Ensaio

Sirleys, Neis, Beneditas, Bias, Pedros, Eduardos e Bebetos: os falsos dilemas da Lei Aldir Blanc como estado da arte

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Sirleys, Neis, Beneditas, Bias, Pedros, Eduardos e Bebetos: os falsos dilemas da Lei Aldir Blanc como estado da arte

Atualização: o presente artigo foi escrito antes do cancelamento do Prêmio Trajetórias, anunciado no dia 15 pela Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul e pelo Instituto Trocando Ideia. Consultado, o autor preferiu manter a redação original, decisão acatada pela Parêntese, já que o texto oferece uma reflexão que vai além do imediato.

A Lei Aldir Blanc, em seu feito histórico de colocar a Cultura no centro do debate e da vida nacional em plena crise sanitária e política, trouxe à tona questões sobre o campo da produção cultural, seus agentes culturais, suas finalidades e mecanismos de política pública. O protagonismo da comunidade cultural e a liderança iluminada de duas deputadas, Benedita da Silva e Jandira Feghali, por si só já caracterizam vitórias em tempos de obscurantismo, fascismo e pandemia, onde a perseguição e silenciamento de artistas e intelectuais ressurgiu terrivelmente. 

Esta lei foi aprovada por todos os partidos, com exceção do Partido Novo, que se posicionou contra “privilégios para este setor específico, enquanto tantos outros estão sofrendo igual ou mais”. Ao longo deste texto, vamos entender este setor específico e compreender porque é necessário apoiá-lo e que as ações não se constituem privilégio algum, mas interesse público da mais alta grandeza e função social. No decorrer das discussões, vamos compreender as contradições que o campo apresenta, caracterizadas por falsos dilemas: produção artística versus cultura popular, trajetória versus consagração, fazedores da cultura versus classe artística.


Todos os três, chapéu na mão

A Lei de Emergência Cultural ativou recursos retidos, parados e não investidos nos últimos anos. Esses recursos já faziam muita falta, mesmo sem o advento da Covid-19. O brilhantismo da lei, além do seu mérito e sofisticação, priorizou a descentralização dos recursos entre Estados e Municípios, garantindo verba emergencial de subsistência para um dos setores mais afetados pela pandemia. O setor cultural, como é sabido, é marcado pela informalidade e instabilidade econômica – são os chamados trabalhadores “intermitentes” –, constituído de espetáculos, eventos, exposições, feiras, encontros e aglomerações. Foi precisamente numa pandemia, que ficou clara a essencialidade da arte e da cultura na sociedade, dando sentido à vida, conforto às pessoas e força para superar o drama do isolamento social.

Houve morosidade do Governo Federal que, assim como na questão das vacinas, atrasou a simples regulamentação da lei, prorrogando em quase dois meses sua implementação. Antes disso, a campanha “Cadê Regina?” já denunciava o silêncio da então Secretaria Especial da Cultura sobre o tema da pandemia. Ficou cada vez mais evidente o descaso estrutural e a tensão com a área, pois o Sistema Nacional de Cultura (SNC), que teve início no Governo Lula e que não chegou a ser implementado como deveria, já estava em colapso antes mesmo de existir. Esse sistema, que garante a articulação entre o Governo Federal, Estados, Municípios e Sociedade Civil, utiliza-se de Conselhos, Planos e Fundos de Cultura – os CPFs do SNC – para implementar políticas públicas em nível nacional de forma articulada. É o SUS da Cultura. 

Considerando que a maioria das cidades brasileiras ainda não possui todos esses mecanismos, a generosa lei ainda contribuiu para a abertura de fundos emergenciais e planos de ação urgentes. Mesmo nos lugares com alguma relação com o SNC, dada a desarticulação dos Conselhos, Colegiados e Conferências do Setor, há mais de cinco anos, a demanda represada de participação da comunidade artístico-cultural foi imensa e intensa. Havia, no entanto, considerável acúmulo, qualificação e profundidade das discussões decorrentes do grande movimento de implementação do Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC), já há mais de dez anos.

Este processo reacendeu a classe artística brasileira, tão esperançosa e incansável. Reunida em lives, GTs, comissões e conselhos, artistas e ativistas sempre abraçaram e defenderam cotas e outras ações afirmativas e de inclusão de povos tradicionais, comunidades e espaços informais. Em reuniões e plenárias que participei, não vi nenhuma mesquinhez ou corporativismo. Ao contrário, vi artistas de várias frentes lado a lado com indígenas e quilombolas nas discussões. Em alguns casos, agentes de comunidades tradicionais não presentes fisicamente, foram representados por instâncias como o Ministério Público em fóruns fundamentais, tais como o GT Articula LAB da ALRS, coordenado por Sofia Cavedon. Artistas sentaram-se com Gestores, Secretarias, Prefeituras, FAMURS, OAB e tantas outras entidades, de forma atenta e colaborativa. 

Por outro lado, houve também esvaziamento de discussões e pouco empenho dos gestores culturais para reativar as instâncias de formulação das políticas públicas. Isto vem de longe, não é privilégio do momento atual. Artistas e agentes culturais, muitos deles com sua renda comprometida e sem capacidade de trabalho, encararam as discussões e trabalharam de graça para os gestores públicos e entidades, interpretando leis, fazendo seminários e grupos de trabalho, participando de comissões para indicar diretrizes e subsidiar a aplicação dos recursos, apesar de todas as dificuldades pessoais. Claro que não sem tensões. E aqui entra a necessidade de diálogo e a capacidade de escuta.

Aproveitar este trabalho gratuito e voluntário realizado pelo conjunto da comunidade cultural, viabilizando, avaliando aspectos legais e a adequação de propostas e formulações, seria o desejável de qualquer gestão. Sobretudo, caberia aos governos articular consensos e prioridades. O que aconteceu? Alguns gestores, em várias esferas, sentiram-se ameaçados e constrangidos. Pudera: depois de anos de esvaziamento das instâncias de formulação de políticas públicas, inconstância ou ausência de aplicação de fundos e mecanismos de fomento, foram atropelados pela Lei Aldir Blanc, encontrando-se com uma batata quente de dezenas de milhões de reais em mãos para atender de forma emergencial demandas reprimidas há muito. Artistas com fome e indignados. Questões históricas de opressão na mesa e na ordem do dia construindo também a chance de serem ouvidas e convertidas em políticas públicas. 

Aqui, o primeiro grande problema, aquele que gerou efeito cascata e uma sequência de percalços, amplificados a cada dia, como bola de neve. Transformaram uma parcela importante de uma lei “sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública” em ação de Fomento à Cultura. A lei define as formas de aplicação de recursos em seu artigo 2º, através de três incisos. Todos três chapéu na mão. 

O primeiro, o pai, renda emergencial, foi apelidado de Auxílio. O segundo, seu irmão, renda para espaços culturais, chamou-se Subsídio. O terceiro, mais complexo, foi o amante que deu a mão a todo mundo: “manutenção de agentes, espaços e iniciativas, bem como realizações artísticas…”. Prestem bem atenção no termo ‘bem como”. Na falta de um nome que sintetizasse o inciso III, parágrafo denso, destinado às questões não abordadas pelos demais, ele foi apelidado para fins de comunicação das instâncias de discussão como Fomento, e não Manutenção. Fazia sentido, mas eis aí a raiz incestuosa que propiciou toda a confusão. Ocorre que a lei trazia o termo Fomento apenas no artigo 11º, sobre linhas de crédito bancário que, aliás, nunca foram aplicadas por estes pagos (no sentido de querência, rincão, porque na verdade não foram pagos, no sentido de pagamento, mesmo). Sendo assim, o Inciso III, agora Fomento, virou ao mesmo tempo zona franca e terreno minado. 

Concebido para atingir realmente todo o setor que não fora atingido nos Incisos I e II – que priorizavam precisamente pessoas físicas de baixa renda, agentes e espaços na informalidade, entre outras, o Inciso III – o terceiro que chegou – possibilitou a estados e municípios destinarem verbas da maneira que melhor lhes conviesse. Isto, para contemplar quem não havia sido contemplado ainda. Ocorre que o Inciso III, convertido em Fomento, sofreu uma redução significativa de seu potencial e real finalidade, restringindo sua atuação apenas ao “bem como” previsto no texto da lei, ao invés de priorizar a manutenção de agentes, espaços e iniciativas. Acredito que todos temos uma noção da ideia de manutenção: pagar as contas, colocar comida na mesa, sobreviver, manter-se.

