1955 o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) deu parecer contrário à intenção de se erguer um monumento pelos duzentos anos da morte de Sepé Tiaraju. Moysés Vellinho e outros intelectuais do Instituto o consideravam estrangeiro. A reverência aos farroupilhas, que vinha pelo menos desde o Partenon Literário no século XIX, é que será reforçada em seguida com a Ditadura Militar. Em 1964 mesmo a Semana Farroupilha é oficializada no estado e em 1966 o Hino, as Armas e o Brasão dos Farroupilhas são instituídos como do estado.

Segundo o próprio Noel, com o Golpe de 64 houve uma forte intervenção também na organização do meio cultural gaúcho:

Em 1964 surgiu o famigerado MTG, dirigido por militares tais como: Cel. De Camino – MTG, Cel. Hugo da Cunha Alves – CTG 35. Ainda criaram outro organismo tão fajuto quanto estes, o qual denominou-se ‘Instituto Riograndense de Tradição e Folclore’, dirigido pelo Cel. de brigada Hélio Moro Mariante. Nos CTGS, sargentões de brigada, ou eram patrões ou dirigiam os mesmos. (Chico Sosa, Destino Missioneiro, p. 54).

Mas para Noel Guarany o Rio Grande nascera “Sem Fronteiras” nas Missões. Sepé e as Missões estarão sempre presentes em seus discos, muito antes das Ruínas de São Miguel se tornarem Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1983.

Chaloy Jara com Noel Guarany

E é notável como todo seu enorme talento musical vem sempre tão amalgamado com sua trajetória de cidadão, com sua perspectiva social, política e cultural. “Teu canto é um grito de alerta de guri pedindo pão”, ele mesmo diz no “Canto ao Pajador Missioneiro”. Noel foi balseiro, colheu arroz, criou cavalos, foi peão de estância, enfim, trabalhou de tudo que havia para se trabalhar nos interiores pelos quais peregrinou. E todo esse trabalho e todos esses trabalhadores estão nos versos que gravou. Cantou o peão (“Canção do Peão Arrieiro”, “Destino de Peão”), o indígena (“Alma Guarany”, “Aquarela Guarany”) e também a costureira (“Chimarrita da Costureira”), a lavadeira (“… do Uruguai”) e cantou os costumes (“… Missioneiros”), os rios (“Rio Manso”, “Entre o Guaíba e o Uruguai”, “Eu e o rio”), os cavalos (“Décima do Potro Baio”, “Aquele Zaino”, “Romance do Petiço Mitay”), enfim a pampa toda (“Payador, Pampa y Guitarra”). E cantou tudo isso nos tantos lugares pelos quais passou: em bolichos, em pulperias, e também em escolas, em universidades, em rádios, em greves e manifestações. “Se não fora essa terra que eu amo tanto, e que pra mim não tem fronteiras, eu acho até que eu já tinha me tornado um guerrilheiro” diz “ao vivo” em Santa Maria.

Já fazia mais de dez anos do início de suas andanças quando realizou seus primeiros registros fonográficos. O primeiro compacto simples em 1970 (que até hoje não conseguimos encontrar!) e o primeiro LP (“Legendas Missioneiras”) em 1971. O segundo, “Destino Missioneiro”, de 1973, teve um atraso porque a censura cortou uns versos de autoria de Aureliano Figueiredo Pinto. O médico e poeta foi um dos mais musicados por Noel Guarany. O cantor recebeu inclusive autorização da esposa do poeta, assinada, permitindo-lhe a musicalização e gravação de sua obra. Os versos perseguidos falavam em “curvar a espinha de mola no culto de um ditador”. O poema sai cortado em 1973. Mas não se dando por vencido, o cantor regrava o poema com os versos completos num disco inteiramente em homenagem a Aureliano em 1977.

Quando ele grava em 1975 “Sem Fronteiras”, seu terceiro álbum, seu trabalho já estava mais conhecido em outros estados e recebia atenção da crítica especializada. Artigos de Dirceu Soares, Enio Squeff, José Ramos Tinhorão, Maurício Kubrusly comentavam sua arte em jornais como Folha de São Paulo, Folha da Manhã, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde. D. Neidi Silva, viúva de Noel, guarda-os zelosamente numa pasta. Chico Sosa publicou uma seleção deles no livro “Noel Guarany – Destino Missioneiro”.

