Ensaio

Vera Margot Mogilka: A escrita na pele

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Vera Margot Mogilka: A escrita na pele

Ando dizendo que gosto de escritores malditos ou esquecidos da literatura gaúcha – sobremaneira desta. Apesar de não ser minha única leitura, é das prediletas. Não faz muito tempo, li Praça da matriz (1964), publicado pela pelotense Heloísa Assumpção Nascimento, pela Livraria do Globo. Fiquei suficientemente impactado, a ponto de perguntar como eu nunca ouvira falar sobre os livros, são vários, nem de ela ter sido a primeira professora em uma Faculdade de Direito no Brasil – li em algum lugar na internet, não confirmei. 

Que razões estão por detrás do esquecimento de muitos nomes – femininos, negros, gays? Vários, evidentemente, resumidos à explicação sem graça de que são incontáveis. Não dá para recordar todos. 

Em um passado não muito distante, minha atenção se voltava à pesquisa de escritores e obras, no mundo literário sul-riograndense, que tivessem relação com a homossexualidade. Em uma conversa com o antropólogo Luiz Mott, ele me assoprou o nome de Vera Margot Mogilka (1931-2012), outra pelotense, que migrou para Porto Alegre muito jovem e que causou alvoroço pela cidade, publicando na revista Crucial, isso pelos anos 1950.

Baita dica. Corri atrás. Comprei as revistas em um sebo da capital – provavelmente naquela leva oriunda da venda da biblioteca de Paulo Hecker Filho logo depois da sua morte. Comecei a vasculhar arquivos – o eterno rato. De alguma forma, não lembro qual, cheguei nela por volta de 2007. Ela estava residindo em Lauro de Freitas, na Bahia. Já estava em uma cadeira de rodas. Conversamos por telefone –  registrei tudo. Depois de ela falecer, reli – algo que faço raramente – os dois romances que ela lançou: A vida na pele (1964) e A história de Délia (1985). 

E disso foi ampliando meu interesse. Infelizmente, só depois que ela já tinha vindo a óbito. Quando não mais estava disponível para responder sobre um enredado processo na época da Ditadura, sobre a forma idiossincrática como levou a própria vida (filosofia ou contingências?), sobre a opção temática em seus textos (vanguardista da porra ou oportunista?), sobre não mais ter lançado algum dos tantos inéditos que dizia ter em mãos. 

Conversei com alguns filhos e exauri as fontes ao meu alcance para dar contornos a uma escritora do Rio Grande do Sul, hoje, praticamente desconhecida. É relativamente lembrada, nos bastidores, tida como ousada e maluca – adjetivos simplórios para a complexidade nela. De qualquer forma, atraente, curiosa, ácida e de boa verve literária. Praticamente uma lenda para os que a têm na memória. 

A literatura é peculiar e tem que ser lida dentro do contexto – eu gosto muito. O conjunto é intrigante e, se não ganhou um fascículo do Instituto Estadual do Livro (IEL), que fez uma ampla coleção com o nome de escritores gaúchos, como queria, não menos relevante – recebe, agora, esse perfil detalhado, fundamentado e um tanto rebuscado – no meu modus operandi – e a atenção dos leitores da Parêntese. Pouca coisa não é. Daí em frente, deixo as análises para especialistas. Bora lá?

Os anos cruciais: 1931 – 1953

Nasce em Pelotas, em 18/04/1931, filha de pais de origem alemã, Vera Margot Mogilka. Em data incerta, migra para Porto Alegre, onde o progenitor conseguira um emprego como contador ou diretor comercial de uma grande empresa localizada na rua da Praia – a Bromberg Comercial SA. O pai é Leo Mogilka, imigrante alemão, e a mãe Edith Jannina Mogilka, imigrante polonesa.

Rebento único, mas não mimado. Recorda que foi “educada de maneira severa, à sombra de dois adultos sombrios, dentro de uma infância cheia de solidão e sem alegria ou sequer um gesto de afeto por parte de seus pais – pessoas excelentes, porém imersas em seu mundo interior” (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212). Não é exceção, portanto, como vítima da repisada dificuldade de demonstrar afeto verificada em (descendentes de) alemães.

