Ensaio

Vera Margot Mogilka: A escrita na pele (Parte final)

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Vera Margot Mogilka: A escrita na pele (Parte final)

Você pode ler também os textos anteriores deste ensaio: Parte 1 e Parte 2

O processo pautado no AI-5: anos 1970

O terceiro capítulo sobre Vera Mogilka, essa intrigante escritora esquecida pelo RS, joga um pouco de luz nos escuros labirintos da Ditadura, na sua relação com a personagem dessa minibiografia. Passa por A história de Délia e tenta alcançar os últimos dias de uma vida boa para filme. É para puxar o fôlego. 

Em novembro de 1970, Vera está na Bahia, ainda de licença, provavelmente fazendo trabalhos na imprensa local, atuando como repórter. Depois de anos afastada, tem que retornar para a Agência Nacional, quando é transferida, pelo Decreto 67.684, de 30/11/1970, para Brasília, onde passa a integrar outro órgão federal.

Em 1971, no Ministério do Trabalho e Previdência Social, torna-se objeto de um longo processo administrativo, que visa condená-la por inassiduidade – ao todo são relacionados 87 dias faltosos. Vera alega que as ausências são em razão de estar residindo em Planaltina, distante 44 km de Brasília, do emprego. Dependente de rotas escassas de ônibus, cuida sozinha de 4 filhos com a idade de 6 e 11 anos – sua explicação para as falhas.

A pendenga logo é transformada num outro processo de instrução sumária, em que é retratada como subversiva perigosa e com problemas mentais que a deixariam agressiva. Existia alguma condição patológica, stress? Difícil saber, mesmo porque inúmeras manifestações mentais não são impeditivas da arte – vide Maura Lopes Cançado (1929-1993) e o próprio Qorpo-Santo (1829-1883). Bem, muito bem, repita-se, ela escreve. Com arrebatamentos, altos e baixos – mais visíveis nas cartas que endereça a amigos.

Em alguns documentos arrolados, existem registros duvidosos de uma possível atuação, desde antes de 1964, com grupos comunistas. Todo um (suposto) passado é retomado (ou ficcionalizado). Desenha-se um perfil de insurgente contra o Estado. As incriminações abundam: “Funcionária do MEC em BRASÍLIA, é comunista vem exercendo grandes atividades no campo universitário, tem dado cobertura aos estudantes que seguem as instruções do PC [Partido Comunista…]. Consta manter correspondência com DARCY RIBEIRO, LEONEL BRIZOLA e SEBASTIÃO RIBEIRO HOYOS”, diz uma parte da acusação (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212). Vera também teria, enquanto morava no RJ (Guanabara), hospedado Cláudio Pereira Tavares. É acusada, ainda, de não romper relações com o filho de Tavares, que estivera preso, comunicando-se constantemente com ele por telegramas e telefonemas.

Vera, rebatendo, alega não conhecer pessoalmente Brizola (1922-2004), Hoyos (1935 – 2011) ou Ribeiro (1922-1997). Quanto a Tavares, sustenta que foram colegas de trabalho em Recife, e que realmente o teria hospedado, mas que “jamais, em época alguma, filiou-se à qualquer ideologia política extremista ou tomou parte ativa em agremiações políticas que visassem subverter a ordem pública”, que se considerava uma individualista e que, as relações que manteve, eram “de pura amizade” (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212). 

Um relatório do Ministério da Aeronáutica, datado de 12/05/1967, descreve que ela, em Belém, “é pessoa de contato dos comunistas João de Jesus Paes Loureiro e Iza Guerra do Rio de Janeiro”, sendo responsabilizada por remeter material do partido comunista para a capital paraense. (BR_DFANBSB_VAZ_0_0_04499, p. 1-4). De fato, parece conviver com muitos dos desafetos da Ditadura, pessoas com as quais se relaciona nos locais de trabalho e no meio artístico. O meio cultural é visto com desconfiança. João de Jesus Paes Loureiro, por exemplo, além de militante de esquerda, é poeta, portanto naturalmente alguém que a interessa. 

De acordo com esses registros oficiais, teria sido nomeada como redatora da Agência Nacional do Ministério da Justiça pelo diretor geral, na época o escritor Josué Guimarães, manifestamente comunista, e lotada em Recife, entre 08/01/1963 e 24/08/1964, de onde seria transferida para Belém e, por fim, para o Rio de Janeiro. Conforme Vera, no entanto, a nomeação acontece em 1961, tendo ela permanecido no Recife até 14/06/1962, dali partindo, a pedido, para a capital do Pará, onde está lotada entre 15/06/1962 a 24/08/1964. 