Sobre o Inciso I, o pai Auxílio. Entendo que deveria haver uma ampla distribuição de recursos neste quesito através da pulverização para pessoas físicas em comunidades indígenas, periféricas, tradicionais, quilombolas que, assim, receberiam de forma prioritária o que representava o primeiro e maior volume da Lei Aldir Blanc. Neste caso, R$ 30 Milhões previstos no Plano de Ação Estadual possibilitariam mais de 16 mil pessoas contempladas com um auxílio de renda básica de R$ 1.800,00, dividida em três cotas. Creio que boa parte das populações tradicionais e comunidades seria contemplada com Auxílio Emergencial, injetando um volume considerável de recursos em pequenas economias locais. 

O cadastro do Governo do Estado, no entanto, chegou ao inexpressivo número de 900 pessoas, aproximadamente. Muitos motivos para isso, dentre eles o desafio de cadastrar online pessoas em vulnerabilidade social pela Plataforma +Brasil do Governo Federal, pessoas que, via de regra, vivem sem conexão de internet e na informalidade. Neste quesito, vi artistas tentando auxiliar pessoas no cadastro, fazendo o que os governos não fizeram. Além do insucesso da ação governamental, pouco empenho: o pagamento do Auxílio Emergencial ficou por isso mesmo, sem grande incômodo, e os gestores viram-se seduzidos a destinar o excedente – e que excedente! – aos irmãos e amantes, com ênfase na ideia de que Manutenção restringia-se a Fomento

Subsídio. O segundo, seu irmão Inciso II, também tem grande caráter social, contemplando comunidades, aldeias, quilombos, espaços informais, coletivos de arte, pontos de cultura e entidades, como CTGs, por exemplo. Observando a aplicação do Inciso II em cidades como Pelotas, onde resido e acompanhei de perto a implementação da lei, os resultados do pagamento dos Subsídios foram mais satisfatórios, tendo, por exemplo, contemplado todas as comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas da cidade. No âmbito estadual, no entanto, 75 municípios (cerca de 16%), sequer apresentaram planos de ação e não se cadastraram para receber o mínimo dos recursos da LAB, abandonando suas comunidades culturais dado ao já mencionado pânico e despreparo de gestores e a inexistência do SNC.

Outro exemplo de distorção, descrita no documento de análise dos resultados em comunidades quilombolas, ainda não publicado, elaborado no GT Mapeamento da Conferência Estadual de Cultura pela pesquisadora, professora e bailarina Maria Falkembach, da UFPEL – que também atua no “Mapeamento da Dança no RS” – afirma que, “supondo que cada comunidade quilombola desses municípios receba R$ 30.000,00, referente aos R$ 10.000,00 mensais, por três meses conforme Inciso II, teríamos 10 cidades que ficariam no negativo, isto é, cujos recursos da LAB não seriam suficientes para atender nem ao menos essas comunidades”. Estamos falando da verba que seria repassada a municípios como Aceguá, Pedras Altas, Formigueiro, Tavares, Piratini, Colorado, Fortaleza dos Valos, Sertão e Cerrito, cuja presença quilombola está certificada e mapeada. 

No entanto, Maria ressalta em seu relatório que seria necessária uma política específica para, pelo menos, 30 dos 69 municípios com comunidades quilombolas no RS. A verba prevista, nestes casos, daria conta boa de parte de sua população cultural de povos tradicionais e comunidades, valorizando saberes e fazeres intrinsecamente ligados ao setor em áreas como artesanato, memória, música, diversidade linguística, povos tradicionais, terreiros, dentre outras manifestações características destas formas de vida. Uma ação possível seria a real busca ativa nestas comunidades para receberem o auxílio, além da atenção especial do Setor Público para que suas comunidades recebessem os recursos previstos nos outros incisos. Um pensador como Silvio Almeida leria estes dados como provas do racismo estrutural brasileiro, considerando que o “racismo é parte da ordem social”, frente à invisibilidade destas comunidades junto aos próprios gestores locais, bem como à sociedade e às políticas sociais brasileiras.

Voltando ao Inciso III. Àquele a quem a classe artística, Teresinha, daria a mão. Agora convertido em Fomento, ao invés de Manutenção, o amante também fez-se mais exuberante, sedutor e turbinado a partir dos recursos excedentes advindos do pai Auxílio. Ao remanejar recursos essenciais para a produção artística (fomento), destinados à manutenção de agentes, espaços e iniciativas, os gestores públicos fizeram algo equivalente a exigir que contemplados do Bolsa-Família, tivessem de varrer a rua ou pintar o meio-fio. Em outras palavras, sujeitos de direito foram transformados em prestadores de serviços. 

Dada a uberização do setor cultural e o próprio desejo de realizar ações culturais – pois a última coisa que artista faria seria ficar parado -, a maioria achou que era isso mesmo e não se ateve ao caráter intrínseco do direito básico de manutenção de suas vidas, o que, por si só, já aqueceria a economia e movimentaria o setor. Apenas para mencionar, um dos primeiros editais lançados em 2020 pela própria SEDAC, no valor de R$ 10 milhões, premiou “projetos que contratem serviços e levem arte e cultura para a população, no valor de R$ 100 mil a R$ 350 mil por projeto”. Outro, Aquisições de Bens e Materiais, destinou entre R$ 50 mil e R$ 100 mil para este tipo de ação. Assim, recursos emergenciais da Lei Aldir Blanc foram se configurando como ações ordinárias da pasta, certamente previstos na lei, mas de grande escala e complexidade para agentes, espaços e iniciativas menores acessarem. 

Além deste desvio de finalidade, digamos, a operacionalização do Inciso III se desdobrou na terceirização da execução das verbas através de editais gerenciados por parcerias, sob o argumento de maior agilidade, eficiência e descentralização dos recursos. Desta forma, a manutenção de agentes, espaços e iniciativas foi rifada em diferentes editais de fomento, por diferentes instâncias, criando buracos, sombreamentos, linhas cruzadas e apagões na aplicação desarticulada dos recursos. Isto seria plenamente evitável se houvesse compreensão do caráter de emergência na manutenção do setor. Assim, além de atrasar os repasses da lei previstos ainda para 2020, processos seletivos e avaliativos foram realizados somente agora em 2021, às pressas e com muita confusão.

Além de transformar a manutenção de agentes em uma série de editais de fomento difusos, a gestão pública deixou passar a oportunidade de estruturar a si mesma, assumindo a responsabilidade, reorganizando as pastas, contratando técnicos, mapeando o campo e procedendo imediatamente com a formulação de editais para a aplicação urgente dos recursos na manutenção de um setor em frangalhos. Os gestores buscaram sim, articulação, conferências, audiências, lives com setores e representações estaduais e municipais, mas o pânico, sabemos, turva a visão, ensurdece e desanima. 

E isso é humano. Gestores são humanos. E humanos brasileiros. Artistas também em pânico. E brasileiros. E com fome, conta de luz e aumento do preço do gás. Eis que uma Lei Emergencial, de aplicabilidade urgente, se converteu em um mosaico de soluções mirabolantes e desarticuladas. Obviamente com números e resultados. Como não haveria de ser? Confesso que, em alguns momentos, esta perspectiva de transformar uma lei emergencial em política de fomento causou-me sensação semelhante àquela que senti ao assistir “Dogville”, de Lars Von Trier: a de que a fome e a fragilidade do outro podem despertar crueldade e oportunismo, ao invés de empatia. Sem ser tão drástico, é muito difícil não se deixar seduzir pela ocasião propícia para se faturar politicamente sobre tragédias. Fora isto, é óbvio que os projetos e agentes contemplados mereciam os recursos e realizaram importantes ações.


O Campo da Produção Cultural e a Classe Artística

Aqui, um parêntese grande sobre o campo da produção cultural, objeto da Lei Aldir Blanc. Sem entrar em maiores detalhes das minhas pesquisas sobre os mecanismos de posicionamento, legitimação, valoração e consagração, cabe mencionar que os capitais culturais se articulam de forma dinâmica e autônoma neste campo específico, numa economia, por vezes, “reversa”, onde mecanismos simbólicos e econômicos correm em paralelo. 

Um dos meus estudos constata que trajetórias culturais se dão de forma multifacetada, difusa e de acordo com dinâmicas específicas de cada subcampo. Ou seja, o que conta como relevante numa determinada sub-área da cultura pode ser irrelevante para outra, sendo difícil estabelecer mensurações genéricas sem compreender as dinâmicas de cada subcampo em si. Nisto, segmentos de atuação são essenciais e precisam ser ouvidos em suas especificidades. 

