Ensaio

Passar pano?

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Passar pano?

Creio que muitos ouviram falar sobre o cancelamento de J. K. Rowling, autora da saga Harry Potter. Tudo teria começado quando ela refutou a locução adjetiva “pessoas que menstruam”, que vem sendo sugerida por alguns movimentos sociais como substitutivo ao termo “mulheres”. 

Para quê, mesmo? 

“Pessoas que menstruam” inclui homens trans, ou seja, indivíduos a quem foi atribuído o sexo e o gênero feminino ao nascerem, mas que, com o passar do tempo, vão se autopercebendo de forma distinta, como masculinos – tanto que alguns fazem cirurgias de redesignação para ocupar esse lugar ao qual sentem pertencer. Thammy Miranda, o filho da Gretchen, é um exemplo largamente conhecido. Muitos desses homens conseguem bloquear a menstruação usando hormônios, cessando um sofrimento, posto que a entendem como parte de um universo feminino com o qual não se identificam. Alguns intersexuais, antigamente nomeados como hermafroditas, também menstruam.

Do outro lado, “mulher”, como concebido historicamente, exclui mulheres trans, pessoas a quem se atribuiu o sexo e gênero masculino no momento do ultrassom, com base na genitália, mas que, crescendo, vão se entendendo como concernentes ao mundo feminino, cujo acesso, para algumas, também estará vinculado a procedimentos cirúrgicos. A jogadora de vôlei Tifanny é um caso público sobre quem muito se debate. 

Com o que está à mesa, cabe a pergunta: Rowling foi transfóbica ao questionar a alteração terminológica, acreditando-a inadequada? Vou ser piresiano, lembrando da fantástica resposta da atriz Glória Pires durante a exibição do Oscar 2006, na Rede Globo, quando repetiu “não sou capaz de opinar” para algumas questões que colegas de apresentação lhe fizeram. Lembrando que ela disse que não se sentia habilitada a arbitrar sobre Lady Gaga, mainstream absoluto, ou seja, não havia alma que não se sentisse no direito de dizer algo sobre a cantora.  Não seríamos melhores se incorporássemos a sinceridade da atriz em vez de torná-la meme passageiro? Mas eis a gente.

O preconceito, por mais batido que esteja esse assunto, é histórico. Continua aí, recentemente revigorado pelo levante de ultradireita mundo afora. Afeminofobia existe. Bifobia existe. Homofobia existe. Transfobia existe. Mesmo quando tudo anda de ponta-cabeça como agora, mesmo nessa posição, é impossível não ver a discriminação operando. Estima-se que 90% das pessoas trans não esteja no mercado de trabalho formal. Pesquisa recente mostrou que 38% dos empregadores tem restrições em contratar trans. As violências psicológicas e físicas para com esse grupo estão sempre nos trend topics. Nada assombroso quando, ainda, há quem acredite que elas/eles não podem ocupar os banheiros em que melhor se sentem. Fácil, portanto, captar os motivos das reações intensas – como a sugestão do cancelamento – vindas de um povo que não quer mais o destrato e o escárnio. Não?

J. K. Rowling se defendeu da acusação de transfobia usando um argumento que, para historiadores, porque observam os sujeitos para além de tempo-espaço muito reduzido (do calor do momento), costuma ter peso: “A ideia de que mulheres como eu, que têm empatia por pessoas trans há décadas e sentem afinidade por elas, porque são vulneráveis do mesmo modo como as mulheres – isto é, à violência masculina -, ‘odeiam’ pessoas trans porque pensam que sexo é real e vivem as consequências disso é um absurdo”. 

É certo que nem sempre, na defesa necessária, nas ruas, por exemplo, há tempo para refletir sobre vieses. Mas para dizer sobre algo que se viu na internet, muito provavelmente, há. Um fôlego para perceber a historicidade da exclusão de LGBTQIA+. Um respiro para considerar a história das empatias, fundamentais, mas nem sempre 100% concordantes. Quem sabe oxigena entre pronunciamento, julgamento e (evita) sentença. 

No Ocidente, na história recente, as pessoas eram separadas em homens e mulheres de acordo com critérios biológicos, que, por vezes, não eram desvinculados das crenças cristãs, resultando numa biologia à Adão e Eva. Desafiando esse consenso, filósofos como Simone de Beauvoir (1908-1986) irão separar sexo, tomado a partir de elementos ditos biológicos, e gênero, que seria espécie de construto social, aspectos atuando em complementaridade na formação do ser. 

Em um terceiro momento, pensadores como Judith Butler, devedora de predecessores como Michel Foucault (1926-1984), aventarão que sexo e gênero podem, ambos, ser resultado de narrativas e comportamentos reiterados, de repetições que naturalizam determinado entender – especialmente pela linguagem. Contrapõem, assim, as duas perspectivas anteriores ao cogitarem que sexo pode não ser, em grande parte, natureza. É o que então? Arquitetura humana. 

Avançando no último grupo, fazendo o enfrentamento ao sistema hegemônico de inteligibilidade do afeto e dos corpos, num movimento pós-identitário, está o filósofo Paul B. Preciado, que diz, em Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (Zahar, 2020): “Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou um heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco bissexual. Sou dissidente do sistema sexo-gênero.” Belos termos para o que venho dizendo, há alguns anos, de maneira simplíssima: todas as identidades, inclusive as criadas para encorpar o acrônimo arco-íris, viraram prisões, casas sem portas e sem janelas. 

