Ensaio

Por que nós precisamos de uma casa de estudantes indígenas na UFRGS

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Por que nós precisamos de uma casa de estudantes indígenas na UFRGS

Por que a universidade precisa de uma casa de estudantes indígenas, para além da necessidade de permanência ao longo da formação após o ingresso por cotas? Esta pergunta foi compartilhada em uma roda da disciplina eletiva Psicologia, direitos humanos, direito ambiental e inclusão, ofertada temporalmente no primeiro semestre de 2022.  O questionamento/provocação veio da visita que fizemos à ocupação indígena, ainda em frente ao Museu da UFRGS, pelo direito de terem uma Casa de Estudantes Indígenas.

Era uma quinta feira pela manhã, 10 de março, quando trocamos o espaço virtual do Modelo de Ensino Remoto Emergencial (ERE) por uma aula ‘prática’. Nesta turma temos estudantes de diferentes cursos e, ao discutirmos teoricamente essas temáticas, concluímos que a rua é o espaço onde precisamos estar. Direitos Humanos são uma construção histórica, feita de lutas e resistência contra as formas de opressão e dominação.  Como ensinar e aprender apenas com os livros e os vídeos produzidos por outras pessoas? Sim, isso é fundamental na universidade, mas há saberes que só construímos com o corpo todo. A psicóloga Raquel Guerreiro (2021) diz que é preciso ter “um corpo todo de escuta”. Assim, com nossos corpos sedentos do encontro presencial, depois de dois anos de aulas virtuais por causa da pandemia de Covid-19, decidimos experimentar o direito achado na rua. Naquele contexto, o direito lutado na rua.

Estávamos em um grupo diverso, de diferentes gerações, nem todas mulheres, nem todas brancas, nem todas sem deficiência, porém com uma vida confortável, seja pela branquitude, seja pela classe social. Estávamos atentas de que a retomada da Casa de Estudantes Indígenas diz respeito a todas as pessoas, sejam elas conscientes ou não de sua racialização, de sua classe social, de seus acessos e privilégios. As pessoas brancas também têm raça/cor, e se beneficiam dos privilégios da branquitude. As pessoas herdeiras e ricas têm interesses de sua classe social, e se beneficiam da acumulação de capital, a qual se baseia na exploração e expropriação de condições de vida de outros seres. Em uma sociedade hierarquizada, desigual e violenta como a brasileira, a vivência de uma vida digna com os direitos humanos garantidos se viabiliza às custas de normalizar a ausência de acesso e de permanência de outras pessoas às conquistas dos direitos humanos essenciais. Independente das condições, não há como dizer que a causa indígena não é de toda a sociedade, de toda a universidade. 

Embaixo da grande árvore, lonas pretas e algumas barracas improvisadas abrigavam um coletivo de pessoas indígenas, majoritariamente da etnia Kanhgang. Fogs (pessoas brancas na língua kanhgang) também se somavam ao espaço, quase todos(as) jovens. As camisetas dos movimentos estudantis de ensino médio e universitário coloriam a juventude engajada e solidária. Chegamos com uma pequena contribuição para o café da manhã, pois as redes sociais divulgavam a necessidade de alimentos não perecíveis e itens de limpeza. 

Quem nos recebeu primeiro foi a kujá Iracema Rã-Nga Nascimento, reconhecida pela UFRGS como Mestra de Notório Saber. Seu cocar colorido e um sorriso largo aqueceram nossos corações. Debaixo da lona preta, um grupo de estudantes kanhgangs tomava café numa mesa improvisada. Depois do cumprimento de bom dia, entregamos as nossas contribuições e imediatamente a mestra Iracema nos perguntou: já tomaram café? Um gesto de comunhão e partilha se anunciava. Agradecemos o convite, pois já tínhamos tomado café em nossas casas protegidas, estávamos ali para aprender, para aprender como se faz a resistência. Em que podemos ajudar?, perguntamos; precisamos de água, foi a resposta. Havia muitas garrafas de água vazias que precisavam ser cheias, mas para isso era necessário um carro. A professora presente tinha ido de carro, e foi possível um pequeno mutirão para buscar um local para encher os galões de água. Ali não havia água encanada, não havia luz, mas havia um povo, um desejo, uma mobilização por direitos. Com aquele encontro firmamos nosso compromisso acadêmico e estendemos a sua compreensão para o que é, também, social.  Essa luta não é – ou não deveria ser – apenas de estudantes indígenas por políticas públicas que garantam o direito à moradia e permanência na universidade. Entendemos que é uma pauta urgente em nossa sociedade, pois hoje a população indígena, juntamente com a população negra, é a mais ameaçada, aquela que os anseios capitalistas e colonialistas querem exterminar.