Na música do RS, por exemplo, dada a ausência de uma indústria criativa organizada e sistematizada, percebe-se que estamos “longe demais dos capitais”, pensando num contexto que conte não somente com grandes gravadoras, mas sobretudo pequenos circuitos culturais sólidos e permanentes, vida noturna movimentada, espaços culturais abertos e equipados, bilheterias aquecidas e sobretudo, veículos de comunicação e meios de difusão. Existe uma grande crise de referenciais, mecanismos de legitimação e consagração. Quem é artista e quem não é? Quais são as referências do campo? Quem dá as cartas no jogo? Como se joga esse jogo? Como os jogadores entram em campo? 

A questão é bem complexa por estas bandas, literalmente. A situação é de televisões e rádios comerciais fechadas, jornalistas culturais demitidos e fundações extintas. Inclusive, seriam essas mesmas fundações que contribuiriam para a eficácia da distribuição e avaliação da LAB, como a Fundação de Economia e Estatística (FEE) e a Fundação Cultural Piratini. 

Curiosamente, optei por publicar uma breve descrição destas categorias de capital cultural no texto “A TVE e a FM Cultura na formação do habitus musical: questões pessoais, implicações coletivas”, no livro “Comunicação Pública no Brasil: desafios e perspectivas; memórias e depoimentos”, organizado por Nádia Santos e Newton Silva. A leitura deste livro, com acesso gratuito pelo site da Editora Fi é de suma importância, ainda mais agora no momento em que o Governador Eduardo Leite dá continuidade ao projeto de José Ivo Sartori ao demitir recentemente mais 17 servidores da TVE e da FM Cultura, tirando completamente o oxigênio das emissoras, já na UTI. 

Dentre os demitidos, Luiz Henrique Fontoura, do Programa “Conversa de Botequim”, um dos homenageados no meu texto naquele livro. Meu grande abraço a este querido servidor da cultura e sua trajetória de mais de trinta anos revelando novos talentos e consolidando carreiras, referências e formando público no campo específico da música brasileira, neste caso, criando vasos comunicantes entre cenas locais e nacionais.

Por que é importante conhecer o campo de produção cultural e sua dinâmica de atuação? Porque, simplesmente, tudo é cultura: vestuário, gastronomia, alimentação, língua. Não se trata da cultura como uma tentativa de adjetivação para descrever “algo de qualidade”. Não estamos falando de “alta cultura”. Isto já era, na boa, há muito. Trata-se de compreender que todos têm cultura e tudo é cultura. Cultura acima de tudo, cultura acima de todos. Durante meus estudos de doutorado, realizados fora do país, eu sequer sabia atravessar a rua, dada a mão distinta dos carros e uma série de aspectos da vida cultural manifesta nas práticas humanas no dia-a-dia daquelas pessoas. 

Privilegiar condomínios fechados em áreas verdes também é cultura. Shopping Centers são cultura. (Até o que Regina Duarte entende como Cultura é cultura, infelizmente). Política externa é cultura. Trazer Ernesto Araújo ou Gilberto Gil para uma Conferência da ONU é cultura. Coisas são cultura. No entanto, quando falamos de política cultural, no âmbito do Setor Público, estamos definindo questões bastante específicas ligadas à nossa identidade, nossas práticas e relações humanas aqui e agora, mas também no âmbito histórico e patrimonial. Paulo Freire, cujo centenário celebramos em 2021, dizia que “cultura é a ação humana sobre o mundo”

Elemento intrínseco do universo da cultura, a arte é central como ação humana sobre o mundo, em sua grande complexidade de linguagens, dizeres, lugares de fala e manifestações. Exemplificando através da Música – na verdade Músicas: essa área representa uma parte significativa deste universo que abrange desde o professor de instrumento, o artesão, o DJ, o colecionador, passando por infinitos estilos, circuitos e modos de produção. Cada segmento artístico possui uma infinidade de profissionais para além dos artistas: a chamada cadeia produtiva. 

Eis um fato importante: as artes encontram somente nas pastas da Cultura a chance de interlocução mais efetiva com o Setor Público, enquanto outras áreas culturais, também importantíssimas, encontram abrigo institucional também na Assistência Social, nos Direitos Humanos, nos Meio Ambiente, na Agricultura, assim como Indústria e Comércio, Turismo, entre outras. Faz parte, inclusive, de uma política cultural sólida fazer a intersecção de todas estas outras áreas com a pasta da Cultura. Uma Diretoria de Economia da Cultura faria talvez mais sentido, e maior diferença, numa pasta de Economia, Fazenda ou Emprego. A Lei Aldir Blanc, em sua generosidade e potência, deixa claro que comunidades tradicionais, pescadores, indígenas, quilombolas, dentre outras categorias e setores, são agentes de cultura a serem contemplados pela lei. Não compreender isso é não compreender a própria lei e talvez uma grande contribuição sua seja alargar o escopo da compreensão sobre agentes culturais em sua relação com a sociedade.

No entanto, existe uma categoria profissional específica, a da classe artística. Ela é formada de músicos, escritoras, bailarines, atuadoras, iluminadores, figurinistas, técnicos de som, produtores, trapezistas, contadores de história, pintores, agentes da literatura oral e escrita, técnicos, artesãos e outras infinitas formas e variações. Esta categoria profissional que, em muitos casos, é marcada pela informalidade, pela intermitência, precisa de políticas públicas específicas. Essas políticas, quando existem, são formuladas e implementadas somente no âmbito da pasta da Cultura (extinta e rebaixada no âmbito federal, extinta durante o Governo Sartori e retomada no Governo Leite). 

É evidente que cultura não é feita apenas pela classe artística. Assim como artistas, no sentido de fazedores de arte, não são necessariamente membros da classe artística, no sentido profissional do termo, ao viver principalmente disso ou compor sua renda familiar com o valor recebido pela sua produção artística. Um arquiteto, por exemplo, é sem dúvida um agente fundamental da cultura e temos arquitetos com trajetórias incríveis. Arrisco dizer que muitos arquitetos são artistas e se enxergam como artistas, mas estes mesmos arquitetos não se reconhecem necessariamente como “classe artística”, pertencendo a outra categoria profissional.

Aqui um recorte importante, que é onde os conceitos de campo da produção cultural e de classe artística se encontram. De um lado, temos a abrangência da Lei Aldir Blanc, expandindo o conceito de “fazedores da cultura” e contemplando comunidades e populações específicas ligadas a este universo. De outro, o conceito de “classe artística”, enquanto categoria profissional que tem seu sustento primordial advindo de sua atuação artística. É o campo dos trabalhadores da cultura, onde a classe artística ocupa uma posição significativa. 

Este campo profissional sofre da falta de regulamentação e profissionalização, com indicadores que possibilitem compreender esse nó entre arte e sociedade, emprego e manifestação cultural. Desse modo, existem dilemas produzidos ao longo dos anos, alguns deles falsas polarizações, que geram imprecisão na criação e avaliação de ações políticas para o setor. Eis aqui outra grande contribuição da Mestra Sirley Amaro, que nos ajuda a compreender os novos paradigmas que superam falsas dicotomias entre trajetória e consagração, produção artística e cultura popular, fazedores da cultura e classe artística.


Mestra e Doutora Sirley Amaro, Prêmio Trajetórias e os falsos dilemas do campo 

A homenageada pelo Prêmio Trajetórias Culturais, Mestra Sirley Amaro, nos deixou há menos de um ano. Para se ter uma ideia, a pandemia retirou de Dona Sirley o direito de receber presencialmente o Título de Doutora Honoris Causa, outorgado pela Universidade Federal de Pelotas, numa devida cerimônia e festa, que incluiria cortejos e grande comemoração. Dona Sirley receberia seu título no palco do Theatro Guarany, mesmo local ao qual, durante muito tempo em sua juventude, teve acesso apenas pelas portas laterais e galerias, tendo de ingressar de forma discreta e quase clandestina. Impedida, em outros tempos, de acessar a entrada principal e a plateia do teatro, Dona Sirley seria ovacionada e aplaudida em cena aberta, no centro do palco e sob todos os holofotes. 

Dá pra ter ideia do que isto significa? Esta mulher negra, costureira, contadora de histórias, compositora popular e carnavalesca, reconhecida pela Ação Griô Nacional como Mestra popular, representa muito bem o espírito e o objetivo da Lei Aldir Blanc. Sua trajetória de notório saber, também incorporada como memória e patrimônio cultural, teve visibilidade somente na terceira idade. Uma energia incrível. Uma vida dedicada à arte e cultura. 

Quero chamar a atenção de algo fundamental: foi através da produção artística como costureira, contadora e cantora que a mestra Sirley Amaro resistiu em sua trajetória, resgatou contos e histórias, preservou e ressignificou suas matrizes africanas. Foi com sua voz, seu corpo e seus fazeres artísticos e culturais que Dona Sirley Amaro combateu o racismo e a intolerância religiosa ao longo de muitos anos. Dona Sirley foi uma referência para a comunidade cultural pelotense e gaúcha, deixando um legado precioso como artista, ativista, agente cultural militante por sua arte, suas origens e seu povo. Arte sempre presente, passado resgatado em suas origens e legado para o futuro. 