Esse caminhar dificilmente seria possível se Beauvoir, Foucault, Butler e Preciado fossem proibidos de debater e de questionar – o cânone especialmente. Todos são mestres da pergunta, avessos ao dogma – embora contundentes em suas colocações. Notando que a dúvida e a interrogação fazem parte dos processos, resta perguntar: essas só são legitimadas se forem feitas por quem aceitamos e se os resultados forem o que queremos ouvir? Mantém-se o dogmatismo como práxis? Sendo honesto intelectualmente, é preciso expor que a colocação de Rowling não deixou de ser tópico interno nos movimentos sociais, que estão longe de formar uma sinfonia. Muitas indagações vêm à baila no chão do salão de reuniões, que costuma perder o verniz de tanto sapateado. 

Desconheço trans que digam que os procedimentos de redesignação sexual, de hormonização, entre outros, são diversão. Trazem alívio quando bem-sucedidos? Sim. Mas, antes, impactam psicologicamente e, muitas vezes, são acompanhados de complicações, como quaisquer intervenções cirúrgicas. E as dificuldades para o acesso ao endocrinologista e às equipes médicas, e os anos de acompanhamento? A todos resta evidenciado que mais pesquisas podem minimizar dores. Não se trata de esperar que a Ciência diga aos sujeitos se podem ou não ser felizes, constituir unidades familiares, namorar, como se autorizada a dar ou não essa chancela, ideia absurda que aparece vez em quando. Trata-se de vir em auxílio para minimizar sofrimentos. Esses estudos não acontecerão sem contrapontos, dúvidas, perguntas acerca do mundo biológico – é o modus operandi das ciências, inclusive das humanas, como demonstrado acima com nomes relevantes à área de gênero e sexualidade.

Não soa estranho, portanto, não deixar espaços para a contra-argumentação quando essa não é, em si, algo a ferir direitos duramente conquistados? Não seria como determinar que há só uma via para diminuir o preconceito, que passa por uma única opção em termos de linguagem – “pessoas que menstruam” -, e que, portanto, o assunto se exauriu? Não seria aplicar ao novo conceito-categoria um status de verdade, incontestabilidade odiada pelos teóricos base? O problema pode não estar na postagem de Rowling, mas no receio de provável apropriação torta que o lado ruim da força, hoje a ultradireita balizada em religiosos fundamentalistas, costuma fazer desse tipo de colocação? 

Existem momentos temporais, como agora, e espaços, como o virtual (redes sociais), em que as pontuações podem implicar mais mal-entendidos do que ajudar? Os aliados precisam pensar igual? Quantas vezes posicionamentos precisam ser repetidos para considerar alguém fóbico? Qual intensidade num único gesto, numa palavra, numa frase, habilita sentenciar? Existem atenuantes e agravantes? Somos juízes?

Embora a reação de desconfiança, quando a questão vem do mundo de fora, seja um alerta compreensível; o que segue daí demanda mais parcimônia do que o ato-reflexo no qual se transformou a prática do cancelamento – gesto vulgarizado na internet, quase pingue-pongue entre alguns grupos. Ou todos estão confortáveis usando a mesma estratégia que o grupo no poder sempre usou?  Evidentemente entendo que, vendo boicotes acionados pelos conservadores, como o que Thammy Miranda está passando, nesse momento, por ter participado como “pai” em uma propaganda da Natura, ligam a luz da revenge. Mas será eficiente?  

Como evitar uma outra história única, leitura de mundo tão criticada, com razão, pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie? Há diferenças entre Rowling e Bolsonaro e Trump? Quem sabe matizar assuntos complexos nunca tenha sido nosso problema. Ao contrário, parece imprescindível para as boas soluções. Importante dizer que não se trata, aqui – e já deve ter gente sinalizando –, de passar pano em preconceituoso. Mas de entender que há coisas em aberto, de que há coisas a (re)pensar para o bem de todos. É indispensável saber que, assim como nós, os outros nem em tudo acertam e nem em tudo erram. Mesmo porque, para lidar com o cenário (inter)nacional nebuloso, vamos precisar de coalizão com gente de carne e osso, não com abstrações idealizadas vindas do reino de Nárnia – a história recente brasileira é um bom exemplo de como podemos fracassar.

Para começar, é isso. Como não li Harry Potter, não vi os filmes, desconheço a biografia da autora, não a tenho adicionada às redes sociais e – ainda – sei como a imprensa anda ávida por um tanto de sensacionalismo – de fato não me sinto à vontade para dizer se a colocação pode ser encarada como pergunta/dúvida/opinião ou se foi uma forma sutil, sempre a pior, de ela firmar o conservadorismo, o reacionarismo e a adesão às pautas anti-igualitárias desses grupos que não aceitam quaisquer questionamentos a um sistema sexo-gênero cisheteronormativo secularmente excludente. Eu precisaria ler todo o processo (existe alto grau de ironia aqui) para ir adiante.


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com quatro livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. Na Feira do Livro de 2019, lançou um novo livro, pela Libretos, Babá – Esse depravado negro que amou.

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