Reza a lenda que, na época de Getúlio Vargas, em plena Segunda Guerra, quando muitos alemães são acossados no Sul do país, uma turba tenta incendiar a casa dos Mogilka. E que Léo tem a ideia de enrolar a filha em uma bandeira e de jogá-la para a multidão gritando que estavam prestes a queimar uma brasileira. Como finda a história? Sabe-se somente que sobrevivem e que a casa fica de pé – conforme contam netos do velho Mogilka.


                               Léo Mogilka, Diário de Notícias, 15/12/1967, 1° Caderno, p. 12.

Talvez por se sentir isolada, começa a escrever a partir dos doze anos. Sofre um grave atropelamento aos dezessete. Em 1947, parece ainda estar em Pelotas, pois tem uma carta respondida pela revista A Scena Muda, que dá esse como seu endereço (02/09/1947, RJ, p. 32). Em Porto Alegre, estuda no famoso Julinho, o Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Pouco depois dos vinte, em 29/04/1951, é elencada como colaboradora da revista Fronteira, em sua quarta edição em Porto Alegre (A Manhã, Letras e Artes, RJ, p. 2). A publicação é capitaneada por Paulo Hecker Filho (1926-2005) e por João Francisco Ferreira. Números são lançados entre 1950 a 1951.

Ainda em 1951, em dezembro, sai a primeira edição da revista Crucial, tendo como diretores Lineu Dias (1927-2002), José Paulo Bisol (1928-2021) e, como cabeça, Paulo Hecker Filho. O pontapé inicial é dado com coragem. Temáticas sobre o suicídio, no poema O grito, e a homossexualidade, foram mote. Hecker já havia lançado a polêmica novela Internato, que tinha como central a homossexualidade masculina – querendo chocar os gaúchos provincianos, segundo Vera. 

Em Lúcio, um miniconto, quem sabe com pretensões semelhantes, ela retrata um rapaz homossexual sedento de amor, tanto que “pretendia conquistar à força o amor de um sujeito, somente para depois, na hora, virar aquelas omoplatas às súplicas do infeliz e dizer-lhe impiedosamente: Não!” Intitular textos com nomes próprios seria uma constante. 

Ainda no lançamento, revela seu encanto pela atriz norte-americana Patrícia Neal (1926-2010) em Declaração de amor à Patrícia Neal, por causa da primeira vez que te vi, figura idealizada, enquanto ela, a autora, era “apenas Vera e isto já dá um trabalhão desgraçado para conquistar esses homens tão errantes de Porto Alegre e que no entanto desmaiam quando me apareces […]”.

Algum tempo depois, relembrando o começo, no livro de crítica literária A alguma verdade (1952), Hecker exalta Mogilka. O poema O grito estaria à altura, “talvez acima, tal a extremidade do acento trágico”, dos poemas de Bisol. No entanto, dizendo conhecer outros versos da safra, afirma que “ainda lhe falta experiência vital e cultural para a poesia, ao passo que na prosa atualmente já adquiriu expressão literária”. Hecker informa, ainda, a redação de uma novela autobiográfica. Intitulada Vera, aposta que se tornaria um livro importante. Não existe notícia posterior sobre essa proposta.

Trecho de “O grito”. Crucial 01

Mogilka recorda, em 2007, que, certa feita, pessoas revoltadas chegaram em seu pai perguntando se a moça que publicava “aquelas coisas” era sua filha. Ele teria negado. Conforme Vera, “aos 15 anos [ela] demonstrara desejo firme de seguir uma carreira que o pai não aprovara, ou seja, o jornalismo e a literatura e a escola superior”. Aos 21 anos, os pais a teriam expulsado de casa (BR_DFANBSB_N8_0_PRO_CSS_1783, p. 1-212). Ela acaba cursando algum tempo de História e de Filosofia, mas não conclui o almejado ensino superior.