Cabe mencionar o reconhecimento das universidades, sendo o interesse acadêmico uma instância fortíssima de consagração, destacando as ações de Denise Bussoletti e seu grupo de pesquisa, responsável pela fundamentação da indicação de Dona Sirley ao Honoris Causa. Essa instância articula-se com outra, a consagração institucional pela Ação Griô Nacional pelo Ministério da Cultura e o Prêmio Culturas Populares 2013, pela mesma instância, além de prêmios no âmbito da Secretaria de Cultura Local. 

No âmbito acadêmico, Dona Sirley também já foi reconhecida pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade de Rio Grande, com premiação específica. São instâncias de aclamação de trabalhos e trajetórias que contribuem para posicionar, valorizar, legitimar e consagrar pessoas, ajudando a configurar o campo da produção cultural.

O Edital Trajetórias, que homenageia nossa Mestra Sirley, se dá no contexto de uma falsa polarização, muito bem explorada por alguns e muito mal explicada por outros – entre “saberes populares” versus “artes consagradas”. Não é uma questão simples. Esta dicotomia se reforça em meio à confusão entre legitimação, consagração, fomento e caráter emergencial da LAB. Vou comentar alguns casos notórios que se deram em debates nas redes sociais, resultando em muita reverberação em grupos de WhatsApp, posts de Facebook e outros canais.

Nei Lisboa, precisando de grana, se recuperando da Covid-19, classificou como um “sequestro da ideia fundadora da LAB” o fato de que ele e outros artistas como o cartunista Santiago, o acordeonista Luiz Carlos Borges, o guitarreiro Luís Vagner e o rockeiro Fughetti Luz, todos em torno de 70 anos de idade, não terem sido classificados num prêmio de trajetória cultural. Certamente o único edital com estas características que, além de mero Troféu, inclui pagamento de premiação em dinheiro, tão necessária neste momento. Considerando a não premiação como uma espécie de “ostensiva provocação“, Nei publicou longo texto em suas redes, aproveitando para convocar os fãs para financiar coletivamente sua trajetória, já que o setor público não o faria. 

Nei deve ter percebido também que, na lista da premiação, havia artistas jovens na faixa dos seus 30 e poucos anos de idade ou menos, que receberam nota superior à sua, dada a divulgação das notas e da pontuação na lista de classificação. Mas não mencionou isso, talvez para não “abalar a legitimidade de gente certamente merecedora”, conforme descreveu. Santiago, por sua vez, demonstrou frustração e surpresa ao ver que, aparentemente, outras 750 pessoas tiveram sua trajetória considerada mais relevante do que os seus 48 de atuação como cartunista, agora também membro do que chamou de MSTC – Movimento dos Sem Trajetória Cultural, num misto de bom-humor e protesto típicos de sua atividade artística.

Mesmo alguns artistas contemplados no prêmio, como Bebeto Alves, sentiram-se constrangidos ao verem colegas evidentemente meritórios e longevos não contemplados em suas trajetórias. Cabe aqui lembrar que editais são editais e que erros de proponentes acontecem em preenchimentos de formulários, gravação de dados, bugs nas plataformas digitais e em outras situações. Em outros casos, os editais podem, sim, apresentar distorções, deficiências, falhas, imprecisões ou mesmo parcialidade nas avaliações. Ninguém está livre disto, num terreno marcado por subjetividades. É comum, inclusive, que o padrão “não deferido” seja conferido aos recursantes sem nenhuma justificativa detalhada aos seus questionamentos. Mas o que está feito está feito, e não escrevo para fundamentar nenhuma nulidade ou cancelar o Edital Trajetórias Sirley Amaro, motivo de celebração e reflexão sobre sua memória, trajetória e legado artístico e cultural (leia aqui a nota oficial sobre o cancelamento do edital, ocorrida depois da redação do presente artigo).

Pretendo discutir as questões levantadas durante os debates a respeito dos resultados das premiações e suas consequências. Estas discussões, frente ao que escrevi até aqui, acendem um importante sinal de alerta precisamente no momento em que vivemos uma crise humanitária no Brasil, que conjuga uma pandemia com a ascensão do fascismo, da intolerância e, em especial, a demonização da classe artística, aquela privilegiada, conforme o Partido Novo.

Em meio à perplexidade, que de longe era mero “chororô” de um não premiado, Nei Lisboa chama atenção que Prêmio Trajetórias Sirley Amaro ignorou trajetórias que, até então, ocupavam postos centrais no campo de produção cultural gaúcha, gozando de expressiva reputação, legitimidade e consagração. O problema é que, ao expressar sua inconformidade sobre o edital, Nei Lisboa criticou sua capilaridade máxima, que parece ter orientado a premiação para personagens queridos de microcomunidades” e que esta mesma capilaridade “pode ser uma inspiração democrática tanto quanto um instrumento poderoso de cooptação eleitoral”. Poderia soar, para alguém de passagem ou na defensiva, como uma referência extremamente desrespeitosa à própria homenageada. 

No entanto, a fala mostrou-se elitista, mesmo, e portoalegrecêntrica, ao desconsiderar um universo bem maior de produção cultural no estado e o fato de que é praticamente impossível, não somente para Nei, conhecer artistas do interior dada a ausência de intercomunicação recíproca entre interior e capital. Isto, sem falar que reputação e consagração não se medem em likes ou fama. Como disse anteriormente, trata-se de um campo cultural extremamente precário, sem vasos comunicantes, circuitos e instâncias de consagração diversas, múltiplas e bem definidas. Não deixa de ser algo relacionado à própria crise contemporânea de valores e referências. 

O comentário de Nei também parece beirar os antigos, e agora já superados, ataques ao Programa Bolsa-família, instrumento que muitas elites e membros da classe média branca atacaram por considerarem apenas uma esmola para fins eleitorais. A crítica de Nei, neste ponto específico, peca ao atribuir sua não premiação ao caráter descentralizado do prêmio, distribuído entre as nove regiões funcionais do RS, atendendo o princípio de descentralização expresso na própria lei e no edital. Algo fundamental enquanto política pública. Sem criticar as avaliações e os critérios do edital em si, expressos com detalhamento na chamada pública, Nei Lisboa viajou sem gasolina nos microcosmos das microcomunidades. 

Os critérios de seleção, sim, eram contraditórios com o objeto do edital, conforme vou abordar mais adiante. Como mencionei, muitos artistas com menor trajetória, relevância ou impacto, obtiveram notas superiores às suas. Isto, para mim, é o que deve ser questionado. No entanto, todos conheciam as regras e os critérios do edital, e poucas foram as pessoas que se manifestaram sobre seu conteúdo antes dos resultados. Dada a correria do setor e a insegurança do momento, além da complexidade de abordar um assunto no pouco tempo disponível entre a publicação do edital e o encerramento de suas inscrições, ninguém se manifestou sobre os critérios de avaliação, como veremos, bem precários. 

Isto me leva a crer que faltaram revisões técnicas do edital enquanto instrumento público, em especial o crivo de setores ligados aos fazeres culturais em si, a classe artística. A seguir, poderemos compreender o porquê. Muitas questões, portanto, poderiam ser evitadas, evitando a fragmentação, a discussão entre agentes do setor e o estilhaçamento do campo.

A resposta a Nei Lisboa veio do Secretário Municipal de Cultura e Relações Exteriores de São Leopoldo, Pedro Vasconcellos, atuante gestor cultural e uma referência em política do setor, tendo trabalhado na equipe do Ministério da Cultura nos tempos em que o próprio MinC ainda existia e o SNC buscava se implementar. Era a Pedro Vasconcellos que muitos secretários de outras cidades e a própria Sedac recorriam em caso de dúvidas sobre a implementação da LAB. 

Assim, Pedro teve uma atuação central em todo o processo através do diálogo em diversas frentes e esferas. Foi um dos colaboradores do Instituto Trocando Ideia, que elaborou o edital Trajetórias Culturais – Mestra Sirley Amaro. Pedro, com boa parte de razão frente à escorregada portoalegrecêntrica de Nei Lisboa, escreve que o “edital não era um concurso de currículos da área cultural” e que, ao homenagear a Mestra Griô Sirley Amaro e contemplar pretos na maioria, “este não era um edital para os consagrados, me desculpem”. Neste sentido, Pedro tem sua razão sobre o caráter inédito e militante do edital, que preconiza 51% de sua premiação em cotas. 

