Ensaio

Tá vendo aquele edifício, moço?

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Tá vendo aquele edifício, moço?

Bairros ricos, nomes de prédios e desejos sociais

Inspirar-se em Zé Ramalho. Escolher quatro bairros abonados de Porto Alegre. Trilhar ruas e avenidas do início ao fim, lomba acima e ladeira abaixo. Anotar de modo minucioso os nomes dos prédios residenciais. Fotografar para se prover de fontes documentais (ninguém vá dizer depois que saí inventando os nomes sem arredar o pé de casa). Examinar detidamente esse acervo de nomes. Perceber concentrações. Arriscar classificações. Apresentar os resultados para deleite do público e debate aberto. É do que trata esse texto.

Depois de meses batendo pernas e zanzando sem muito critério e anotando nomes de prédios, organizei a tarefa em bases científicas, para melhor proveito do gasto calórico que vem redundando em emagrecimento visível. Esse texto trata das andanças por quatro bairros de classe média alta de Porto Alegre. Dois deles são bairros tradicionais. Neles temos prédios antigos e, por via da demolição de casas e mansões, prédios modernos. Os outros dois são bairros onde a quase totalidade dos prédios é recente, um surto imobiliário que tomou de assalto algumas áreas da cidade, ocupando espaços vazios ou derrubando casas simples. Anotei centenas de nomes. O que chamo aqui de classificação é a percepção de concentrações de nomes em torno de algumas palavras chave ou ideias força. Observar o bairro, a rua, o prédio, o nome do prédio, os nomes dos prédios do entorno, e tirar conclusões.

Debruçado sobre o que inicialmente parecia uma babel de nomes, identifiquei três agrupamentos possíveis, os três vinculados ao nível econômico dos moradores desses bairros, e reveladores de certos desejos e valores sociais. Claro está que o nome do prédio não é escolhido pelos moradores, e sim por quem construiu o prédio. Mas podemos pensar que o nome faz parte da estratégia de atração dos possíveis compradores. Para além da beleza do prédio ou da sua localização, o nome colabora para atração do cliente, é o que imagino. Há conexões entre nome de prédio e perfil de morador desejado. Tal conclusão não se aplica a moradores individuais: aqui se trata de questões da ordem do social e do cultural.

O primeiro grupo de nomes intitulei NÓS SOMOS ÚNICOS. Podemos pensar também em NÓS SOMOS OS PRIMEIROS, ou NÓS ESTAMOS NO TOPO. Há uma enorme quantidade de prédios com nomes reveladores de estratégia de distanciamento social. Não confundir com o distanciamento recomendado para se proteger do vírus da COVID 19. Os nomes indicam um desejo de distância em relação aos demais. Nomes como Edifício Ápice, e murais de propaganda de venda de apartamentos com frases como “seja um dos sete”, em alusão ao nome do prédio, Seven Bela Vista, e ao fato de que nele só há sete apartamentos.

Dentre os exemplares colhidos para dar corpo a esse grupo, citamos: The Excellence, The One, Fascino (charme em italiano), Maximus (encontrei três prédios com esse nome), Celebrity, Exuberánce (em francês correto, Exubérance), Essenza, Massimo Auxiliadora, Residencial Dolcezza, La Differénce (nos dicionários, Différence), Acrópole (Atenas tem apenas uma acrópole, Porto Alegre tem pelo menos três prédios com esse nome), Number One. De mistura com essa estratégia de diferença social, de demarcação de distanciamento em relação aos demais, há a epidemia de anglicismos, francesismos, italianismos, espanholismos e outros ismos que remetem ao Primeiro Mundo.

O segundo grupo intitulei de NÓS APRECIAMOS O ANTIGO REGIME. Por Antigo Regime designo um conjunto de monarquias nacionais europeias, entre os séculos XV e XVIII, com sistema social de viés aristocrático, regime político centralizado e absolutista e de concentração de poderes nas mãos de um rei. No caso brasileiro, insiro nessa designação nosso período monárquico, entre os anos de 1822 e 1889. Em particular o reinado de D. Pedro II, aquele monarca que do berço ao túmulo foi um velho com barbas brancas e ar bonachão, e cujo pai atravessou a vida em idade jovem correndo atrás de mulheres e andando a cavalo.

