Tradutora: uma leitora e criadora privilegiada

Todas as usuárias da língua exercem o papel maior ou menor de criadoras e transformadoras das formas de expressão que ampliam e renovam a capacidade de descrever e lidar com o mundo, com a realidade que nos molda e é moldada por nossas ações e omissões. A tradutora, sendo leitora privilegiada (porque lê primeiro), talvez seja também criadora privilegiada em sua língua: são várias as formas de leitura profunda, mas é evidente para quem quer que já se viu levado a verter um texto criativo para o próprio idioma que a tradução requer um nível de profundidade que em alguns casos beira o insalubre.
Algum tempo atrás, Andrei Cunha, professor da UFRGS e tradutor de literatura japonesa, publicou na edição de agosto de 2021 da Parêntese um artigo em que menciona o que ele chama de “possessão tradutória”, que ocorre “quando a tradutora se imbui de tal maneira do texto que passa a imaginar ser ela a autora. Há muitos tradutores brilhantes que são acometidos desse quase transe alucinatório quando escrevem, e quando esse processo funciona bem ele pode trazer benefícios ao texto de chegada. Por outro lado, e o risco é grande, essa ilusão (narcisista, possessiva, megalomaníaca) de que um texto escrito por outra pessoa pode se tornar nosso acarreta um potencial apagamento da voz autoral”.
É um risco inerente à tradução literária que, por mais bem feita, sempre vai ser, como a lei de direitos autorais define, “obra derivada”. Para lá da letra fria da lei, porém, traduzir é também ato de fé e de amor. Ato de fé na possibilidade de diálogo entre culturas pelo intercâmbio de experiências humanas que se refletem de forma concentrada na literatura. E ato de amor a uma língua e a um mundo que, não sendo nossos de nascença, tornam-se nossos por opção e adoção.