No entanto, o objeto do edital era, sim, literalmente e expressamente, “selecionar pessoas físicas, os quais receberão premiações em dinheiro, como forma de reconhecimento e valorização de suas trajetórias culturais”. Portanto, sim, seria um prêmio de currículos da área cultural, tanto que as inscrições se dividiam em segmentos artístico-culturais. E, sim, reconhecimento e valorização são formas de consagração. E, sim, Dona Sirley obteve considerável consagração em sua trajetória, através da Ação Griô Nacional, do seu título Honoris Causa e da gama de estudos, publicações, editais e filmes sobre sua atuação. Dona Sirley era uma figura consagrada da cidade de Pelotas, com tudo o que o termo consagração significa. E, sobretudo, consagrada como uma Mestra da Cultura Popular, justamente superando a histórica contradição entre produção artística e atuação cultural, sempre merecedora de reflexão.

Pedro Vasconcellos conclui dizendo, corretamente, que “não existe ação afirmativa sem tirar o privilégio de alguém”, citando a seguir a frase de Caetano Veloso sobre Narciso, em Sampa. Assim, reduziu a fala de Nei Lisboa à sua vaidade como artista consagrado, sua dificuldade de sair do pedestal e sua perda de privilégio. O comentário foi bastante difundido entre os entusiastas deste prêmio inédito e inovador, como se a dicotomia entre artistas e mestres populares se resolvesse neste post através da circulação em redes e plataformas. A partir daí, é claro que Nei Lisboa passou a ser visto por muita gente como uma espécie de porta-voz da elite brasileira, pois afinal, a elite cultural é meramente uma reprodução ipsis literis da estrutura de dominação social, segundo alguns. 

Mas outro fato importante de salientar é que, dentre as premiações, houve sim distorções que comprometeram o caráter social do prêmio. Sendo esta sua missão, os 51% de cotas não evitaram que privilegiados recebessem o prêmio. E houve, sim, narcisismo, que impediu Nei de enxergar o prêmio para além de sua perspectiva. Reafirmo, portanto, que a fala de Nei Lisboa foi extremamente infeliz e reproduziu, sim, uma postura elitista no campo das artes que em nada contribuiu para iluminar seu legítimo descontentamento, servindo para o objetivo contrário ao que almejava com sua postagem. Tiro no pé. 

No entanto, tenho a impressão de que é precisamente esse ranço intelectual contra os artistas, expresso por Pedro, que une intelectuais de esquerda a moralistas de direita. De um lado, acusações a expoentes de uma elite intelectual, para não dizer membros da arte burguesa, inconformados com a premiação de artistas desfavorecidos, ameaçando seus privilégios; do outro, maconheiros e vagabundos que sempre mamaram nas tetas do governo tendo o que bem merecem: fim da mamata. Ambos preconceitos contra a classe artística em si. 

Aliás, essa era a briga de Caetano e dos Tropicalistas, lá em 1968, ao se contrapor ao mesmo tempo contra a dureza militante e sectária da MPB engajada, de um lado, e a censura e violência da Ditadura Militar, prestes a implementar o AI-5, do outro. “Vocês não estão entendendo nada”, diria Caetano, proibindo proibir. Ao referenciar o consagrado Caetano Veloso, em sua frase “Narciso acha feio o que não é espelho”, Pedro Vasconcellos reflete duas imagens espelhadas: tanto a vaidade dos artistas, quanto o seu próprio ranço contra artistas em geral, não somente os vaidosos. 

Acontece que Pedro é um gestor cultural, e é isso que me impele a fazer esta consideração, pois a discussão também revelou a posição de gestores em relação a artistas, algo que parece ressoar em outras esferas da vida nacional, como vimos na posição do Partido Novo. É possível imaginar participantes de outros campos políticos comemorando a ruptura entre gestores e artistas de esquerda, submersos em contradições muito antigas e profundas, fruto de visões parciais e sectárias que insistem em incompatibilizar arte e saber popular. Esta perspectiva teria influenciado o Edital Trajetórias?

Uma coisa é fato: não temos nenhum Caetano Veloso vivendo no RS, pensando neste tipo de artista consagrado, bom de citar frases e que não nos incomoda disputando verba de editais locais, pois não precisa de nossas instâncias de reconhecimento, nem das verbas da Lei Aldir Blanc. Isso não se deve ao item “qualidade” ou “importância” das produções locais. Tampouco à mera generosidade daqueles que porventura não se inscreveram na premiação. Do jeito que estamos, sequer temos as mínimas condições estruturais para surgirem Caetanos no cenário local. 

Aliás, ele próprio teve de se mudar da Bahia para São Paulo e depois para o Rio, sendo um artista consagrado no centro do país ao posicionar-se estrategicamente em pleno boom do surgimento da televisão e da expansão do mercado fonográfico brasileiro dos anos 70, ainda predominantemente nacional naquele tempo. Veloso está presente no imaginário dos brasileiros até hoje, através de trilhas de novelas nacionais, associando muito bem capital cultural, reputação e capital econômico, incluindo contrato estável com grande gravadora, recebimento regular de royalties via tv, rádio e streaming. 

Em nosso contexto, a única rádio que toca regularmente e sem preconceitos a música local, a nossa FM Cultura em extinção, é uma rádio pública que, mesmo se estivesse bombando, não pagaria direitos autorais. E, mesmo se pagasse, seria mais provável que o dinheiro chegasse antes a Caetano e não aos compositores locais, graças ao distorcido sistema de amostragem e distribuição que concentra o repasse dos direitos apenas aos 600 primeiros colocados na lista de mais tocados em nível nacional, cujo ranking poucas rádios locais são aferidas. Um sistema perpassado por uma injustiça sem tamanho e sem explicação, cuja estrutura sequer foi tocada mesmo nos governos mais progressistas e na gestão Gilberto Gil. 

Fico me perguntando se parte da incapacidade dos governos progressistas em enfrentar esta questão depois de Gil não se deu em função do próprio rancor, que tirou sua energia para tentar abalar a força descomunal do poder econômico desta massiva indústria, concentrada desde o período militar. No âmbito do recolhimento em televisão, paga-se um pouco melhor, quando se tem sorte de cair na amostragem com o único programa de música local da televisão gaúcha. O tema é escabroso. 

Portanto, quando falamos em artistas consagrados, no âmbito do RS, por melhores que sejam os artistas, por mais lindas e impactantes que sejam suas obras, e por mais que tenham fãs e o público mais fiel do mundo, não há como chegar ao patamar que muitos fantasiam ao ver essa gente maravilhosa em cena. Mesmo com enorme impacto de crítica e sucesso de recepção de público, artistas como Nei Lisboa e Bebeto Alves estão longe de ter estabilidade, segurança e, muito menos, luxo. Desde seus últimos trabalhos – marco nas suas e nas nossas discografias – eles vêm adotando campanhas de financiamento coletivo que, ao invés de servir como propulsores de capital inicial do trabalho, resultam na única forma viável de arrecadação e produção, dada a dificuldade de concorrer em editais que, ora são escassos, ora não contemplam “artistas famosos”. Ou seja: o artista relevante é punido por sua atuação num campo de produção local que sofre intensamente o baque da Globalização, sendo muito difícil produzir, difundir e circular junto ao público. Apesar da aparente redução de custos das gravações e do acesso facilitado à distribuição por meios digitais, isso, em si e de fato, não gera renda. Não é possível fazer financiamento coletivo à toda hora, mesmo para os artistas mais consagrados – o que torna impossível viver disso.

Uma pessoa, que não é do meio, deve achar que ter disco no Spotify basta para viver de música. Vale cruzar os mais tocados nas rádios e no Spotify, por exemplo, para identificar sua incrível semelhança com a lista das rádios comerciais – isso quando não transmitem ou comentam jogos de futebol -, perpetuando a mesma estrutura de concentração da indústria criativa globalizada.

Eis que retorno a Bebeto Alves, que se diz constrangido com a própria premiação, pois “o que era para ser alegria tornou-se um sentimento vago de tristeza” e que “um prêmio como esse não deveria ser um prêmio por inscrição e sim pelo reconhecimento mesmo. Acontece o centro da crise que é justamente a questão do reconhecimento e trajetória: os mecanismos de consagração num campo minado e sem a mínima estrutura não estão visíveis sobre os escombros da indústria musical. É outra, no entanto, a manifestação de Bebeto que municiou seus críticos: “acho que as cotas não soam bem, e elas soam em qualquer outro edital que tenham o caráter de inclusão, elas não preenchem o caráter desse edital, e elas tomam espaço”

Assim, o artista relativiza a importância cotista da premiação, numa espécie de meritocracia artística, como se trajetórias não tivessem cor, ao estilo Morgan Freeman. Mas não soou Morgan Freeman, pois não veio de um ator negro. E isso conta, na hora de abordar estas questões. Infelizmente, neste contexto, a fala de Bebeto soou racista e deixou de lado uma das grandes questões contemporâneas, tão caras ao campo da produção cultural. Assim, virou alvo líquido e certo daqueles que celebraram o prêmio em sua política de descentralização, inclusão e cotas.