Certamente há, naquela Porto Alegre dos bondes, razões para alvoroço. Em fevereiro de 1952, circula a segunda edição da Crucial. Muito mais propensa à refutação dos conservadores. Mogilka contribui com o conto Duas amigas. A narrativa dá conta do enlevo amoroso de Carmen, “que vivia em função de Heloísa”, que “amava Heloísa, dependia dela como um pássaro implume”. Miniconto escancaradamente lésbico. Éverton revela das próprias andanças pelas ruas Jerônimo Coelho e Riachuelo, inserindo-se como personagem – a vertente autobiográfica será um de seus fortes. Para outros, um de seus fracos. Quase tudo de seu cotidiano é motivador de profusão de palavras, não prolixidade vazia, mas enxurrada bem direcionada: “Vou escrever hoje até arrebentar” é a frase de abertura de Éverton.


As revistas Crucial, publicadas entre 1951 e 1954.

Antes dos contos, abrindo a sua seção – em cada volume ela ocupa algumas páginas -, está um dos poemas que melhor definem a vida errante que a escritora teria no futuro: Libertação. “De conhecer e sentir o mundo e suas proibidas coisas […] Continuar! Violar e ser violado! Sofrer – mas provar, provar!” Mogilka, assim na literatura como na vida, é espírito desapegado da moral vigente, toda desejo de experimentar da vida – com urgência e sem os medos que, talvez, a tivessem poupado de muito sofrimento, e aos seus. Quase certo que esse pensar flui da vertente existencialista difundida por Jean Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986). Em uma interpretação superficial, essa corrente propagava sumamente o amor livre – algo que se amalgama à estrutura dos textos compartilhados por Vera. Com os demais colaboradores da revista, ela se apega a uma leitura mais individual, sobre os costumes – em vez do escopo social possível para a teoria filosófica. O existencialismo é odiado e amado. Matérias irônicas aparecem na Revista do Globo, vinculando a equipe da Crucial aos sartreanos. 

O jornalista Justino Martins (1917-1983), nascido em Cruz Alta, vive mais na Europa do que cá. Correspondente da Revista do Globo, em 20/12/1951, faz um perfil da mulher existencialista: “Loira como um canário e desleixada nos seus encantos […]. Encara a vida como uma obrigação fatalista, deixando que os acontecimentos a envolvam, sem reagir. Em amor, vai aos extremos, por ato gratuito, os sentimentos são apenas circunstâncias e, como estas, devem passar obrigatoriamente. Se alguém a convidar para uma volta no Amazonas, ela aceitará a ideia sem barulho” (Porto Alegre, p. 24).

Intempestiva, de ações abruptas, Vera é. Mas parece que a imagem, conforme Martins, não assenta totalmente, porque, para a mesma revista, anos depois, Dionísio Toledo a descreve como alguém para quem “o quotidiano é o fundamental na vida. Seus contos e poemas são um arrebatamento diante do instante. E, levando muito a sério o instante, ela adora andar bem vestida, bem pintada, bem mulher” (Revista do Globo, 12/06/1954, p. 72). Negligente? Diz-se que é uma jovem belíssima.

 Vera têm repercussão – propõe um ar moderno para uma cidade vista como estagnada no tempo. A edição de 15/03/1952 do Correio da Manhã (RJ, p.2) destaca a revista Crucial: “Rompendo o silêncio dos novíssimos, quatro jovens e uma moça perturbam Porto Alegre.  Chamam-se Paulo Hecker Filho, Lineu Dias, José Paulo Bisol e Vera Mogilka. O nome da revista é ‘Crucial’.” 

Em data incerta, no ano de 1952, ela conhece o escritor Josué Guimarães (1921-1986) em algum setor de imprensa. Ele a ajudaria anos depois. Em contrapartida, dessa amizade também decorram dores de cabeça. Talvez em função da repercussão como escritora ousada, talvez por desejo de sair da capital ou, antes, de perto da família opressora, logo está pelo Sudeste – em apuros por falta de dinheiro em vários momentos. O jornal Tribuna da Imprensa, de 9 e 10 de agosto de 1952, já acusa a presença no Rio de Janeiro – provavelmente, dessa feita, um bate-e-volta.

Nesse ano, em setembro, circula a terceira Crucial. Em A alma de um homem, Vera acompanha enamorados afobados andando na orla do Guaíba, vislumbrando vagamente as luzes na Usina do Gasômetro, procurando um espaço, na noite, para consumarem os desejos. Em Virgem, desvela os pensamentos conflitantes de uma recém-deflorada. Potencialmente erótica, sutiliza a crueza com o detalhamento de contexto e reflexões. Sem pesar.

