Ensaio

Um certo Josué Guimarães

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Um certo Josué Guimarães

“Não tens medo?” – perguntei-lhe numa tarde de 1980, depois de ter lido uma crônica política sua na Folha de São Paulo, em que atacava com implacável veemência a ditadura militar. “Tenho” – respondeu-me. “Mas, na hora da escrita, penso no que está ocorrendo no país e venço os meus temores.”

Vi-o então com seu porte majestático, a barba dando-lhe o aspecto de profeta bíblico que o seu próprio nome anunciava e tive orgulho de ser seu amigo. Admirava-o pela coragem, pelos livros e também pelo humor, que se traduzia em uma profusão delirante de casos e acontecimentos vividos ou observados e alguns provavelmente resultantes de sua energia inventiva. Era um causeur magnífico, capaz de levar os ouvintes ao paroxismo do riso ou à emoção mais candente, pois a exemplo da maioria dos grandes ficcionistas do mundo parecia ter vivido todas as possibilidades do humano, das experiências mais ínfimas às mais avassaladoras.

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“Não tens medo?” – perguntei-lhe numa tarde de 1980, depois de ter lido uma crônica política sua na Folha de São Paulo, em que atacava com implacável veemência a ditadura militar. “Tenho” – respondeu-me. “Mas, na hora da escrita, penso no que está ocorrendo no país e venço os meus temores.”

Vi-o então com seu porte majestático, a barba dando-lhe o aspecto de profeta bíblico que o seu próprio nome anunciava e tive orgulho de ser seu amigo. Admirava-o pela coragem, pelos livros e também pelo humor, que se traduzia em uma profusão delirante de casos e acontecimentos vividos ou observados e alguns provavelmente resultantes de sua energia inventiva. Era um causeur magnífico, capaz de levar os ouvintes ao paroxismo do riso ou à emoção mais candente, pois a exemplo da maioria dos grandes ficcionistas do mundo parecia ter vivido todas as possibilidades do humano, das experiências mais ínfimas às mais avassaladoras. 

Ainda nos primórdios dos 80, em certa noite memorável, reuni pequeno grupo para homenagear Cacá Diegues, que viera lançar Bye Bye Brasil em Porto Alegre. Estavam lá, além do cineasta, Joaquim Felizardo, Voltaire Schilling e Josué Guimarães. Para nosso deleite, Josué falou durante três horas seguidas. Parecia possuído pelos demônios da inspiração, como aqueles narradores orais primitivos. Às vezes erguia-se da poltrona e encenava um dos relatos. Tudo era engraçadíssimo, uma história puxava outra, a fecundidade episódica era inesgotável, assim como as gargalhadas que emitíamos, todos nós à beira da apoplexia. Recordava acontecimentos de sua militância política nos quadros do Partido Comunista e depois nas hostes janguistas, e em tudo pairava o acento do risível, do extravagante e do absurdo.

Esta larga vivência da realidade (foi político, publicitário, jornalista, diretor da Agência Nacional e, durante certo período, assessor de importante banqueiro) tornou-se a base de seus voos imaginativos. Muitas vezes ouvi-o falar de projetos ficcionais centrados em intrigas plenas de enigmas, surpresas e ações trepidantes. Sua criatividade desconhecia limites. 

Recordo de uma dessas tramas envolvendo uma telefonista de Viamão (no tempo anterior à discagem automática) que escutava todas as conversas dos assinantes e depois enviava cartas anônimas, com denúncias de trapaças, adultérios e outros crimes morais dos transgressores, semeando o pânico e o ódio na cidade. Essa e tantas outras histórias lamentavelmente não foram escritas. Josué Guimarães morreu cedo, aos 65 anos (1921-1986). Sua imaginação era mais dilatada que o tempo que lhe coube na face da terra.