O rol é um convite à confusão; datas e locais em que Vera estaria, desde 1961, são contestadas por ela com a apresentação de contraprovas e testemunhos. Conforme a defesa, trata-se, como um todo, de óbvio estratagema dos militares para “impedir que a funcionária, caso demitida no referido processo, pudesse ingressar com recurso na Justiça Federal […]” (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212). Ou seja, a seara administrativa não rende a desejada demissão, porque a Justiça a reintegraria, por isso são trazidos elementos (fictícios?) atinentes à subversão. Quem embaralha as datas? Conforme Vera, os “erros flagrantes de datas, documentos e fatos, tudo emaranhado numa mixórdia de informações […] visam somente confundir a mente da funcionária acusada” (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212).

Mogilka pode ter viajado de Belém de volta ao Recife, mas uma nota de jornal, em 08/08/1963, aponta que realmente está na capital pernambucana, pois é ela quem leva Nilza da Silva Costard, que acabara de matar a amante do marido, um capitão. Depois do assassinato, tentara se suicidar, sendo conduzida por Vera ao Hospital da Marinha (Jornal do Brasil, 08/08/1963, RJ, p. 12). Um bom fio de meada para quem gosta de mistérios. Mas pode ser apenas um período de férias.

A relação com Josué Guimarães é erotizada pelos militares. Dizem ser ela amante do escritor, o que ela contrapõe, alegando, inclusive, estar gestante quando passa a ser funcionária da Agência Nacional, no Recife, não havendo possibilidade de interesse dele em 1962. Ela resume o reencontro, destacando ser ele um antigo colega de imprensa do Rio Grande do Sul. Ela aproveita sua passagem pelo município, em 1961, sabendo que iria inaugurar a sucursal da Agência Nacional, para solicitar emprego como redatora, o que consegue. Nunca passara de uma relação de amizade, devolve aos interrogadores.

As sugeridas ações contra o governo militar levam o caso à alçada de segurança nacional, o que tem sua análise baseada no Ato Institucional n° 5. A recomendação oficial é de que seja aposentada com proventos proporcionais. Para além do envolvimento com pessoas e atos, também é questionada sua literatura: “É uma mulher sem formação de caráter, escreveu um livro com o título “A Vida na Pele”, referindo-se sobre a vida sexual do homem anormal. Possui vida política duvidosa, pois mantinha contato com vários elementos supostos extremistas, seus colegas da Agência Nacional/PE, são elementos declarados comunistas.” 

Vera redargue: “[…] A Vida na Pele, absolutamente não trata da vida sexual do homem anormal. Quem isso afirma, jamais leu o livro, baseando-se, unicamente, na capa do mesmo, considerada, pela própria autora, como grosseira, de mau gosto e contra a qual lutou bravamente por ocasião de sua edição. A capa é de autoria, não obstante, de um dos mais renomados artistas plásticos brasileiros, premiado internacionalmente, o pintor Rubens Gerchmann. Como a editora, na época (Tempo Brasileiro, 1965, Rio), não acreditava no sucesso comercial do livro, que fora finalista do I Concurso Walmap e merecera as mais elogiosas críticas […], e temia pela sua não venda ao grande público, achou por bem colocar nele, como chamariz, uma capa de profundo mau gosto. A autora tentou por todos os meios impedir sua impressão mas o clichê já estava composto e o livro saiu com a capa desejada pelo editor Franco Portela na opinião do qual, ‘o brasileiro só gosta de pornografia’. Na ocasião a autora travou uma discussão violenta com este senhor porque na opinião da mesma, era necessário que os editores procurassem educar o gosto do público com boas capas […]” (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212).

Continua: “Justamente pelo fato do livro não ser sobre a vida sexual do homem anormal (ou seja, do homossexual) e sim, um livro de fundo moral, até religioso, é que a Editora temeu pela sua venda fácil e imediata, pelo prejuízo financeiro e comercial que teria e colocou aquela capa. É sabido que obras que tratam de temas como problemas sexuais de homossexuais, prostitutas, lésbicas, etc. têm aceitação pronta e fácil do grande público e não necessitam de capaz audaciosas” (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212). 