No fim das contas, a falta de informação de um artista de seu calibre sobre políticas de ações afirmativas é que soou muito mal. Em troca de mensagens no Facebook, com o próprio Pedro Vasconcellos, Bebeto recaiu na questão de que alguns pontos deveriam ter sido colocados de lado, como a questão da inclusão, do percentual de cotas e, valorizado sim as carreiras, as contribuições para a cena cultural, a história de cada um desses personagens, no tempo”. Pedro relativizou toda sua argumentação, afirmando que reconhecia a complexidade do edital e que Bebeto não deveria ficar “constrangido só porque outros não ganharam, tu merece e o Ivan do Cavaco ali da Rio Branco também merece”. Sem dúvidas ambos merecem, e todos os outros artistas mereceriam o direito à sua manutenção como agentes através dos recursos volumosos da Lei Aldir Blanc.

Eu mesmo fiquei constrangido, e não respondi a Bebeto Alves em seu próprio post. É certo que Bebeto recebeu solidariedade e foi apoiado pelos seus, e que suas palavras encontraram apoio de fãs, amigos e artistas, talvez sem se darem conta da questão racial em jogo. Outros, mais atentos, mencionaram, sim, o racismo estrutural refletido em suas palavras e a necessidade de rever esta questão. Pedro já havia, em sua primeira publicação, mencionado genericamente que “soa muito elitista e até racista a maior parte das críticas” ao prêmio que homenageia a Mestra Sirley. Mas não era a maior parte das críticas. Foram trechos específicos de postagens de Nei Lisboa e Bebeto Alves, destacadas acima que, sem anular a razão de sua indignação, revelaram percepções equivocadas que reforçaram o argumento de Pedro em seu ataque aos “artistas elitistas”. 

Em minha breve e possível participação nesta publicação de Pedro Vasconcellos, que recebeu resposta de Bebeto Alves, foquei em outras questões, em especial minha preocupação com a demonização da classe artística em tempos obscuros, subjacente à opinião que Pedro manifestara, além de sua confusão sobre conceitos como trajetória e consagração. Faço, no entanto, minha a resposta a Pedro e a Bebeto aqui, desculpando-me por não a ter feito por lá. 

Em minha resposta, eu argumentaria que não é possível colocar 300 anos de escravidão, eurocentrismo e opressão colonial de lado, para analisar trajetórias culturais de forma isolada e asséptica em pleno 2021. Por isso, a política de cotas é fundamental, inclusive num prêmio como esse, de trajetórias, dadas injustiças também históricas. Injustiças que se revelam no tempo. Arte tem gênero, sexo, cor e classe social, sim, que se refletem nas trajetórias de conquistas e derrotas, em lutas simbólicas de artistas que travaram e travam os combates mais duros contra o racismo, o fascismo, a intolerância, a ditadura e a homofobia.

Como Dona Sirley testemunha e nos ensina, é possível e, mais ainda, imprescindível contemplar, no âmbito das trajetórias, outros mecanismos de consagração que não aqueles óbvios relacionados à fama, por exemplo. Aqui o aspecto que considero central: não foram as cotas que ocasionaram a não premiação de artistas de notória trajetória. Também não foi necessariamente o grande número de inscritos no prêmio, numa proporção de menos de cinco inscritos para um contemplado, que não é tanta concorrência assim. Houve problemas de avaliação e de estruturação do edital bem fáceis de identificar, além da questão mais complexa, que ignora a trajetória consagrada de Sirley Amaro e seu vasto currículo de serviços culturais prestados, incluindo intensa atuação artística. Portanto, dizer que um Prêmio Sirley Amaro não é um prêmio para currículos culturais, também ofende sua memória e desrespeita sua história de intensa entrega à arte como instrumento de resistência.

Fiquei preocupado quando manifestei, no contexto de uma resposta à postagem de Pedro Vasconcellos, a minha crítica de que Lei Aldir Blanc, no fim de tanta pujança, generosidade e dos milhões disponíveis na SEDAC para o Inciso III, deixou de lado grande parte da classe artística. Justamente o objeto da Lei Aldir Blanc. Em sua resposta a mim, Pedro simplificou o assunto dizendo que “problema é que alguns que sempre ganharam tudo, agora querem vir dizer que o edital é errado porque eles não entraram.” Acredito ter deixado bem evidente, aqui, que o setor cultural sempre recebeu pouco, que nosso campo de produção cultural está absolutamente desarticulado e que, mesmo com privilégios estruturais da branquitude, não é possível afirmar que alguns artistas sempre ganharam tudo. É impossível ganhar tudo num campo que não tem nada, num contexto agravado pelo sucateamento de mecanismos como FUMPROARTE/Porto Alegre, PROCULTURA/Pelotas, além da contenção em nível Estadual e Nacional.

Não foi, de nenhuma forma, a política de cotas ou a descentralização dos recursos que comprometeram eventuais premiações notórias. Houve problemas conceituais, problemas de formulação, sérios problemas metodológicos, percalços de gestão pública e desrespeito à classe artística que fez com que não fosse possível acessar os recursos, aparentemente volumosos, de milhões de reais da Lei Aldir Blanc. Essa questão, proposital ou não, excluiu grande parte da classe artística do acesso à sua própria lei.


Consagrando Trajetórias Culturais em 2021

Deve ficar sempre evidente, não custa repetir, que as cotas e a descentralização territorial estavam devidamente expostas no certame, assim como o caráter de Trajetória, também inquestionável. Desta forma, quem se inscreveu, conhecia as regras, e quem foi contemplado, foi contemplado nas normas do edital. Acredito ser fundamental, no entanto, esmiuçar aspectos do Prêmio, uma vez que a percepção dos próprios organizadores sobre o edital precisa ser compreendida e talvez questionada, dado o conteúdo expresso na lei e todo o processo contextualizado até aqui. 

Se, de um lado, “a Aldir Blanc precisa chegar onde o estado não chega, onde a política cultural não chega”, conforme argumentado por Pedro Vasconcellos em seu post, é também evidente que a Lei Aldir Blanc – aliás, outro compositor consagrado – é um mecanismo de manutenção dos profissionais ligados à classe artística, sem que isto represente destinar dinheiro a artistas “ricos”. Vimos, no início do texto, um pouco sobre a origem dos problemas. Veremos agora como estas questões se refletem na ponta das políticas públicas.

Como vimos em relação ao Inciso I, Auxílio, não se chegou nem perto de implementar o que se deveria. No caso do inciso II, Subsídios, vimos que populações inteiras e espaços ficaram sem atendimento. Sendo assim, infelizmente, não seria o Prêmio Trajetórias Culturais Mestra Sirley Amaro o mecanismo para resolver tudo. Com o máximo de boa fé, Pedro Vasconcellos e o excelente Instituto Trocando Ideia assumiram seu edital como metonímia da própria Lei Aldir Blanc, tentando preencher algumas lacunas até então não preenchidas pela SEDAC. Mas o prêmio não é a Lei e, infelizmente, as lacunas parecem permanecer em meio a todos os esforços. 

Olha que interessante: se polarizarmos a discussão entre Nei e Pedro como expoentes das duas pontas que devem ser atendidas pela LAB, deixando de lado a falsa dicotomia entre arte e ação social, podemos identificar fatores decisivos. Temos dois agentes que, como sabido, participam, numa esfera mais ampla, do mesmo campo político e ideológico. Ambos estão momentaneamente divididos e discutindo a aplicação das verbas do Prêmio, com sérias e legítimas divergências sobre a política cultural do setor, o que é natural. Cabe-nos refletir de que forma esta Lei, uma conquista da luta de muita gente, está servindo para dividir o campo da produção cultural e a própria classe artística, ao invés de torná-los mais coesos, alinhados e estruturados. Não se trata exatamente de falta de dinheiro, pois estamos falando de R$ 155 Milhões da LAB no RS. A quem interessa a fragmentação? A muita gente, como sabemos.