Dois ótimos romances 

A vida fremente garantiu-lhe também aquela singular sabedoria empírica que transparece em seus principais romances. Na trilha de Balzac, Tolstói e outros grandes realistas, conseguiu criar convincentes simulacros do mundo, dando ao leitor a impressão de que a multiplicidade do real explode ali, dramática, vibrante, intensa. Apenas para citar um exemplo dessa percepção arguta da realidade: em Camilo Mortágua (1980), uma de suas melhores narrativas, exibe primoroso conhecimento dos mecanismos de ascensão social e decadência, sem as simplificações tão comuns a outros ficcionistas que expressam a dinâmica entre as forças produtivas e as classes sociais desconhecendo a complexidade estrutural da economia capitalista. 

Já para escrever os dois volumes de A ferro e fogo (1972-1975) muniu-se de todas as informações existentes sobre a imigração alemã e soube fundir fluxo histórico, construção de destinos humanos singulares e anotações sobre o cotidiano de uma época há muito desaparecida. O resultado final (ainda que o anunciado terceiro volume do romance jamais se concretizasse) é a poderosa sensação de verossimilhança que emerge de suas páginas. As cenas reveladoras do desespero do imigrante Daniel Abrahão – escondido em um buraco de onde jamais quererá sair enquanto durarem os sangrentos conflitos na província que não lhe dizem respeito – estão entre as mais extraordinárias da narrativa brasileira do século XX. 

Desde a publicação de A ferro e fogo, Josué Guimarães foi considerado o sucessor natural de Erico Verissimo. A influencia era visível a olho nu. Ambos, com pequenos desvios, seguiam o modelo real-naturalista da tradição europeia do século XIX e, como poucos, sabiam construir urdiduras repletas de acontecimentos e paixões crepitantes que seduziam os leitores. Ambos, em muitas obras, se debruçaram sobre o presente para filtrar a fisionomia moral e política de seu tempo. 

Ambos, sobretudo, produziram ambiciosos painéis totalizantes do passado rio-grandense, embora o corte histórico de A ferro e fogo fosse menos abrangente que o de O tempo e o vento. Nessas narrativas, intentaram edificar grandiosos afrescos por meio da sucessão de gerações de família nucleares que – em sua existência privada – resumiam e compendiavam as circunstâncias formadoras do processo sócio-histórico da província.

No caso de Erico, porém, o seu texto se repartia de modo fascinante entre o elogio aos pioneiros, a celebração épica e a arguição da violência sanguinária das elites que dominaram o Rio Grande e, mais tarde, o Brasil. Enquanto isso, a civilização de camponeses e pequenos artesãos retratada por Josué se construía na aridez de um ramerrão duro e frequentemente mesquinho, em que o maior heroísmo possível era a adaptação aos trópicos e a luta pela sobrevivência.  Mas nem a menor ambição e nem a presença de uma humanidade psicológica e socialmente menos variada impedem que A ferro e fogo seja um digno sucedâneo O tempo e o vento – o romance histórico definitivo escrito no país.

Enquanto a noite não chega

Na minha perspectiva, Enquanto a noite não chega (1978) fecha com Camílo Mortágua e A ferro e fogo o conjunto de relatos culminantes que escreveu. Ele próprio considerava esta pequena novela de dimensão elegíaca e rara beleza humana a sua obra máxima.  Há 40 anos escrevi algo a respeito:

“O vento da primavera sopra forte na cidade morta, abandonada. Numa das poucas casas ainda em pé, o casal de velhinhos espera a morte. Os dois não quiseram partir; debaixo daqueles escombros jazem as lembranças, os últimos frêmitos de vida, o imaginário álbum de família composto por reminiscências que os distraem. Ficou também o coveiro para enterrá-los. Os três aguardam o desenlace sem horror. A memória os conforta. A evocação do passado, os rostos perdidos, o vozerio, as emoções, o cenário recomposto dão-lhes a consciência de que cumpriram o ciclo vital e de que agora a paz os aguarda. (…)

A morte exerce aqui, como em outros textos do autor, uma função purificadora, libertando as criaturas da angústia permanente da existência. As ressonâncias do pensamento bíblico, filho que era de um pastor da Igreja Episcopal, são evidentes. (…) Há um fascínio pela morte em Josué Guimarães. Com frequência, seu universo é varrido por ventos de desolação e desengano. 