“O livro não possui linha política, apresenta uma tese que defende a existência de uma verdade íntima, cristã, dentro de cada indivíduo, narra um fato verídico ocorrido com um amigo da autora em 1961/1962 em São Paulo. E, mesmo que assim não o fosse, teria a autora o direito de escrever o que quisesse, amparada na liberdade de criação artística”. (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212). Certamente, a autora não aguarda tanta repercussão da obra e tampouco retorno financeiro. A acusação sobre A vida na pele reforça como a homossexualidade é, então, agravante – tornando-se mácula de caráter ao olho do conservadorismo vigente, implicando em penas maiores em casos judiciais ou não.

Pode-se imaginar que boa parte da resistência ao que lhe é imputado é redigida astutamente. Cristã? Vera é ateia. Seus escritos não têm solução de continuidade moralista – o que a torna um risco para leitores atuais, apegados à literatura com função social, bastante orientada pelo politicamente correto. Ao desprevenido, é bom não buscar por heroínas feministas – a narrativa é, antes, realista com seu tempo.

O que concluir do quadro de Hieronymus Bosch? Diálogos com os filhos levam a crer que é intimidada a entregar pessoas de sua convivência, mas que envolvimento militante e partidário não há. Em suma, um agrupado de alegações estapafúrdias, tão comuns naquele período em que muitos acabam torturados, se não mortos, sem motivo. A “noia” em relação ao comunismo e seus despropósitos são bem conhecidos.


Vera Margot Mogilka e o filho Sérgio. 


Talvez o mais estranho, nessa fase, não seja o famigerado processo, mas um mistério ainda não desvendado, sobre o qual nada mais sabem os quatro filhos: o sumiço do mais velho, Marcos Léo Mogilka. Em 29/02/1972, o Correio Braziliense grifa que Vera está em busca de Marcos, dado como desaparecido. Ele teria chegado, do RS, sem saber do endereço da família em Brasília. A quem tiver notícias, indica-se que procure a Rádio Nacional (Correio Braziliense, DF, p. 15). 

Em 14/05/1972, o Correio Braziliense destaca que, no dia 16 de fevereiro, Marcos Léo Mogilka foge da casa do avô materno, em Porto Alegre, indo até Brasília, onde chega, no dia 23, em busca da mãe. A reportagem reproduz uma foto de rapaz, aos 13 anos, mas destaca que, naquele momento, ele tem 16 anos. Marcos estaria com cabelos compridos e lisos, magro, de roupa esporte clara. Teria tentado se alistar em quartéis e buscado emprego em bares ou padarias. Está sem documentos. Vera pede que qualquer informação seja repassada para a Delegacia de Menores (Correio Braziliense, DF, p. 9). 

As buscas foram infrutíferas. Há quem diga que Vera encontrou o filho em Brasília e que não foi algo bem sucedido, por isso do sumiço. Há quem ateste que não houve esse encontro antes do sumiço.  Em 17/02/1973, a vida teve que continuar. Vera assina uma reportagem Planaltina, a Cidade-Flor no Correio Braziliense, o que mostra que está trabalhando para o periódico. Trata-se de um panorama da cidade, no qual a verve literária é destacada: “Quem esperar, paciente e calmo, sentado num banco de praça que abre a cidade, verá as meninas indo para as escolas, vestidas de azul e branco; pessoas tomando charretes; velhos e velhas sentados à beira das portas ou debruçados à janela, olhando o povo passar naquela certeza de que viver é bom […]” (Correio Braziliense, DF, p. 3). Como mensurar o quanto esse período impacta na lacuna na apresentação pública de novos escritos? Ou é ocupada pelos quatro filhos? Leva mais de uma década para que Mogilka reabra as asas sob os holofotes literários.

A história de Délia: anos 1980

Cerca dez anos depois, em 1982, é concluído o romance A história de Délia, que chega aos leitores em 1985. A edição fica por conta de Ênio Silveira (1925-1996), que a autora descreve como inteligente e sofisticado, mas que, na revisão de seus originais, a irrita. Ela não acolhe modificações: “Recusei tudo, DÉLIA é intocável. Já propus rescisão de contrato […]”, queixa-se Vera a Paulo Hecker em 09/01/1985 (PHF COR 0232 SIST 53847, p. 2). Tenaz e boa encrenqueira.

A partir de 1984, passa a viver na Bahia. O Boletim da ABI, de fevereiro de 1984, noticia que “Vera Margot Mogilka, nascida no Rio Grande e radicada na Bahia, recebeu o prêmio Cidade de Salvador de jornalismo, instituído pelo ex-prefeito Renan Baleeiro. Vera nasceu em Pelotas e começou a escrever aos doze anos. Hoje é registrada profissionalmente no Ministério do Trabalho. Sua habilidade demonstra que o ofício de escrever em jornal é antes de tudo vocação, que, no entanto, não pode dispensar nem o ensino universitário, nem a prática” (RJ, p. 2).