No primeiro mês de 1953, O caminho final integra o quarto trabalho dos “cruciais”, um conto extenso em que agudiza a psicologia da personagem. A jovem Gilka – será outra autorreferência: Mo-Gilka? – sente atração por rapazes e, também, por Miriam, por quem tem um sentimento “de posse, de ligação conjugal”, que esta não entende. Dúvidas íntimas a levam à beira do precipício, à escolha entre a vida e a morte – e às contingências atreladas. 

Um indício de autobiografia está na descrição da relação da moça com a família, quando, numa noite, retorna tarde: “A mãe dormia, o pai ressonava. Amanhã iriam haver as brigas acerca da hora como sempre, talvez outra expulsão, a solidão novamente de uma vida lutada. Agarrava-se aos pais, apesar de detestá-los e não ser possível a vida em comum […].”  Vera, a vida toda, se considera a “ovelha negra”.

Logo, seu nome se torna mais conhecido entre os intelectuais. Em 15/03/1953, analisando a obra de Hecker, Cyro Pimentel (1926-2008) cita a Crucial, destacando entre os colaboradores dessa “o nome de Vera Mogilka, autora de contos e poemas que revelam o seu talento brilhante, com uma personalidade agressiva e tempestuosa” (A Manhã, Letras e Artes, RJ, p. 2).

Ao menos uma vez, ela aventura expandir as habilidades. Apresenta-se em peça teatral ao lado de Walmor Chagas (1930-2013), de quem era prima. Sobre a experiência comentou, anos depois, em carta a Hecker: Walmor “tinha que […] soprar as falas por eu ficava estarrecida, quando no palco, justamente por causa da zona escura (E agora? E agora? O que eu faço? O que eu digo?)” (PHF COR 0319, SIST 54086, p. 3).

O último número da Crucial vem a público em junho de 1954. Dessa feita, uma peça teatral. A menina de sangue teria sido baseada em fatos verídicos ocorridos em Porto Alegre, em 22/03/1952. Uma noite na vida de um núcleo de amigos formado por artistas diversos: cantores, poetas, instrumentistas e fotógrafos. A ação se concentra em torno dos personagens Otávio, um escritor, e Isolda Manina, misto de poetisa e atriz, que dramatiza sua própria vida e a de Otávio numa forma para enlaçá-lo amorosamente pela arte. Por fim, um texto original em que animais de estimação, tartarugas e passarinhos (Júlio César, Ofélia II e Julieta) entram em conflito enquanto Vera, sua dona, está adormecida. 

A Crucial tem poucos patrocinadores. Não tem fôlego material. Mas espraia consideravelmente como projeto de um dos grupos dos “novos” de Porto Alegre. “Os novos não param”, diz Dionísio Toledo para a Revista do Globo de 12/06/1954 (p.18). Outras revistas têm voos altos, mas curtos, naquele período: Quixote, Marco Zero e Clareira. Boa parte composta por jovens poetas e sartreanos, que “se jatam de exclamar desaforos contra as gerações que os antecederam […]”, prossegue Toledo.

Quem são as gaúchas que escrevem por essa época? Lila Ripoll (1905-1967), Lara de Lemos (1923-2010), conhecida ou amiga de Mogilka. As mais lembradas. À Mogilka é devida uma revisitação. Da escrita, resta pouquíssima dúvida sobre talento e diferença. Para a idade, as incursões no mundo literário são intrépidas e encorpadas. Repeti-la jovem, talvez, pareça uma escusa prévia para deslizes, mas não é. Os textos merecem uma coletânea, talvez conjunto de contos e poesia. 

Tá de bom tamanho uma jovem audaciosa, “namorando” Beauvoir, cavando espaço em uma revista gerenciada por homens, escrevendo sobre temas que arrepiavam os pelinhos nos braços da gente daquela Porto Alegre? Tem mais. Fica para a próxima semana.


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. Dentre suas publicações estão Babá – Esse depravado negro que amouO Crush de Álvares de Azevedo (Livro do Ano no Prêmio Açorianos 2021), ambos pela editora Libretos.

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