Ensaio

Tiradentes em Lisboa

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Tiradentes em Lisboa

A viagem que ele nunca fez

Ano a ano, via o Alferes Joaquim José passar à sua frente, na hierarquia militar, colegas de farda que, julgava, tinham menos méritos e mais “comadres que lhes serviam de empenho”. Decepcionado com a tropa, requereu a ocupação de 8 sesmarias de terra inculta para dedicar-se à extração do ouro. Rocinha da Negra, chamava-se o lugar, na fronteira de Minas Gerais com o Rio de Janeiro. Hoje, a região faz parte do município de Simão Pereira. Saint-Hilaire a visitou no princípio do século XIX. Era “o primeiro lugar habitado que se encontra depois do Paraibuna” e “onde se vê um rancho e uma venda construídos num vale à margem de um regato”. Em terras ribeirinhas, Tiradentes pôs-se a trabalhar com duas escravas e três escravos, Francisco, Caetano e João Camundongo. Ou lhe faltaram recursos para persistir ou a Rocinha da Negra não respondia aos seus propósitos. Endividou-se, teve os bens penhorados. A ascensão a senhor de lavras foi mais um sonho que se desfez. Recorreu então ao cultivo da terra e ao abastecimento da tropa. Outro desengano: é conhecido um documento em que reclama da contraprestação, “porque então me não faz conta alguma comprar milho a duas patacas, para dar ao Rei a seiscentos réis”.

Só não malograva no que aprendera com o padrinho, mister que não o enriquecia nem o relevava nos férreos estratos sociais da colônia: continuava a arrancar dentes e a fabricá-los de osso, com rara habilidade. Sobre essa prenda do alferes, Frei Raimundo Penaforte, que em 1792, no Rio de Janeiro, seria um dos confessores dos réus condenados à pena capital, deixou registrado: “Tirava, com efeito, dentes com a mais sutil ligeireza, e ornava a boca de novos dentes, feitos por ele mesmo, que pareciam naturais”.

De volta ao quartel e com o soldo garantido, obteve outra e prolongada licença. Foi para o Rio e ali protocolou um requerimento para ir a Lisboa. Essa viagem é uma das mais nutridas lendas de sua biografia. Estava esquecida e foi reavivada nos anos 60 por M. Rodrigues Lapa num jornal mineiro. Frisa o especialista gonzagueano que a ida do alferes a Lisboa “é uma hipótese de trabalho em que resolutamente acreditamos”, e acrescenta que “Tiradentes foi a Portugal no intuito de arranjar fundos para a sua revolução”. Apoia-se em documentos e recorda como progrediu sua convicção:

Sucedeu porém que, rebuscando um dia os papéis do Arquivo Histórico Ultramarino, encontramos a prova de que a viagem a Portugal foi, pelo menos, projetada, requerida e concedida. Em requerimento do ano de 1787 pedia licença para vir a Portugal por um ano, a fim de tratar dos negócios de sua casa, prejudicados com falta de assistência pessoal, e requereu novamente em 1788, por ter estado doente, segundo alegava. Parecia, com isto, confirmar-se a estada do alferes em Portugal. Essa convicção foi singularmente robustecida por um curioso documento que encontramos na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde se lê, em nota à margem, este informe sobre o conjurado: “Tiradentes, autor e cabeça, falador etc., inimigo de Gonzaga, preterido quatro vezes, sendo bom militar, pobre, tudo confessou. Entusiasta pela América Inglesa, chegara da Europa e ocupava-se de um trapiche em Andarauhy.” Se tudo está certo nessa nota, revelando perfeito conhecimento do condenado, era natural que se não inventasse a viagem a Portugal, o que seria absurdo e descabido: a estada de Tiradentes em Lisboa só podia resultar ou de conhecimento direto ou de uma notícia que se propalara.