A reivindicação por uma casa de estudantes indígenas não é nova. A demanda vem sendo explicitada há alguns anos e se fundamenta, principalmente, na necessidade das mulheres poderem estar com os seus filhos, filhas, filhes. A maioria das estudantes indígenas que são mães vêm de aldeias distantes da cidade de Porto Alegre. Além disso, o modo de vida comunitário dos povos indígenas não pode ser preservado no modelo individualista da Casa de Estudantes (CEU) não-indígenas. Somado a isso, vivências de violência racista também se fazem presentes na CEU. Em 2016 houve o espancamento de um estudante indígena por outros estudantes na entrada da residência estudantil, ao visitar um parente. Esses são alguns dos argumentos importantes no pedido por esse espaço. 

A assistente social e mestranda Kanhgang Angélica Domingos (Ninhpryg), ativista da ocupação, ensina em suas falas e escritas que os povos kanhgangs gostam de estar juntos, de dar risadas, de sentar ao redor do fogo pra tomar um chimarrão e deixar as crianças correrem e brincarem. Essas vivências são consideradas “barulhentas” pelos modos de vida individualista e excessivamente “sérios” que a universidade produz. A reivindicação pelo direito de uma moradia em que as culturas indígenas sejam mantidas é, muitas vezes, lida como se fosse um privilégio, mas Angélica nos provoca ao dizer que a casa dos(as) estudantes indígenas é para somar, não para separar. Ela afirma a perspectiva da complementaridade da sua cultura, ou seja, podemos conviver juntas e aprender coletivamente. Outro ensinamento importante é sobre a necessidade de uma convivência intergeracional, em todos os espaços da vida. Crianças, pessoas adultas e idosas devem estar juntas, aprendendo na convivência cotidiana. (DOMINGOS, 2016).

Depois desse pequeno relato do que aprendemos naquele encontro, agora queremos convidar vocês, que nos leem, a pensar se esta luta é somente de estudantes indígenas. Sabemos que as universidades públicas tiveram seus recursos financeiros fortemente abalados pela emenda constitucional n° 95, com o congelamento do seu orçamento por 20 exercícios financeiros/anos. Ficou estabelecido um limite individualizado para cada ano fiscal, dificultando a possibilidade de crescimento coletivo da UFRGS. Para a construção de uma Casa de Estudante Indígena será necessário investimento financeiro. Quanto aos recursos, para além da burocracia financeira e das disputas por recursos internos, nos perguntamos se em conjunto com o coletivo indígena não podemos pensar formas colaborativas de construir essa casa. Será que a universidade não tem recursos pessoais e intelectuais, incluindo toda a comunidade estudantil, para contribuir nessa construção? Mas suspendamos, por um momento, essa questão, pois se trata de decisão política sobre como alocar os recursos escassos, o que significa disputas de poder acirradas. Sim, temos ciência disso. Entretanto é urgente dialogarmos, nos debruçarmos sobre essa demanda, principalmente numa disciplina que tematiza Direitos Humanos e Direito Ambiental. Então a pergunta inicial retorna: por que precisamos de uma casa de estudantes indígenas na UFRGS?

É preciso reconhecer que a moradia não é uma realidade igualitária para as pessoas que vivem em nosso país. A luta por território é antiga, violenta e profundamente desigual. Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Eliane Potiguara e uma miríade de intelectuais indígenas têm possibilitado à sociedade brasileira reflexões teórico-práticas, políticas e filosóficas profundamente implicadas com a nossa sobrevivência no planeta. Aliado a isso, as proposições indígenas ensinam formas de vida coletivas e colaborativas que promovem o bem viver e a saúde de modo integral e integrado. E talvez exatamente sobre esse aspecto urge um dos maiores aprendizados, o reconhecimento das ontologias políticas dos territórios, ou seja, a dimensão da própria vida, as ontologias relacionais, aquelas “em que nada (nem humanos nem não-humanos) preexiste às relações que nos constituem. Todos existimos porque existe tudo” (ESCOBAR, 2015). Não se trata, portanto, apenas de um lugar para morar, mas de territórios multidimensionais de existência para existências de significados multidimensionais, uma mirada ampla que contempla dignidade, autonomia e identidade de modo tão pragmático quanto espiritual, vívido, encarnado e também encantado – composto por múltiplos cantos. 

