Ensaio

Ribeiro Cancella: o “velho mestre” do teatro

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Ribeiro Cancella: o “velho mestre” do teatro Ribeiro Cancella (Imagem acervo da família Ribeiro Cancella)

No início de 2020, ao pesquisar em alguns livros sobre o teatro em Porto Alegre entre as décadas de 1920-1940, encontrei escassas e sintetizadas informações, mas um nome em especial chamou a minha atenção: Ribeiro Cancella. Um livro antigo mencionava um espetáculo apresentado pela companhia teatral dirigida por Cancella, mas o que atiçou a minha curiosidade foi o nome do teatro criado por ele na Porto Alegre da década de 1940: Teatro de Emergência. Pensei que o teatro que agora, durante a pandemia, tentamos manter vivo nas plataformas virtuais, bem poderia ter esse nome: Teatro de Emergência. Guardei o nome em um caderno de anotações, na esperança de algum dia encontrar maiores informações.

Alguns meses depois, coincidentemente, entra em contato comigo, através de uma rede social, Andrea Back, neta de Ribeiro Cancella, que tomou conhecimento do trabalho que desenvolvo no canal (de YouTube) História do Teatro e pensou que eu pudesse ter interesse em olhar o material que herdara da sua avó, a atriz Estelina Guelfi (segunda esposa de Ribeiro Cancella e uma das atrizes da sua companhia).

Fiquei eufórica para ver os álbuns que guardavam alguns fragmentos de uma grande história que para mim era misteriosa. Compartilho aqui um pouco  das informações e imagens que pude conhecer e que, certamente, fazem parte de uma história importante do teatro gaúcho.

André Ribeiro Cancella, que chegou a ser considerado o maior ator do RS,  nasceu em Portugal no dia 29 de março de 1885, mas ainda criança veio morar com a família em Curitiba. O jovem que sempre sonhou em ser ator estreou nos palcos profissionais no ano de 1910, pelas mãos da grande atriz maranhense Apolônia Pinto (1854-1937) e atuou ao lado de ícones da história do teatro brasileiro como Leopoldo Fróes (1882-1832) e Itália Fausta (1879-1951). 

Cancella participou de várias turnês teatrais pelo Brasil, mas é na cidade de Pelotas, no ano de 1915, que fixa residência ao conhecer a primeira esposa: a atriz Antonieta Oliveira. O casamento dura apenas cinco anos, pois em 1920 Antonieta e os dois filhos mais novos do casal são vítimas da gripe espanhola, pandemia mundial que matou milhões de pessoas entre os anos de 1918 e 1920. Carlos Cancella (Badico, como era conhecido), o filho mais velho de Ribeiro Cancella, sobreviveu, pois estava em turnê ao lado do pai quando ocorreu o trágico episódio familiar.

Na década de 1920, junto ao ator Aldo Zapparoli, Cancella desmente o ditado que diz que “santo de casa não faz milagres” ao realizar uma temporada de meses com a Companhia de Revistas Cancella-Zaparolli no Cine Theatro Coliseu, localizado no centro de Porto Alegre, junto à praça Osvaldo Cruz. O sucesso de público e crítica foi tão grande que incentivou escritores locais a criarem peças para a companhia representar.

À base de muitos esforços e sacrifícios, Cancella manteve companhias próprias que levaram teatro a muitos palcos do RS, com elencos formados, majoritariamente, por atores e atrizes gaúchos. 


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Cartaz de Divulgação da Companhia Ribeiro Cancella (Imagem: acervo da família Ribeiro Cancella)

Após muitos anos, o viúvo Cancella casa com a jovem caxiense Estelina Guelfi (1917-1997), que passa a integrar a companhia teatral do marido e ganha destaque como atriz. No Uruguai, na década de 1940, Cancella teve grande êxito com a chamada Companhia Regional Brasileira Ribeiro Cancella.

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Jornal uruguaio de 1941 registra a estreia de Estelina como atriz da Companhia Ribeiro Cancella (Imagem: acervo da família Ribeiro Cancella)

Cancella ficou conhecido como “velho mestre”, pois durante toda a sua carreira incentivou novos artistas e revelou nomes importantes do teatro e do radioteatro, como: Pinguinho, Adolfo Aveiro (o Jeca Tatu gaúcho), Delorges Caminha, Darcy Cazarré, Pery Borges, Badico, Fortunato Ferreira, Nilza Terezinha, Carmen Silva, Estelina Cancella, Júlio Costa, Augusto Biglia, entre tantos outros. 