Concede o ensaísta português que, nos Autos de devassa, não há nenhuma alusão à viagem, mas crê ter achado no mesmo lugar um papel que tacitamente a admite. É a certidão das licenças do alferes no regimento de Vila Rica, passada a 10 de outubro de 1789 pelo novo comandante, Sargento-Mor Pedro Afonso Galvão de São Martinho:

Certifico que Joaquim José da Silva Xavier, alferes da 6ª Companhia do dito regimento, saiu desta capital para o Rio de Janeiro em 2 de março de 1787, com dois meses de licença, e depois teve mais dois meses de prorrogação, concedida pelo Excelentíssimo Senhor Luís da Cunha Menezes, que era governador e capitão-general desta capitania. Além do dito tempo, o mesmo alferes se demorou no Rio de Janeiro, por moléstias e outras causas, até que se apresentou no regimento em 28 de agosto de 1788. Teve segunda licença de um mês para ir ao Rio de Janeiro, que principiou em 10 de março de 1789, à qual excedeu. O que tudo consta dos Mapas do Mês do regimento. E do livro-mestre consta, à fls.19, em que está o assento do dito alferes, que em 10 de maio de 1789 foi preso na Ilha das Cobras do Rio de Janeiro, à ordem do Ilustríssimo e Excelentíssimo Vice-Rei do Estado, que o mandou entregar à justiça.

Tiradentes, na primeira licença comprovada, esteve afastado de sua unidade por um ano e meio, reflete Rodrigues Lapa, e nisto “parece residir a chave do enigma”: ele encaminhou um projeto sobre a construção de moinhos no Rio de Janeiro e solicitou permissão de passar ao reino por um ano, pois “sendo preciso, ele próprio iria à corte de Lisboa explicar e defender seu plano”. Observa Rodrigues Lapa que a partida não teria ocorrido antes de 1º de outubro de 1787, pois neste dia, no Rio, Tiradentes assinava procuração para que em Minas lhe recebessem os soldos do terceiro trimestre. Contudo, estando disponível no resto do mês, pode ter sido passageiro do navio mercante Nossa Senhora de Belém e São João Batista, que naqueles dias zarpou do Rio para Lisboa com grande carregamento de óleo de peixe, chegando à capital portuguesa a 13 de dezembro e ficando pronto regressar em 23 de maio de 1788. E arremata:

De qualquer maneira, se o alferes se deslocou a Portugal nos princípios de outubro de 1787, tendo chegado a Lisboa em meados de dezembro (…), tinha tempo de sobra para tratar de suas “dependências”, como se chamava então às necessidades e negócios particulares, e voltar ao Brasil em abril ou maio do ano seguinte, chegando em agosto ao Rio de Janeiro.

A idealização de Tiradentes como um homem viajado e, por isso, culto, preparado para liderar uma insurreição no Novo Mundo, tem alguns antecedentes. O primeiro autor a avançar esta matéria, segundo Rodrigues Lapa, foi o romancista português Camilo Castelo Branco, em O demônio do ouro, onde o alferes é embarcado num navio que vem do Pará com destino ao Maranhão. Narra Camilo:

Entre os passageiros, distinguia-se um brasileiro de Minas, chamado Joaquim José da Silva Xavier, mais notório pela alcunha de Tiradentes. Trajava insígnias militares; falava com diversos passageiros em suas línguas e revelava cópia de conhecimentos hauridos em prolongadas viagens na Europa e Estados Unidos. Com o estadista Sackville conversava em correto inglês.

Rodrigues Lapa admite que o retrato é “falseado”, no que está certo, mas se equivoca ao atribuir a Camilo a primazia da invenção. O romance é de 1873. No mesmo século XIX outros autores, como Saint-Hilaire e Richard Burton, citam as supostas andanças europeias do Tiradentes, antes de Camilo e tão aereamente quanto ele.