A entrada de estudantes indígenas na universidade – e também negros(as), quilombolas, pessoas com deficiência, migrantes e refugiados(as) – possibilita uma troca de saberes fundamentais ao nosso tempo. O Brasil é uma terra de mais de duzentas etnias, mais de trezentas línguas, o que significa uma riqueza cultural e epistemológica capaz de balançar os alicerces do pensamento ocidental branco. Nessa direção, Kabengele Munanga (2009) traça uma analogia entre a vida biológica (natureza) e a vida social/cultural (humana), afirmando a centralidade da diversidade para que a vida possa sobreviver e prosperar. 

A reserva de vagas para estudantes indígenas é uma conquista importante para o acesso à universidade pública desses povos historicamente marginalizados e excluídos desse espaço de saber-poder e deve inserir-se em uma perspectiva, sobretudo, de reparação histórica. Contudo, as políticas de permanência na universidade precisam avançar numa direção mais coletiva, digna, justa e solidária, que garanta a vivência de suas culturas. A universidade precisa fortalecer seus espaços de ampliação, soma e multiplicação de saberes. Precisa potencializar um ambiente no qual os diversos conhecimentos se entrelaçam para o enfrentamento das históricas desigualdades e injustiças da nossa sociedade. A UFRGS já é um espaço rico de produção de conhecimentos e se democratizou com as ações afirmativas. A artesania de um ambiente multicultural é feita por pessoas diversas. Por isso mesmo, são fundamentais políticas públicas que ampliem os acessos e garantam a permanência de estudantes cotistas e indígenas.

Uma vez, no espaço coletivo de discussão sobre a reserva de vagas indígenas nos cursos da universidade, em que as lideranças indígenas se reúnem com a universidade para escolherem os cursos que são necessários para as suas comunidades (REF), escutamos de um cacique que a sua comunidade não tinha interesse em vagas do curso de psicologia. O seu argumento era de que a psicologia ia levar a doença para a aldeia. Num misto de surpresa e tristeza, as psicólogas e professoras brancas presentes entenderam o recado: como as nossas teorias estrangeiras, individualistas e capitalistas do mundo poderiam compreender a produção de subjetividade presente nos povos indígenas? Teriam os currículos da psicologia conhecimentos compatíveis com os modos de vida dos povos indígenas? Por sorte algumas mulheres indígenas não desistiram de apostar no curso de psicologia. Rejane Kanhgang, a primeira psicóloga indígena, e agora mestranda em psicologia social e institucional nos ensina:

Como falar de uma psicologia europeia ocidental para um povo que acredita no sobrenatural, que cultiva seus ritos, seus banhos de ervas? Aqueles que aprenderam a sobreviver em um mundo onde ver/ouvir vozes é tido como louco, ao contrário de todo seu aprendizado onde este tipo de contato mostra sua conexão com outros mundos, sentir-se vivo, abraçar uma árvore, pedir permissão à mãe terra, aos rios. Buscamos levar o conhecimento de nosso povo para dentro da universidade (CARVALHO, 2020, p. 55).

Acreditamos que a casa dos(as) estudantes indígenas é importante para toda a comunidade acadêmica da UFRGS, pois será um espaço de trocas e aprendizagens por uma sociedade mais democrática e dialógica. Quantos de nós, estudantes, teremos a oportunidade de resgatarmos conhecimentos ancestrais que nos são familiares de alguma forma, que nos mobilizam e muitas vezes nos afetam sobremaneira, posto que estão gravados em nossas memórias afetivas, oriundo das contações de histórias sobre nossas avós e bisavós? Reconhecer e resgatar tal ancestralidade não seriam, portanto, movimentos intrínsecos à constituição dos direitos humanos epistêmicos, uma vez que lembrar, intuir, perceber e inferir, para além de serem considerados direitos intransponíveis ou inegociáveis, são, sobretudo, inalienáveis (DEMÉTRIO; BENSUSAN, 2019)? 

Retomamos as palavras de Mirian Krexu sobre a importância dos povos indígenas na construção do nosso país e a dívida histórica que a sociedade brasileira insiste em negar: 

O indígena não é aquele que você conhece dos antigos livros de história, porque não foi ele que escreveu o livro, então nem sempre a sua versão é contada. Ele não está apenas na aldeia tentando sobreviver, ele está na cidade, na universidade, no mercado de trabalho, na arte, na televisão, porque o Brasil todo é terra indígena. Sabe aquela história de que “sua bisavó foi pega no laço ?” Isso quer dizer que talvez seu bisavô tenha sido um sequestrador, então acho que você deveria ter mais orgulho do sangue indígena que corre em suas veias. A mãe do Brasil é indígena (KREXU, 2021).