O Edital do Prêmio Trajetórias, assim como outros processos de avaliação, apresenta muitos detalhes a serem considerados e que parecem alheios ou desarticulados mesmo para os organizadores do edital, apesar da relativa boa solução na implementação de um edital que contempla trajetórias e se implemente através de cotas e descentralização. No caso do Edital Marcopolo, por exemplo, apresentou-se outra novela cheia de detalhes e problemas, para não dizer escândalos, em discussão nas mais diversas esferas, incluindo o Conselho Estadual de Cultura e seus Colegiados. Conforme proposto, vou me ater com maior detalhamento apenas ao Prêmio Sirley Amaro, que apresentou muito a ser considerado quanto aos seus critérios de avaliação. 

Percebe-se que os critérios da tabela de pontuação parecem contradizer o próprio objeto do edital: I – relevância (30 pontos); II – impacto (30 pontos); III – tempo (5 pontos). Talvez, numa oportunidade de homenagear as deputadas que brilhantemente propuseram e relataram a Lei Aldir Blanc, os três eixos dividiram-se em 13 itens de cinco pontos cada, totalizando 65 pontos como nota máxima. O fato é que os dois eixos de maior pontuação (30 pontos), já bastante subjetivos em si – impacto e relevância – apresentavam critérios bastante imprecisos e redundantes, repetindo questões e deixando muitos outros fatores importantes de lado. 

No formulário de preenchimento, as questões eram bem complicadas de responder. Isto sem falar que o formulário apresentava 12 questões, e não 13, conforme os itens, comprometendo ainda mais relação direta entre Formulário e Tabela, exigindo bastante interpretação e entrecruzamentos de informações entre os dois mecanismos, tanto para proponentes, como para avaliadores. Ao acompanhar de perto a inscrição de pessoas amigas, auxiliando-as a preencher, documentar e tirar dúvidas, vi que era necessário rebolar muito para conseguir responder às questões de maneira a subsidiar os avaliadores em suas tabelas. 

Para se ter uma ideia, o critério “utiliza espaços públicos ou privados para atividades na área cultural”, algo óbvio intrínseco à atuação do setor, possui a mesma pontuação do item “o candidato realiza atividade cultural há quantos anos”. É como se o item “utiliza embarcação ou pesca em plataforma” contasse a mesma pontuação do item “pesca há quanto tempo“, para medir a relevância, o impacto e a trajetória de um pescador.

Além disso, itens individuais de avaliação praticamente se repetiram entre os Eixos I e II, em detrimento do Eixo III, referente ao tempo de trajetória em si. Claro que trajetória é um conceito abrangente e complexo, que abarca desde a distância entre dois pontos no espaço, trajeto, mas sobretudo e nestes contextos, a distância entre um ponto de partida e um ponto de chegada, no tempo, além da abrangência da atuação artística e cultural em termos geográficos e sociais. 

Acontece que a régua de medida dessas trajetórias precisa ser flexível e dinâmica para captar as complexidades do campo já mencionadas. Sendo assim, itens como “realiza divulgação das atividades para promover as atividades na área cultural”, outra coisa óbvia equivalente a “utilizar embarcação”, tem a mesma importância de “o candidato realiza atividade cultural com dedicação exclusiva?”, equivalente a “tu é músico, mas trabalha em quê?”, “pesca profissionalmente ou por esporte?”, para fornecer informações sobre atuação no campo profissional. 

No entanto, mesmo esta questão de atuação profissional está mal colocada, dado o fato de que a imensa maioria dos agentes culturais precisarem de outros empregos para sobreviver, sem poder viver exclusivamente de sua atuação artística. Neste sentido, este item relacionado ao fazer profissional acaba privilegiando alguém que mora na casa dos pais e consegue dedicar-se exclusivamente à sua arte preferida, do que uma artista que sustenta a família com diversos trabalhos, mas mesmo assim atua no campo cultural profissionalismo, ainda que sem dedicação exclusiva.

Além disso, a duplicidade real entre o item “já foi reconhecido por artistas/agentes culturais de forma pública (prêmio, jornal, site, revista)”, no Eixo I, e “já foi reconhecido pela comunidade de forma pública (prêmio, jornal, site, revista)”, no Eixo II, certamente fundamentais para certificar o impacto e a relevância do fazer profissional, somam simplesmente o dobro do item trajetória cultural. 

Cabe destacar o válido interesse pelo aspecto comunitário descrito, no entanto, a repetição dos mesmos termos tende a bugar a cabeça do candidato. Como comprovar impacto comunitário isoladamente através de sites, jornais, revistas e prêmios num formulário onde é vedada a utilização de anexos? Como provar o reconhecimento comunitário sem a possibilidade de contar com depoimentos, cartas de recomendação ou testemunhos? A única chance seria o candidato gravar documentários sobre si, incluindo a fala de vizinhos, autoridades, ativistas e outras pessoas no roteiro e edição. 

Ainda que os organizadores tenham, correta e adequadamente, permitido a inscrição por vídeos, as perguntas e os itens de pontuação em nada auxiliaram os candidatos. A insuficiente objetividade da relação Inscrição-Avaliação, associada à falta de nitidez para avaliar fazeres culturais e trajetórias, fez com que o Instituto Trocando Ideias trocasse as bolas. A imprecisão do edital permaneceu a mesma, apesar das seis erratas publicadas. Curiosamente, nenhuma delas elucidou a tabela de pontuação ou valorizou “tempo de trajetória”, evitando duplicidades, ambiguidades ou imprecisões.

Sendo assim, tenho a impressão de que a própria Mestra Sirley Amaro correria o risco de não ser contemplada, ou querer se inscrever em sua própria homenagem, se os avaliadores não estivessem conscientes do aspecto inclusivo do Prêmio e os amigos não fizessem um enorme esforço interpretativo para além das informações de que dispunham. Dada a dificuldade em responder questões complicadas e pouco relacionadas ao universo dos artistas, populares ou não, fico imaginando se não seria possível pensar questões mais ligadas ao mundo prático e itens de pontuação mais concretos. 

Não se trata de preconceito em relação a uma suposta incapacidade dos agentes em responder a tais questões, ou a falsa ideia de que os itens apontados sejam irrelevantes no campo da produção cultural. No entanto, a quem caberia responder: “promove o desenvolvimento econômico local e regional”? Pesquisadores, técnicos, economistas e gestores públicos, e não candidatos. Quem deve responder “promove o desenvolvimento das técnicas específicas da área cultural”? De quê se trata? 

Parece-me inadequado jogar no colo dos avaliadores a interpretação destes dados complexos a partir das informações contidas no formulário de inscrição. Trata-se de análise de indicadores que deveriam ser realizadas por pesquisadores, a partir de dados obtidos de forma mais sistematizada e criteriosa advinda do campo cultural em ação, e não simplesmente capturadas num formulário de inscrição de premiação, não destinado para esse fim. Em outras palavras, o formulário assemelha-se mais a um instrumento de pesquisa ruim do que a um mecanismo para revelar, desvelar, valorizar e reconhecer trajetórias, quaisquer que sejam.

Estes exemplos de critérios de avaliação me fazem pensar quais os dados que a Mestra Sirley teria em mãos para preencher seu formulário, ainda que o fizesse de forma oral, gravada em vídeo. Desta forma, tenho sérias dúvidas sobre caráter realmente democrático e inclusivo do edital em si, ao exigir que um agente cultural, cartista ou mestre de cultura popular verse sobre indicadores culturais e economia criativa. 

Também fico intrigado pensando se um avaliador tem tempo de interpretar os formulários em seus textos e vídeos para converter questões, subentender depoimentos e completar o que é solicitado na tabela de pontuação. No fim, a complexidade dos itens parece uma tabulação fria para mensurar dados com a finalidade de meramente gerar um relatório técnico sobre economia da cultura para o nosso aplauso maravilhado com as planilhas e gráficos em forma de pizza. 

E, da forma que estão apresentadas, os únicos dados que temos, realmente, são os 51% de premiações destinadas a cotas, configuradas em 66% em algumas regiões. Chamo a atenção e celebro isso no prêmio, sem questionar uma vírgula de sua aplicação, clareza de sua descrição no edital e adequação à finalidade da LAB. Infelizmente, estes dados não são suficientes para argumentar que o Prêmio Trajetórias cumpriu sua função frente a todos os problemas não enfrentados pela SEDAC, conforme descrito aqui. Percebam que os critérios de avaliação prejudicam trajetórias artísticas e culturais de todas as modalidades de inscrição e segmentos, sejam artistas cotistas, mestres da cultura popular ou agentes não cotistas.

Ainda assim, incluindo cotas e considerável exercício de interpretação dos avaliadores, o edital premiou, sim, pessoas brancas não cotistas. Premiou pessoas que não se encontravam em necessidade, emergência, calamidade ou suspensão de renda que justificasse o recebimento do valor do Prêmio em dinheiro. E não estou me referindo a Bebeto Alves, que precisava e merece o prêmio. Pessoas brancas não cotistas e sem necessidade se sentiram à vontade e motivadas para fazer sua inscrição devido ao forte apelo simbólico da premiação e a escassez de mecanismos de consagração no campo. Isso para falar apenas dos motivos mais nobres. 