E o Rio Grande do Sul? Ao menos em alguns momentos, Vera torna ao solo gaúcho. Assim foi em 26/02/1985, quando o jornal O Movimento, mostra que ela, “uma gaúcha que há vários anos reside em Salvador”, está em Caxias do Sul para receber um prêmio pela 3ª colocação no 1º Concurso Nacional de Poemas Sobre o Vinho. Vera anuncia ser seu oitavo prêmio, mas o primeiro recebido em sua terra natal, “por isso não escondia sua emoção”, destaca a matéria. Vera é fotografada por Roberto Scola. O prêmio? Trezentas garrafas de vinho (Caxias do Sul, p. 15). 

Paulo Bentancur (1957-2016), escritor e crítico, fica à dianteira. Leva 500 unidades com o famoso néctar. Mogilka se hospeda alguns dias na casa dele, conforme lembrança compartilhada pelo psicanalista e escritor Celso Gutfreind. Que festança à Dionísio não deve ter sido! Dessa visita a Caxias, ainda resulta uma coletânea batizada de Vinho dá poesia, que contém os poemas dos vencedores, no caso de Vera uma mescla de vinho e eroticidade, essa tão norteadora das suas composições.

Escritora sempre de mão cheia. Em 1986, fica em 2° lugar no prêmio Cora Coralina, entre 1410 candidatas, embora se queixe que “o nível foi tão ruim que não foi mérito nenhum tirar o 2º lugar” em carta escrita, anos depois, em 1988, para Antônio Carlos Resende (PHF COR 0286 SIST 54010). De mulheres, diz que gosta de Cecília Meirelles (1901-1964), Marly de Oliveira (1935-2007) e Hilda Hilst (1930-2004).

Nesse ano, também começam a circular opiniões sobre A história de Délia. Hecker, como de praxe, manifesta a sua. Em missiva, datada de 05/11/1986, diz que “não parece possuir a bossa da narração, o dom de criar um personagem, uma cena, é tudo direto ou pessoal, sem transformação narrativa. És Vera toda Mogilka, és nas cartas e provavelmente na autobiografia.” Ela considera Hecker um crítico capaz, mas não um bom escritor. Estão quites. 

Rusgas entre amigos à parte, o livro tem méritos. A primeira parte é composta por missivas entre irmãs, algo em que a autora, que escrevia páginas e mais páginas para conhecidos, era expert. O suspense em torno da stalker Délia é um dos pontos altos da segunda parte, enriquecida por uma reviravolta. A psicologia das personagens deixa o leitor em uma espécie de fog. É possível entrever, mas nunca se verá algo transparente. É visceral em outros trechos, sem passar verniz para a animalidade no humano – momentos em que se arrisca à crítica no campo social. Apesar da miséria, não se compadece da personagem. A extensão dessa segunda parte pode ser criticada, estica demasiado a corda. Autobiográfico como quer Hecker? Sim.

A orelha é preenchida por Ênio Silveira, que destaca a autora como sendo alguém que “desde a juventude [fora] uma contestadora consciente e consequente das múltiplas mentiras e falsidades institucionalizadas que tornam tão precárias, no plano ético e social, as inter-relações pessoais neste nosso Brasil em crise […]. Vera Margot Mogilka vem defendendo com unhas e dentes, ao custo de pesados sacrifícios, o direito de manter sua integridade moral e de conservar auto-respeito. Numa sociedade machista e preconceituosa como é a nossa, cujos padrões de aferimento predominantes ainda são aqueles impostos pela ética burguesa, suas atitudes e comportamentos no que toca aos tabus que envolvem sexo, maternidade, família, religião e hegemonia masculina (em quase todas as áreas) lhe têm custado não poucos nem pequenos problemas. A tudo e a todos, inclusive os abusos e violências que, como funcionária federal, enfrentou em duas décadas de ditadura recém-varrida do mapa, tem enfrentado com firmeza e coragem.”