Na segunda metade dos anos 70, depois de um período de Terror de Estado contra a luta armada urbana ou rural e depois das ilusões do tal “Milagre Econômico”, vinha o repé da crise e o progressivo crescimento dos movimentos pela anistia, pela abertura, pelo fim da ditadura. Noel Guarany, que sempre cantou opinando, vai participar intensamente dessa conjuntura. E é numa dessas que ele participaria de um show de aniversário do jornal Versus. Era um jornal de esquerda, da imprensa “nanica”, que passava dificuldades para se manter na ditadura, e segundo Noel “os amigos da Convergência Socialista” queriam salvá-lo. Marcus Faermann liderou o evento que contaria com Tarancón, Quarteto em Cy, MPB 4, Edu Lobo, Chico Buarque, Guarnieri, Fernando Peixoto. A ideia era um show no parque Anhembi, em São Paulo, mas a censura impediu.

No disco “ao vivo”, já em 80, feito para o público universitário de Santa Maria, Noel comenta das greves que ocorriam no ABC paulista e manifesta sua vontade de ajudar, de apoiar. Diz que “o Chico Buarque quis tocar e não deixaram, e eu pior ainda porque eles acham que o gaúcho é mais valente que os outros” (risos dele e da plateia). Quando Olívio Dutra liderava, como presidente do sindicato, a greve dos bancários nessa mesma época, Noel foi tocar para os grevistas enquanto Olívio encontrava-se preso. Ele tocou em muitas campanhas políticas, especialmente para Leonel Brizola e o PDT. Foi bastante amigo de Alceu Collares também, mas em meados dos 80 divergiu e fez campanha para o PT, mais uma vez unindo-se ao seu velho companheiro da Bossoroca.


Monumento a Noel Guarany na cidade de Bossoroca (RS)

Outra peleia de Noel era com a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) e com o ECAD, escritório responsável por arrecadar e distribuir os Direitos Autorais. Certa vez, em São Luiz Gonzaga, ele e outros músicos, como Glênio Fagundes, tiveram que pagar os direitos para cantarem canções de suas próprias lavras. Quando mais tarde os primeiros sinais da doença que o retirará de cena aparecem, ele tentou conseguir alguma pensão, afinal tinha contrato para três discos e não imaginava que pudesse ficar assim desamparado por conta de uma doença. Ele reclamava da centralidade o ECAD, dizia que cada estado deveria fazer o recolhimento independente, pleiteava por direitos trabalhistas. A OMB para ele era simplesmente uma máfia que além de atrapalhar não trazia benefício nenhum aos músicos. É assim que em maio de 1983 ele envia uma “Carta Aberta à Imprensa Nacional” e afirma que em protesto vai se retirar dos palcos. Será somente meia década depois que ele participará da gravação do lendário “Troncos Missioneiros” (1987), com Jayme Caetano Braun, Cenair Maicá e Pedro Ortaça e gravará “A Volta do Missioneiro” (1988) com seus amigos Jorge Guedes e João Máximo.

Nesses últimos trabalhos já se nota uma voz debilitada pela doença que lentamente irá enfraquecendo o cantor. A ataxia cerebelar, doença degenerativa, vai durar ainda dez anos para enfim levar o guitarreiro aos 56 anos em 6 de outubro de 1998.


David Santos da Cunha é músico com graduação e pós-graduação em História pela UFRGS. Desenvolveu pesquisa sobre a identidade missioneira do gaúcho que gerou o documentário “Minhas Andanças – Noel Guarany”, realizado com Tiago Rodrigues e disponível no Canal Gadea no youtube. Como músico vem explorando com voz e violão um repertório latino-americano tendo apresentado os Sons da Resistência no Motirõ, espaço cultural que existiu há pouco em Porto Alegre. Também integra desde o início a Banda Kalunga, que desenvolve temas afro-brasileiros de autoria do Mestre Telmo Flores, cantor também do grupo.

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