Ensaios Fotográficos

Colônia

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Colônia

Quando crianças, aos sábados à tarde nas férias de verão, o programa era sair com meu pai pelos caminhos das colônias. Na maioria das vezes nós íamos de Fusca, mas quando as amigas de minha irmã estavam junto – ela andava sempre em bando –, meu pai pegava uma Kombi emprestada na concessionária Volkswagen, onde era gerente, para poder caber todo mundo.

Depois da sesta, que era sagrada, íamos lavar o carro no “riozinho” – assim mesmo, sem nome –, que ficava na estrada velha que ia para Nova Bassano, ao lado de uma casa suspeita, onde mulheres deitadas na grama tomavam banho de sol quase nuas. 

– Pai, buzina pra elas!! 

Na verdade, o tal riozinho não passava de um despraiado – nem sei se esse termo existe, mas nós o chamávamos assim. Os córregos entre as pedras lisas nos faziam resvalar. A água era rasa e não havia os tão temidos “poços”. Minha mãe não precisava ficar berrando desesperada: “não vão no fundo!” – como quando íamos tomar banho no Rio da Prata, esse sim um rio digno do nome. Não existia “fundo” em nosso querido riozinho. 

Lavar o carro era só um pretexto para nos refrescarmos naquelas tardes ensolaradas e dar uma folga pra minha mãe descansar um pouco. Era quando meu pai arregaçava as mangas da camisa branca e as calças e tirava a gravata. Ele estava sempre de gravata, mesmo nas ocasiões mais informais. Meu pai era um árabe bonito e elegante e os colonos, ou os gringos como nós costumávamos chamá-los, tinham o maior respeito e admiração por ele.

Saíamos a passear pela colônia em busca de frutas, que nessa época do ano eram as uvas. Fazia parte do programa comprar ovos frescos, queijo e tomar vinho doce nos escuros e gelados porões dos gringos, clientes de meu pai.  A maioria deles era de compradores de carro ou de “plano”, como eram chamados os consórcios naqueles tempos. 

Alguns deviam dinheiro para a agência de carros e nos recebiam com desconfiança, mas a maioria era de colonos amigos. Até fingíamos não ter ouvido “i nigri”, que alguns deles diziam, achando que não soubéssemos o que significava. Para muitos deles nós, morenos e descendentes de sírios, éramos negros. Turcos. “Árabos”, como dizia a mãe de um querido amigo. Meu vô Yossef era mascate, recém-chegado da Síria quando conheceu Tereza, minha avó, na distante e longínqua Garibaldi, lá pros lados de Porto Alegre. A família dela, claro, não gostou dessa história de casar com um turco mascate e foi rejeitada pelo resto da vida. Meu pai e meus tios não aprenderam a falar árabe, mas em compensação o dialeto vêneto materno estava na ponta da língua e era com esse dialeto que ele se comunicava com os italianos clientes naquelas nossas tardes pela colônia. 

Eu amava essa parte do passeio, mais do que o banho de rio. Íamos passando pelas casas da colônia e meu pai  ia dizendo: aqui mora o seu Genaro, um gringo rico que comprou uma Kombi no ano passado; naquela casa amarela ali em cima do morro mora o seu Waldemar que comprou um fusca azul de segunda, gringo “mão de vaca”! E assim nós íamos pelas estradinhas da colônia, meu pai descrevendo os moradores e clientes. Eu com os olhos já de futuro fotógrafo não perdia detalhe nenhum da paisagem: uma curva em declive banhada ao sol do fim da tarde; o portãozinho vermelho que dava para uma horta; um galo cantando trepado num poço; as cerquinhas de madeira; a cortina rendada em uma janela semi-aberta; as roupas nos varais, os colonos.

Tardes que ficaram tatuadas na minha retina e hoje quando saio com minha câmera a campo pelo interior certamente são essas paisagens, essas casas, essas pessoas que procuro encontrar. Às vezes, encontro alguém que me diz: “tenho ainda um fusca azul que comprei nos anos 70 de teu pai e não vendo por nada, uma relíquia!” As paisagens e casarões de madeira que visitávamos nos nossos passeios já não existem mais… Esse ensaio tenta resgatar o que sobrou daquilo tudo. Além da saudade.


Marco Nedeff é formado em Publicidade e Propaganda pela PUCRS, fotografa profissionalmente desde os anos 80 nas mais diversas áreas da fotografia, artística, ensaios, documental e, eventualmente, eventos. Tem três livros com fotos suas em parceria com a Editora Libretos: Rua da Praia- Um passeio no tempo, Mercado Público – Palácio do Povo e Águas do Guaiba, entre outros. Continua fotografando incansavelmente.

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