Será a palavra do editor uma prova do envolvimento com os ditos subversivos da época da Ditadura? Um termo que se repete em A história de Délia é “burguesia” – evidentemente muito presente no discurso de leitores de esquerda. Mas sua escrita não tem esse viés, permanecendo no campo das relações humanas e do quanto podem ser frustradas. Em 2007, Vera diz que não se aproximara da política, embora tenha sido convidada, certa vez, a integrar um partido, o que teria partido de José Serra, da época em que ele ainda tem cabelo – ressalta. Os verbetes “burguesia”, “burguês” e derivados podem ser decorrentes da retórica existencialista contrária à moral conservadora no campo das liberdades individuais, especialmente aquela que restringe as mulheres no seu caso. De tudo, volta novamente a ruminação: terá sido o processo por envolvimento com a resistência à ditadura forjado? Por quê?



Lamentos no escuro vence o prêmio Guimarães Rosa, da Secretaria de Cultura de Minas Gerais, na categoria romance, em 1987. Em carta para Antônio Carlos Resende, Vera assegura contar uma história real, “a trajetória amorosa na vida de uma mulher, Ariana (eu), e meu affaire sentimental com o Érico (foi recusado pela LP&M)” (PHF COR 0286 SIST 54010, p. 3).

Em 28/09/1988, escreve a Hecker contando de sua depressão por estar distante dos filhos. Suas distrações são livros, discos e fitas. É leitora voraz e crítica afiada, o que deixa registrado nas correspondências. Celso Gutfreind, com quem Vera troca cartas no final dos anos 1980, em conversa por telefone lembra como funciona a revisão pelos pares nessa época. Quando ele lança, aos 22 anos, A gema e o amarelo (Tchê, 1988), Hecker enaltece, sem deixar de malhar no que vê necessidade. Além disso, ele envia edições para diversos colegas, inclusive Vera, que, em sua costumeira e interessante franqueza, reprova o trabalho, apesar de se dizer encantada pelo porte alto e pela beleza do autor. 

Ferina, sarcástica, mordaz. Bate e acaricia quase ao mesmo tempo. Isso em acessos febris de escrita, especialmente a epistolar. Transborda uma naturalidade que deixa as pessoas inseguras, que leva muitos homens à insegurança. 

Entre as leituras, Vera gosta de ficção, mas também de Susan Sontag (1933-2004), sobre quem afiança: “Não só é muitíssimo inteligente como escreve bem, a danada. Que clareza mental, que lucidez, que expressão perfeita” (PHF COR 0292 SIS 54018). De música, gosta das cantadas por Elis Regina (1945-1982).

Nas missivas, ainda elenca parte da produção que não vem à luz. Lamentos no escuro (há muitos anos, no prelo, em Belo Horizonte), A vida imaginária (que teria recebido o prêmio da Academia de Letras da Bahia em 1983) e Poesias sobre o vinho. Queixa-se de que Ênio Silveira, editor da Philobiblion, não cumpre com o prometido, uma segunda edição de A vida na pele (o compromisso aparece na orelha da edição de A história de Délia). Também conta sobre uma possível bolsa para escrever um romance histórico, que intitula O vermelho da vida.

Em 04/12/1988, torna a escrever para Hecker. Reclama dos fascículos sobre escritores que vinham sendo publicados pelo IEL, por não ser convidada, uma vez que, apesar de não residir no Rio Grande do Sul, “com 12 prêmios, sempre citando Pelotas e Porto Alegre e o Rio Grande” (PHF COR 0320, SIST 54077, p. 2), acredita que não merece ser ignorada. Walmir Ayala também não reside no estado e é pauta de uma edição, ela recorda. Vera reitera a relevância de seu livro Lamentos no escuro, que teria recebido o Prêmio INC de Romance – Região Sul.

Depois disso, há um longo período de ostracismo, no qual Vera parece continuar a escrever sem difundir. Em contato telefônico, em 2007, quando reside na cidade de Lauro de Freitas, na Bahia, arrola mais de vinte livros engavetados, entre os quais: Anatomia de um amor (vagamente inspirado no caso de Doca Street e Ângela Diniz), Dançando com fogo, O amor (im)perfeito, Touro ao luar (realismo fantástico), A noite infiel, Morte primavera, Lágrimas na chuva, Lamentos no escuro e No olhar, o tédio. Não se sabe o fim desses textos, talvez o lixo.

A abordagem que faz da capital gaúcha, como um todo, em 1988, é a de uma “provinciana e limitada Porto Alegre” (PHF COR 0310 SIST 54077), cuja estrutura quisera, na juventude, balançar – ao lado dos colegas da Crucial. Na entrevista, recorda-se de frequentar, com gosto, o bar Farolito, na rua da Praia, quase na esquina com a João Manuel, e o bar Azul, na Osvaldo Aranha.