A visão cética não pode ser explicada apenas à luz da negra década de 70. Deve ter raízes mais fundas. Provavelmente este socialista indignado, filho de pastor, não esqueceu a concepção apocalíptica da religiosidade paterna. Os escritores são conduzidos por demônios da interioridade, muitas vezes nascidos na infância. Mas o apocalipse segundo Josué Guimarães baniu Deus e Canaã. O efeito de dor e perda nasce da certeza subjacente de que os atos humanos são inúteis diante da máquina ilógica da existência.”

Outras obras

A admirável capacidade fabuladora de Josué Guimarães emerge em todos os seus livros, inclusive naqueles mais leves e cômicos como o divertidíssimo Dona Anja (1978), cujo eixo gira em torno da votação da lei que autorizava o divórcio no país e de malfadada visita de um prefeito interiorano ao bordel de Dona Anja.

Dois outros livros obtiveram grande estima do público: É tarde para saber e Os tambores silenciosos, ambos de 1977. O primeiro, um relato breve sobre o complicado namoro de casal de adolescentes, tem como pano de fundo – difuso no início, explícito e trágico no desfecho – os anos da ditadura e da guerrilha urbana. Embora a simplicidade de sua história e os rarefeitos caracteres dos protagonistas, o texto comove até hoje.

Os tambores silenciosos, por seu turno é um romance ao mesmo tempo satírico, alegórico e com rápidas imersões no fantástico. O enredo envolve o leitor: na década de 30, estudantes da imaginária cidade de Lagoa Santa se rebelam vitoriosamente contra o prefeito despótico que creditava os males do mundo à imprensa e proibira a posse de rádios e a circulação de jornais, criando uma falsa “ilha de tranquilidade” no município. 

Tanto o triunfo da sedição juvenil contra a censura e a repressão quanto o suicídio final do prefeito, envergonhado de seus erros, são inverossímeis do ponto de vista político, mas a astúcia do narrador e a necessidade de fantasias revolucionárias (que tínhamos nos anos 70) superam a inconsistência do argumento. A mescla de realismo, alegoria e fantástico na forma narrativa e de panfleto libertário na visão da realidade evocam Incidente em Antares, de Erico Verissimo, que falecera dois anos antes.        

Antes disso, em 1973 viera à luz Depois do último trem, espécie de homenagem ao realismo mágico latino-americano então em voga. Havia fortes reminiscências de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, na história do rapaz que volta a sua cidadezinha de origem, condenada por uma barragem que vai alagá-la. O jovem vaga por um mundo de destroços e lembranças confusas. Resolve então ficar ali, neste cenário habitado por seres fantasmagóricos, até a partida do último trem (que de há muito já partiu). De certa maneira, o romance antecipava o motivo que viria a ser recorrente no conjunto da obra: o pungente aniquilamento dos seres diante da passagem do tempo.

Os senões

Talvez por ter começado tardiamente sua carreira literária, talvez pelo obscuro presságio de morte que o perseguiu, Josué escrevia com pressa. O turbilhão de sua memória e a natureza inesgotável de seus projetos induziram-no a uma linguagem que às vezes peca pela insuficiente densidade artística. Sua prosa parece anterior à revolução formal proposta por Flaubert, que conferiu à escritura luminosa consistência verbal e dimensão polissêmica.

Como ocorre com muitos autores contemporâneos, seu estilo aproxima-se do estilo jornalístico: expositivo, acessível, mas fosco. Faltam-lhe nuances, elipses e ressonâncias poéticas. Um estilo comum.  Há também certo descuido na composição e frequente superficialidade psicológica na elaboração dos personagens.          

Contudo, paradoxalmente, esses defeitos esmaecem diante das estratégias narrativas; a riqueza das urdiduras; o poderoso surto de acontecimentos; a ciranda de desenfreados atos humanos; as tensões das escolhas a serem feitas; a força erótica; e a inquietante surpresa dos destinos pessoais que irrompem nos romances e nas novelas. Por causa disso, seus relatos resistem. E continuam enfeitiçando os leitores de hoje. 

É o triunfo daquilo que poderíamos designar como o encanto da imperfeição.


Sergius Gonzaga é professor de Literatura Brasileira na UFRGS, autor de O hipnotizador de Taquara, entre outros livros. 

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