Em 1943, o Cine Theatro Coliseu de Porto Alegre fecha as portas devido às péssimas condições estruturais do imponente prédio em estilo neoclássico, com capacidade para 2.500 pessoas. 

Cine Theatro Coliseu em Porto Alegre (Reprodução)

Diante da escassez de espaços para apresentações na capital, Cancella toma a iniciativa de fundar o seu próprio teatro, que não à toa ganhou o nome de Teatro de Emergência, pois serviu de palco para muitos artistas sobreviverem da arte em terras gaúchas. Naquele período já era comum os artistas gaúchos migrarem para o eixo Rio-São Paulo em busca de trabalho. O cantor Lupicínio Rodrigues era uma das estrelas constantes do Teatro de Emergência, que tinha como grande colaborador o ator Álvaro de Souza.

Segundo relatos de Sandra Cancella, filha  do “velho mestre”, o Teatro de Emergência ficava localizado no entroncamento da Azenha com o Partenon e tinha espaço para ampla plateia. A programação era variada e contava com a apresentação de inúmeras peças teatrais: “A mulher que veio de Londres”, “Os transviados” e “O martir do calvário”, que fazia especial sucesso na semana santa, são alguns dos títulos que temos registro.

Além das apresentações em Porto Alegre, a companhia de Cancella viajava pelo interior, sendo que no verão os artistas do grupo ficavam instalados na praia de Tramandai, onde realizavam exitosas temporadas.

Nas quatro décadas dedicadas ao teatro, Cancella também trabalhou no radioteatro, na televisão e no cinema, onde protagonizou um dos primeiros filmes brasileiros, “O crime dos banhados” (1913), um filme com direção do português Francisco Santos (1873-1937), baseado em um crime hediondo ocorrido no interior gaúcho. 


Ribeiro Cancella interpretou o delegado no filme “O crime dos banhados” (Imagem: Acervo da família Ribeiro Cancella)

Além da carreira artística, Cancella ajudou Antônio Amabille (1906-1953), o conhecido radialista Piratini, a fundar a Casa do Artista Riograndense em 1949, instituição na qual Cancella exerceu o cargo de administrador durante cinco anos. Segundo o humorista gaúcho Carlos Nobre (1929-1985), em um jornal da década de 1950, Cancella era uma figura popular e carismática, que colecionava elogios nada modestos: 

“Um dos mais perfeitos atores brasileiros”

“Um dos mais aplaudidos”

“Velho e consagrado intérprete do caipirismo, de nome firmado em todas as plateias cultas do país”

Cancella tinha diploma de perito contador, trabalho de caráter administrativo que proporcionou o sustento da família do “velho mestre” quando viver somente de arte tornou-se impossível.

No dia 30 de setembro de 1954 Cancella falece, mas deixa um legado que se perpetuou através da carreira de tantos artistas por ele lançados, como a grande atriz Carmen Silva, que se tornara sua nora ao casar com o filho Badico, destacado músico e produtor de rádio e televisão.

Apesar da grande trajetória de Cancella carecer de registros que contemplem de fato a sua história, as homenagens estão presentes, seja no bairro Menino Deus em Porto Alegre, que tem uma rua com o seu nome, ou na cidade de Viamão, que homenageou Cancella ao batizar o teatro municipal com o seu nome.

Abaixo, para encerrar essa pequena homenagem à trajetória de um homem que dedicou 44 anos da sua vida ao teatro e não poupou esforços para fortalecer a classe artística, dois materiais de divulgação das peças “Sogra?… Nem com açúcar!” e “O Badico quer casar!”, que demostram o bom humor e a irreverência dos espetáculos da companhia que iluminou os palcos gaúchos com teatro, esquetes, anedotas e muita música. Bravo!

(Imagem Acervo da família Ribeiro Cancella)

(Imagem Acervo da família Ribeiro Cancella)


Juliana Wolkmer é atriz, pesquisadora e professora. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS. Mestra em Artes Cênicas e Especialista em Pedagogia da Arte, possui graduações em Teatro e História (UFRGS). É idealizadora e produtora do canal História do Teatro

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