Saint-Hilaire anota que “nos princípios da revolução francesa, parece que um indivíduo, que viajara à Europa, costumava externar em conversa ideias muito imprudentes e perigosas”. É flagrante a desinformação do sábio. Louvando-se em Spix e Martius, refere-se a Tomás Antônio Gonzaga, que foi ouvidor em Vila Rica, como tendo sido ouvidor de São João del-Rei, ou seja, confunde Gonzaga com Alvarenga Peixoto, e no que nos interessa confunde Tiradentes com José Álvares Maciel. Este chegara da Europa, fazendo fermentar aqui ideias de libertação que se discutiam no Velho Mundo, mas quem as externava em falas desabridas era Tiradentes. Já Richard Burton diz que, segundo a tradição, Tiradentes “estudou em escolas militares da França e ali amadureceu o projeto de uma Pan-América, acrescentando Minas à lista das repúblicas encabeçadas pelos Estados Unidos”. Além de não fundamentar a tradição, em nota posterior reconhece o disparate e o corrige: “A tradição é falsa. Ele nunca saiu do Brasil”. 

Esses pioneiros, felizmente, não tiveram seguidores, e com o silêncio dos assentos judiciais a matéria tenderia a esgotar-se, não fosse a interpretação que dá Rodrigues Lapa aos papéis que leu no Arquivo Histórico Ultramarino. São dois requerimentos que o alferes apresentou à ouvidoria do Rio de Janeiro, solicitando permissão para ir a Portugal. Eis o mais antigo, de março de 1787, dirigido à rainha:

Senhora: diz Joaquim José da Silva Xavier, alferes da Cavalaria de Minas Gerais, que tendo algumas dependências de sua casa nessa cidade [Lisboa] nas quais estão cada vez mais deteriorando-se os seus bens por causa da falta de sua assistência, precisa que V. Majestade conceda licença por tempo de um ano para vir a essa corte, findo o qual se recolhe logo para continuar a exercer o real serviço; portanto: pede a V. Majestade seja servida facultar-lhe a licença por tempo de um ano, graça esta que V. Majestade tem concedido em iguais circunstâncias.

Em Lisboa, o Conselho Ultramarino deferiu o pedido em sessão de 4 de setembro de 1787, e quatro dias depois expediu a respectiva provisão.

O outro requerimento é de fevereiro de 1788:

Senhora: diz Joaquim José da Silva Xavier, alferes da Cavalaria em Minas Gerais, que V. Majestade foi servida conceder-lhe um ano de licença, por provisão passada por esse régio tribunal de 7 de setembro do ano próximo passado [8 de setembro], para o suplicante vir a essa corte tratar de negócio muito interessante à sua casa, de que se lhe pode seguir ruína com a falta de sua assistência; e como por moléstia maior não pôde o suplicante utilizar-se da graça que V. Majestade lhe liberalizou, pretende novamente que tenha o seu devido efeito, mandando-lhe V. Majestade passar a mesma por segunda via para poder transportar-se a essa cidade, como tanto se lhe faz preciso. Pede a V. Majestade seja servida mandar se lhe passe a dita provisão na forma requerida. Despacho do Conselho: “Expedida por segunda via em 22 de agosto de 1788”.

Ao propor uma data e um navio para o transporte do herói, Rodrigues Lapa não especifica se, no seu entendimento, a viagem foi legal ou clandestina, de sorte que convém discutir as duas hipóteses.

No curso de 1787, é certo que Tiradentes não usou a autorização para viajar. Primeiro, porque ele próprio o diz no segundo requerimento remetido à corte, solicitando, por isso, segunda via da provisão. Segundo, porque o pedido de março de 1787 só veio a ser apreciado no Conselho em sessão de 4 de setembro, expedida a provisão a 8 do mesmo mês. Seria de todo impensável que, chegando tal documento ao Rio no fim de novembro ou início de dezembro, pudesse o alferes seguir para Lisboa e, já em fevereiro, estar de volta ao Rio para peticionar uma segunda autorização, sob o pretexto… de não ter viajado! Também em 1788 a viagem regular não é demonstrável. Em fevereiro, no Rio, Tiradentes encaminhou o pedido da segunda via. Em Lisboa, o Conselho manifestou-se em agosto, no dia 22, e a condição legal, portanto, só poderia chegar ao Brasil no final de outubro ou início de novembro. Ora, pela certidão de suas licenças militares já se sabe que, desde 28 de agosto, ele já se achava em Vila Rica. Deixara o Rio 15 dias antes, na escolta do Desembargador Pedro José de Araújo Saldanha, que vinha assumir a ouvidoria na capital de Minas.