Há dois campeões de nomeação, não por acaso de origem francesa, afinal a França é a encarnação do Antigo Regime. São eles Palácio de Versalhes (com todas as grafias possíveis, de Palais Versailles a Palácio de Versailles) e Louvre (Maison Louvre, Palácio do Louvre, Palais du Louvre, Louvre, Quartier Louvre). Há nomes como Majesty, Parc Des Princes, Spazio Reale, Noblesse. Por vezes os nomes não designam algo muito definido no âmbito do que aqui denomino Antigo Regime, simplesmente são termos-chave dessa época, de instituições ou linhagens nobres, e temos então Edifício Império, Edifício Barão, Edifício Visconde, Edifício Regência, Edifício Regente, Ed. Lord, Edifício Condessa, Edifício Príncipe Regente, Maison Royale, Vila do Conde, Condado de Bourbon, Villa Real (outro campeão de designações), Solar Real, Solar do Marquês, Edifício Monarca, Ed. Windsor. Em determinada rua, para não confundir, foi necessário designar Edifício Príncipe e Edifício Príncipe II, distantes duas quadras. Há nomes que remetem a figuras associadas ao Antigo Regime, e aqui temos Edifício Duque D’Orleans ou Rainha Vitória. E temos a epidemia do Dom ou Don: Dom Felipe, Dom Ricardo, Dom Rafael, Dom Esteves, Dom Clemente, Don Carmine e por aí afora. E os nomes da monarquia brasileira, com destaque para o Imperatriz Leopoldina e especialmente o Barão do Rio Branco, um campeão de designações na cidade – achei cinco exemplares. Certo toque gaúcho está dado em nomes como Barão do Triunfo ou Barão do Cahy.

Na contramão dessa tendência, há uma completa ausência de nomes que remetam a valores republicanos. A república parece não ser um regime político muito adequado à nomeação de prédios. Valores fundantes da Revolução Francesa (que derrubou o Antigo Regime), tais como liberdade, igualdade, fraternidade, não inspiram nomes de prédios. E veja-se que liberdade e igualdade estão inscritas na bandeira do Rio Grande do Sul. Não há prédio com o nome de democracia, mas há prédio com o nome de império. Encontrei apenas um edifício com o nome de Solar da Liberdade, no bairro Menino Deus.

O terceiro agrupamento intitulei NÓS GOSTARÍAMOS DE VIVER FORA DO BRASIL. Cheguei a percorrer uma rua, toda ela de prédios novos, em que a totalidade dos nomes remetia a lugares fora do país, com óbvia concentração em alguns países europeus. Lugares pouco expressivos, mas situados em New York, também podem render um bom nome de prédio fino em Porto Alegre. Daí temos Montparnasse, Île de France, Trocadero, Cannes, Ville Roland Garros, L’Hermitage, Saint Michel, Biarritz, Marseille, Riviera dei Fiori, Verona, Piemonte, Florença, Colina Maggiore, Villa Borghese. Mas há também Saint Moritz, Mônaco, Principado de Andorra, Monte Carlo, Condado de Luzerne, Salzburg, Munich, Majorca e Palma de Mallorca (campeões, achei nada menos que cinco), Ibiza, Aspen Hill. Não há quase nada da África em nomes de prédios: achei um Edifício Lago Vitória, um Mallawi, um Transvaal. Da Ásia e Oceania nada. Da América Latina ficamos com Chile e Argentina, com Bariloche, Punta Arenas, Baía Blanca, como exemplos. Encontrei apenas um Edifício Brasil, no Bairro Bom Fim. 

As três concentrações de nomes indicam tendência geral clara em termos de apelo cultural: queremos viver no topo, queremos viver em outro tempo e com outros valores (no Antigo Regime), queremos viver em outro espaço (Europa). Mas cá estamos todos e todas, no CEP 90.000-000, altitude média de 10 metros acima do nível do mar, Porto Alegre.

Quem quiser conferir mais fotos, clique aqui.


Fernando Seffner é professor na Faculdade de Educação UFRGS.

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