A possibilidade de vivenciar, por pouco tempo que seja, o modo de luta e resistência de estudantes indígenas nos faz conscientes de que são reivindicações essenciais e que há muito ainda a ser dito e feito por nós, que viemos de uma situação de privilégio, e que esse desafio nos está posto. Que possamos então cumprir o que foi prometido à kujá Iracema Rã-Nga Nascimento quando nos despedimos, que possamos falar sobre as causas indígenas, divulgá-las, para que as políticas de inclusão já existentes, sejam de fato efetivadas. Ou seria dizer: para que as políticas de exclusão deixem, por fim, de operar sistemicamente? 

Por fim, manifestamos nosso apoio ao coletivo indígena que, em ação direta e emergencial na tarde de quarta-feira, 30 de março de 2022, após uma madrugada de intenso temporal, retomou o espaço da Creche da UFRGS situado no campus Saúde, ocupando e fundando a Casa de Estudantes Indígenas, há tantos anos esperada. Celeridade para a garantia de direitos fundamentais é condição fundante de práticas em Direitos Humanos, responsabilidade de toda e qualquer instituição comprometida com a democracia e a justiça social. No mesmo dia, os jornais da cidade anunciavam que o movimento de retomada indígena conquistou o compromisso da instituição de ensino de transformar a casa onde antes funcionava a creche da universidade para ser a moradia estudantil indígena (SANDER, 2022). 

O Brasil é território indígena, logo, a universidade pública também o é. E se afirmações como essas, ainda que óbvias, precisam ser ditas para que sejam vistas – como outras tantas em tempos de negacionismos oriundos de pensamentos e afetos monoculturais – seu caráter político reverbera o chamado coletivo urgente, vocalizado por Geni Núñez (2021): é preciso reflorestar nossa existência!


Referências

CARVALHO, Rejane Nunes de. Kanhgang Êg My Há: Para Uma Psicologia Kaingang. Trabalho De Conclusão De Curso. Instituto De Psicologia. Universidade Federal Do Rio Grande DO SUL. 2020. Disponível aqui.

DEMÉTRIO, Fran; BENSUSAN, Hilan Nissior. O conhecimento dos outros: a defesa dos direitos humanos epistêmicos. Revista do CEAM, Brasília, v.5, n.1, p.110–124, jan/jul. 2019. Disponível aqui.

DOMINGOS, Angélica (Ninhpryg). O Bem Viver Kaingang: Perspectivas de um modo de vida para construção de políticas sociais com os coletivos indígenas. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA CURSO DE SERVIÇO SOCIAL. Porto Alegre, 2016. Disponível aqui.

ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 35, p. 89-100, dez. 2015. Disponível aqui.

GUERREIRO, Raquel de Oliveira. Fazer um corpo todo de escuta: uma travessia existencial. Tese de Doutorado.  Programa De Pós-Graduação Em Psicologia Social E Institucional. Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul. Instituto De Psicologia, Porto Alegre, 2021. 

MUNANGA, Kabengele. Relações Étnico-Raciais. Videoaula de Introdução à Teoria Social e Relações Raciais. 4ª aula do curso ERER – Educação para as relações étnico raciais. UFF, 2009/2010. Disponível aqui.

NÚÑEZ, Geni. Monoculturas do pensamento e a importância do reflorestamento do imaginário. ClimaCom – Diante dos Negacionismos [online], Campinas, ano 8, n. 21. novembro 2021. Disponível aqui.

KREXU, Mirian. A Mãe do Brasil é Indígena, 2021. Disponível aqui.

SANDER, ISABELLA. Creche da UFRGS será transformada em casa do estudante indígena. Grupo Zero Hora – Educação e Trabalho. Porto Alegre, 30/03/2022. Disponível aqui.


Raquel da Silva Silveira – Professora do Instituto de Psicologia/UFRGS

Lara Werner – Graduanda em Saúde Coletiva/UFRGS

Ângela Cristina Bastos Lummertz – Pedagoga, graduanda em Ciências Sociais/UFRGS

Anilton Junior de Lara Nunes – Graduando em Ciências Jurídicas/UFRGS e a turma da disciplina de Psicologia de Direitos Humanos, Direito Ambiental e Inclusão Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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