Sem fake news não haveria Revolução de 30
Os 90 anos da Revolução de 30, que se completam em outubro, coincidem com as investigações oficiais das chamadas fake news. É uma ironia da história que poderes tributários dos acontecimentos de 1930, como nossos Legislativo e Judiciário, se dediquem a uma cruzada contra notícias fraudulentas. Afinal, a República Velha não teria terminado – ou pelo menos não da maneira como terminou – sem uma calúnia amplamente aceita como verdade factual.
No dia 26 de julho de 1930, o então presidente (na época, alguns Estados brasileiros tinham presidentes, não governadores) da Paraíba, João Pessoa, foi morto com dois tiros no peito na Confeitaria A Glória, em Recife, Pernambuco. O assassino, João Dantas, pertencia a uma família que rompera com Pessoa e sua administração. A guerra intraoligárquica em curso na Paraíba de 1930 tinha componentes regionais: o governo estadual afrontara interesses de coronéis do interior ao taxar bens oriundos de fora do Estado, e Pessoa havia preterido outras famílias em favor da sua ao compor nominata de candidatos ao Legislativo. Unidos, os oposicionistas recorreram às armas.
Na mistura, entrou também o tempero nacional. Quatro meses antes, João Pessoa havia sido derrotado como candidato a vice-presidente na chapa da Aliança Liberal, encabeçada por Getúlio Vargas. O vencedor, o paulista Júlio Prestes, tinha apoio do presidente Washington Luís. Cumpria-se a regra não escrita da política apelidada de café-com-leite: de 1894 a 1930, apenas dois presidentes, o gaúcho Hermes da Fonseca e o paraibano Epitácio Pessoa, não saíram de São Paulo ou de Minas Gerais.
O Brasil daqueles tempos era uma república constitucional, mas estava longe de ser uma democracia. Durante todo o mandato do presidente Artur Bernardes, de 1922 a 1926, vigorou estado de sítio. Revoltas militares ou civis-militares sucediam-se na Capital Federal e nos Estados: 1922, 1923, 1924, 1925, 1926. O governo, qualquer governo, era profundamente impopular, como costuma ocorrer em regimes nos quais imperam a repressão e a fraude eleitoral. Com a provável exceção da cidade do Rio, em todo o país as eleições ocorriam mediante coerção de eleitores (o voto não era secreto), falsificação de cédulas e listas eleitorais e outras mutretas.
Num ambiente assim carregado, o crime de 26 de julho teve motivação pessoal ou, como se dizia na época, de “lavagem de honra”. Quatro dias antes, a polícia estadual havia invadido o sobrado daquele que viria a ser seu assassino em busca de armas supostamente destinadas aos revoltosos do município de Princesa, proclamado “território livre” pelos inimigos de Pessoa. Armamento não encontraram, mas levaram cartas e fotos eróticas do dono da casa e da amante, Anayde Beiriz, professora e poeta. Houve filas para ver o material apreendido, exposto numa delegacia por ordem de Pessoa.
Os vitoriosos de 30 dedicaram toneladas de papel, tinta e saliva a moldar a versão segundo a qual o assassinato de João Pessoa foi a “causa” da queda do presidente Washington Luís. Foi empreendimento de fôlego, que reuniu personagens antagônicos antes e depois do episódio: oligarcas, latifundiários, militares, empresários, intelectuais, mulheres e homens do povo. Papel preponderante coube ao magnata da comunicação Assis Chateaubriand, que, segundo seu biógrafo Fernando Morais, ditou “letra por letra”, por telefone, a manchete do Diário da Noite, do Rio: “João Pessoa ASSASSINADO! O criminoso: João Duarte Dantas. O responsável: o governo federal”.
O frentão que instalou Getúlio Vargas por 15 anos no Palácio do Catete teve vida curta, mas não se pode dizer o mesmo da santificação de seu ex-companheiro de chapa nas eleições presidenciais de 1º de março de 1930. Nove décadas depois, João Pessoa segue firme sobre pedestais em praças e em placas de avenidas e ruas de pelo menos 18 Estados, alguns dos quais não existiam quando o homenageado tombou no assoalho da Confeitaria A Glória.
Pessoa sintetiza, malgré lui, as incongruências de 30. Vivo, foi figurão da República Velha à sombra do tio, Epitácio Pessoa, presidente de 1919 a 1922. Morto, virou símbolo da derrubada da antiga ordem. A bordo dos próprios sapatos, pouco pisou na capital da Paraíba – nasceu em Umbuzeiro, onde a família mandava e desmandava, e passou a maior parte da vida no Rio. Na sepultura, legou o nome à velha cidade fundada no dia de Nossa Senhora das Neves, 5 de agosto. João Pessoa foi uma ausência que preencheu uma lacuna.
Mestres no ofício, os gaúchos foram pioneiros na transfiguração de Pessoa em santo secular, como relata o historiador José Luciano de Queiroz Aires no livro A fabricação do mito João Pessoa: batalhas de memórias na Paraíba (1930-1945). Em setembro de 1930, mais de um mês antes da derrubada de Washington Luís, os vereadores de Pelotas comunicavam o governo da Paraíba da mudança do nome da Rua da Liberdade para Rua João Pessoa. Já vitorioso o golpe, em outubro, foi a vez de Porto Alegre rebatizar a Avenida da Redenção como Avenida João Pessoa.
O fenômeno teve, porém, dimensões nacionais. Houve casos paroxísticos, como o de Fortaleza, onde uma estrada de chão foi revestida de concreto em 1929 pelo governo federal e batizada como Avenida Washington Luís. Depois da “revolução”, o povo encarregou-se de arrancar as placas e mudar o nome da via para João Pessoa. A operação sobreviveu ao próprio varguismo, como mostra a decisão dos deputados paraibanos de 1967, em plena ditadura militar, de instituir feriado estadual em 26 de julho.
O envolvimento de Washington Luís na morte de João Pessoa não foi a única notícia falsa de nossa história. Em 1886, a imprensa carioca pintou o povoado miserável de Canudos, na Bahia, como centro de um complô pela restauração monárquica – e mesmo um observador inteligente como Euclides da Cunha, enviado como repórter à região, endossou inicialmente essa versão. De Canudos não sobrou “pedra sobre pedra”, como determinou o presidente Prudente de Morais. Em 1921, o jornal Correio da Manhã publicou cartas falsas atribuídas ao então candidato a presidente, Artur Bernardes, com ofensas aos militares e ao ex-presidente Nilo Peçanha. O episódio foi o estopim da revolta dos 18 do Forte, no ano seguinte, e contribuiu para incompatibilizar para sempre Bernardes e os jovens oficiais saídos das escolas militares e agrupados na corrente conhecida como tenentismo. Fiscais do Ministério da Verdade interessados em vigiar e punir fake news terão muito o que escavar.
Luiz Antônio Araujo é jornalista e professor de Jornalismo na Famecos PUCRS. É autor de “Oriente em revista” (Insular, no prelo) e prepara biografia do crítico Mario Pedrosa.