Lembra-se das relações com escritores como Aníbal Machado, Oswald de Andrade, Érico Veríssimo, Lúcio Cardoso e Josué Guimarães. As cartas revelam que manteve contatos, também, com Walmir Ayala, Francisco Bittencourt Filho, Mário Faustino (1930-1962), Manuel Bandeira (1886-1968), entre outros já citados.

No confuso processo que enfrenta em 1971 e por alguns anos, ela define sua verve literária: “[… os] temas são difíceis, via de regra, herméticos até e sempre relatam um fato verídico até de uma maneira um tanto jornalística e não literária, influências evidentes de sua profissão, mas que lhe têm dado certa contenção na expressão geralmente caudalosa. A notícia real pode ser interligada por elementos de ficção, mas é sempre real, calcada na vida cotidiana, em fatos extraídos do noticiário, de imprensa, em algo que um amigo conta, em uma estória que ouve narrar, etc.” (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212). 

Inspirações provêm da biografia e do jornalismo, mas o resultado se distancia do trivial, revelando camadas de sofisticação, o que tem um risco muito alto de não obter êxito em vendas. Não é comercial. Apesar de Hecker afirmar que sua poesia era prosa poética, Vera refuta a crítica e confirma que se satisfaz mais como poetisa do que com a prosa: “[..] me realizo muito mais e atinjo meu ponto mais alto de expressão e criação artística” (PHF COR 0232 SIST 53847).

Ao mesmo tempo, a literatura não deixa de incomodar. Especialmente ao perceber o “escritor, sempre do lado de fora, sempre à deriva da verdadeira vida. Por isso não gosto muito de escrever apesar de minha queda para a coisa. Ninguém nos toca, ninguém nos envolve […]. É tudo muito cerebral. Não é meu gênero. Sou muito dionisíaca”, diz a Hecker em 28/09/1988 (PHF, COR 0318 SIST 54086).

O existencialismo é atraente quando as mulheres ainda são ensinadas a ser boas mães e subservientes no lar. Mogilka não é convencional, não é aprisionada pelos valores sufocantes – mormente sobre família, sexo, religião. Leva uma vida perturbadora. Tem incontáveis (des)encontros amorosos. Entra em conflito com os pais e com os filhos – a relação com eles é muito difícil, dolorosa. Dá um capítulo enorme à parte. Quem diz que o existencialista não encontra a danação?

Sim, o conjunto literário merece um fascículo do IEL. Mas vários dos perfis biobibliográficos são comportados demais, a exemplo da completa ausência da homossexualidade de Walmir Ayala – parte central de sua obra. E Vera não era uma moça bem comportada.

Conforme o amigo Luiz Goulart, autor de A última noite de caça (Edição do autor, 2015), que convive com ela desde 1982, a certa altura ela passa a ser “acumuladora”. A filha Sílvia nomeia como “síndrome de Diógenes”. Ou seja, ela passa a juntar as coisas dentro de casa, muita coisa. É um dos motivos pelos quais muda de residência constantemente e, também, a razão pela qual vai perdendo muito material. Talvez explique o sumiço dos originais. 

Em 23/03/2012, em Lauro de Freitas, Vera vem à óbito depois de mais de oito décadas de vida intensa.

E aí? Foi bom? Vera não é a única ilustre desconhecida dentre as escritoras do RS contemporâneo. Se curtiram, vem mais. 

OBS: A correspondência, aqui reproduzida, foi encontrada no acervo de Paulo Hecker Filho, no arquivo da Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural, na PUC/RS. Os acervos de Carlos Drummond de Andrade e de Lúcio Cardoso, na Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, guardam missivas de Vera. O processo e outros documentos que a acusam de subversiva estão acessíveis, pela Lei de Transparência, no site do SIAN – Arquivo Nacional. Várias informações foram confrontadas com breves conversas, por e-mail ou Whatsapp, com os filhos Marcelo, Sérgio e Sílvia. Celso Gutfreind contribuiu com uma conversa por telefone. O amigo Luiz Goulart ajudou com informações sobre os últimos anos de vida. Ainda, boa parte das informações foram repetidas por Vera em entrevista para o autor, por telefone, no ano de 2007. A maioria dos jornais e revistas foi acessada na hemeroteca da Biblioteca Nacional.


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. Dentre suas publicações estão Babá – Esse depravado negro que amou O Crush de Álvares de Azevedo (Livro do Ano no Prêmio Açorianos 2021), ambos pela editora Libretos.

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