Espero que não falte oportunidade de revisão individual da premiação em dinheiro, ou ocasião de que se destinar recursos para pessoas realmente em necessidade não-contempladas, dado o caráter de Lei Emergencial da Aldir Blanc. Do modo como foi elaborado, mesmo que fosse evidente e inquestionável sua missão de premiar pessoas pretas e atuantes onde o “estado não chega”, ficou evidente que o Edital também não contemplou essa missão. E, saliento aqui que grande parte dos percalços seria evitável, se analisados os instrumentos públicos sob o ponto de vista dos agentes a serem contemplados, artistas e mestres da cultura popular, ao invés dos tecnocratas da cultura sem compreensão nítida do campo.

Portanto, a política de cotas é sim essencial e veio para ficar, mas não garante o cumprimento da Lei Aldir Blanc sozinha, se o Setor Público e seus parceiros não conseguirem compreender o Campo de Produção Cultural em seus aspectos mais essenciais, sua natureza prática e a voz de seus agentes.

Na falta de critérios e conceitos bem definidos, associados à subjetiva avaliação decorrente da falta de conexão entre Inscrição e Avaliação, por mais detalhadas as tabelas e por mais erratas que fossem publicadas, permitiu-se que jovens artistas e pessoas versadas em edital passassem na frente dos coroas e de pessoas periféricas que sequer se inscreveram. Alguns membros consagrados podem, sim, ter respondido mal às questões em clima de já ganhou. Podem, também, ter apresentado dificuldade ou impaciência para responder a questões elementares como “utiliza embarcação, pescador?“, mesclada a indicadores cujos dados não estão ao seu dispor. 

Fico me perguntando quais foram os fatores que fizeram os avaliadores darem nota 58 para Nei Lisboa e nota maior do que 60 pontos para artistas e agentes que, mesmo em suas comunidades, não teriam necessariamente mais relevância, impacto ou tempo de carreira do que ele. Se ele tirasse 65, a nota máxima, mas fosse preterido em função das cotas, seria perfeitamente justo. Mas não foi o que ocorreu.


E agora, José? E agora, vocês?

Quero concluir chamando a atenção para os discursos embutidos, subjacentes e implícitos presentes na formulação de políticas públicas. “Leis não bastam, lírios não nascem da lei”, diria Drummond, e os lírios da Lei Aldir Blanc não brotam por geração espontânea. É preciso superar o tumulto e as pedras, efetivando políticas públicas em realizações concretas. 

O Edital Trajetórias, em toda a sua grande conquista e o vibrante enfrentamento de questões estruturais, apresenta também contradições entre objeto, avaliação e critérios de premiação. Estas contradições são as mesmas do Campo Cultural. Por isso o presente texto. Sendo um Prêmio que contempla intensamente a Cultura Popular, ao modo Sirley Amaro, o edital privilegia demasiadamente jovens artistas que já se apropriaram das manhas dos editais, dos jargões da economia da cultura, dos meios necessários para o preenchimento de formulários, comprometendo talvez o acesso “àqueles onde a lei não chega”

Sendo um Prêmio que contempla Trajetórias, o edital não reconhece, de forma adequada, o tempo de vidas artísticas, não recompensando devidamente seu tempo de atuação, passível de simples averiguação, ao invés de fazê-los encaixar na tecnicidade dos conceitos da economia criativa. O edital permitia a inscrição de pessoas com cinco anos de atuação e não valorizava o tempo da trajetória de forma suficiente. Vencendo estas contradições, o edital seria um excelente avanço ao conciliar Trajetórias e Cotas, reparando injustiças ao longo do tempo de atuações artísticas. Poderia superar falsos dilemas.

Advogo, portanto, a consideração de mais uma cota em editais trajetória: a cota para idosos, sem prejuízo das outras cotas como a racial, LGBTQIA+ e necessidades especiais. Idosos. A turma da vacina. A turma da fila. A mesma turma que a política genocida quer que se lixe para não pagar aposentadoria. A turma que sofreu o racismo por mais tempo. A turma em que as mulheres foram subjugadas, agredidas e caladas por mais tempo. A turma que, vinda da periferia, não sabe preencher editais porque não nasceu navegando na internet, não pegou a política de cotas a tempo, nem conseguiu acessar ainda os recursos esparsos da cultura, quando disponíveis um dia. 

Neste sentido, ocorre que seis mil inscrições parecem um universo imenso e inimaginável, que extrapola expectativas. Mas não é. Muita gente não se inscreveu, ou sequer soube do Prêmio, ou se desencorajou frente às questões apresentadas. Ao avaliar atuações artísticas e impactos culturais sem a necessária nitidez de critérios, o edital prejudicou o item de maior potencial de averiguação, objetividade e mensurabilidade num edital deste tipo, atribuindo-lhe pontuação irrisória, comprometendo agentes culturais mais idosos e favorecendo percursos culturais mais recentes. Isto se chama etarismo. 

Ainda que, por acaso, alguns artistas não tenham tido o tempo histórico, a oportunidade, quem sabe a humildade ou mesmo consciência de classe, gênero e raça para aprender as lições de uma Mestra Sirley Amaro – repensando questões sobre elitismo, branquitude e racismo estrutural de maneira intensa – a trajetória e o legado desses artistas não merece ser reduzida, apagada, desmerecida nem abandonada.

Independente da tentação de reduzir figuras individuais de artistas a pessoas que consolidaram suas carreiras às custas da invisibilidade e da opressão sobre artistas de matriz indígena e africana, através de privilégios históricos, cabe lembrar que nossa sociedade foi toda construída assim. Sem dúvida há privilégio de branquitude em cada esquina. 

A questão, infelizmente, não se resolve num passe de mágica e – minhes amigues militantes, pesquisadores, gestores e artistes – deslegitimar trajetórias através de mecanismos de seleção falhos e conceitos de avaliação frágeis no campo de produção cultural complexo não vai colaborar com a resolução de questões estruturais da sociedade brasileira. Pelo contrário. As cotas são, precisamente, o melhor mecanismo e o mais democrático encontrado até aqui para realizar esse enfrentamento de conciliar produção artística e reparações históricas, sem perder de vista o papel histórico das próprias produções artísticas marginalizadas.

 Quero, finalmente, convocar essa nossa geração XYZ, que abarca pessoas envolvidas de alguma forma neste processo, tais como Pedro Vasconcellos, já mencionado, Rafael Balle, Diretor de Fomento da Sedac. Gabriela Meindrad, Secretária de Cultura Adjunta e Eduardo Leite, Governador do Estado, para o nosso dever de compreender, respeitar e cuidar de trajetórias e seus legados. E quero ressaltar o nosso compromisso de superar estas questões nos campos cultural, social, econômico e político. 

A generosidade da Lei Aldir Blanc precisa nos ajudar superar, inclusive, a nós mesmos, nossa geração, aprimorando nossas percepções e canais de escuta sobre a o campo da produção cultural local, deixando para trás o histórico ranço do Setor Público com a classe artística que, repito, representa o que de melhor temos neste país e a manifestação mais potente das comunidades periféricas. Ouvir, dialogar e compor políticas públicas em diálogo e compromisso. Avaliar e refazer ações num diálogo constante, e não à sua revelia, incluindo cotas e reparações, pois elas apenas engrandecem e reforçam a busca de reconhecer trajetórias invisibilizadas em sua força artística e sua potente diversidade. 

Já que falamos de Caetano, encerro com Gilberto Gil, ao dizer que “o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”. Foi ele, precisamente, um artista, o gestor que mais se destacou como Ministro da Cultura, abrindo espaço para outros depois dele. Um agente cultural consciente de seu tempo e de seu campo de atuação cultural. Foi Gilberto Gil quem abriu o cenário para a atuação de novos gestores culturais e novas perspectivas de atuação. 

São esses gestores que têm a missão de compreender que “o povo sabe o que quer”. São, no entanto, os/as artistas, em suas infinitas atuações culturais e trajetórias que contemplam, preenchem, amplificam o desejo e o imaginário das pessoas que “querem o que não sabem”. Considerando que “meninos mimados não podem reger a nação”, conforme Criolo nos alerta, ainda que isolados e no escuro, qual bichos do mato, num poema de Drummond. Pergunto: e agora, gurizada? E agora Leandro, Pedro, Rafael, Gabriela e Eduardo – marcharemos para onde?


Leandro Maia – Músico, pesquisador e prof. da UFPEL

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