A viagem clandestina é mais problemática. Se em 1787 o conspirador desejava cumprir importante missão em Lisboa, tão secreta que a ida para lá não poderia ser legal, por que requereu em março a autorização para partir? Além disso, tendo chegado ao Rio nos primeiros dias de março de 1787, vindo de Vila Rica, em maio ele ainda estava na mesma cidade, pois solicitou prorrogação de sua licença no regimento. E se fosse em maio para Portugal? Contando-se os dois meses e pico de uma boa travessia, a volta ao Brasil, conquanto imediata, ocorreria em fins de outubro ou início de novembro, mas em 1º de outubro, ainda no Rio, o alferes passava um documento ao seu procurador para lhe cobrar os soldos. Rodrigues Lapa então supõe que Tiradentes partiu nos primeiros dias de outubro de 1787, no sobredito navio, retornando em agosto do ano seguinte. Impossível. Se partisse em outubro para voltar quase um ano depois, não teria condições de estar no Rio em fevereiro, quando pleiteou a segunda autorização. E supondo-se que tivesse conseguido retornar velozmente, teria chegado ao Rio e requerido a segunda autorização? Acresce que seria uma grande tolice ausentar-se ilegalmente em outubro, pois estaria fora do país quando a primeira autorização, concedida em setembro pelo Conselho, chegasse ao Rio no final do ano. Admita-se ainda, apenas para argumentar, que Tiradentes teria ido a Lisboa não em 1787, mas após a apresentar o segundo documento, ou seja, em fevereiro de 1788, a tempo de retornar a 13 de agosto, data em que viajou com a escolta para Vila Rica. Também aqui a especulação não prospera, a 19 de junho ele se encontrava no capital no Brasil e foi estrepitosamente apupado num teatro. No mesmo dia, ofereceu à ouvidoria do Rio outra petição, tratando do negócio que pretendia montar, o dos moinhos. Em julho, esteve com José Álvares Maciel, que voltava da Europa, e a 13 de agosto já ia na estrada para Minas. Daí em diante, são bem conhecidos e documentados os seus passos.

Outra prova circunstancial invocada por Rodrigues Lapa, um rabisco anônimo e sem data à margem de um manuscrito, ainda que se lhe releve a precariedade, perde seus efeitos face à compacta impossibilidade de maiores deslocamentos do alferes, mas é curioso observar que ele contém dez informações biográficas, e nove delas, até nos termos usados, nos remetem aos Autos de devassa. Isso significa que o escriba anônimo leu o processo e não que, necessariamente, conhecia Tiradentes, como quer Rodrigues Lapa. Ao que tudo indica, não conhecia, pois a única notícia que dá, não provinda do processo, é falsa: a da ida à Europa. Uma grande boataria circulou enquanto tramitava o processo e foi talvez um desses cochichos que conjugou, na imaginação popular, Tiradentes com Maciel, enganando o rabiscador de manuscritos e até um sábio francês. “Uma notícia que se propalara”, deixa escapar Rodrigues Lapa. De fato.Dito isto, fica esclarecido se Tiradentes foi ou não foi a Lisboa, junto com a carga de óleo de peixe, no navio Nossa Senhora de Belém e São João Batista. Não foi, como reconhece o mais competente anotador da segunda edição dos Autos de devassa, historiador Herculano Gomes Mathias. Ou, quem sabe, distraiu-se na hora do embarque e fez a viagem errada, daí ter sido visto no convés de um navio costeiro, a cavaquear em correto inglês com o estadista Sackville…


Sergio Faraco é escritor.

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