Entrevista

André Lemos – As cores e as sombras das cidades inteligentes

Change Size Text
André Lemos – As cores e as sombras das cidades inteligentes

Entre videoconsultas e relógios inteligentes de Os Jetsons, e olhos que tudo veem de 1984, as diferentes visões de futuro, quando são descritas, falam mais sobre o presente que do porvir. A superpotência autoritária baseada em vigilância, como descreveu George Orwell, parecia um problema que ficaria na década de 1940, enquanto a simpática Rosie era mágica como os primeiros eletrodomésticos dos anos 1950 e 1960. Animador ou aterrorizante, estamos numa época em que câmeras medem a temperatura corporal dos transeuntes na Estação Mercado e já é possível conversar com uma geladeira, então, é seguro dizer que algum futuro já chegou. E ele veio trazendo tudo: o robô aspirador, os carros que dirigem sozinhos e, claro, a vigilância e o roubo de dados.

No início da década de 1990, quando a maioria sequer havia ouvido o frustrante e inesquecível ruído da internet discada, André Lemos já estudava cibercultura em seu doutorado na Université Paris Descartes, na França. Na década seguinte, para saber do trânsito era preciso ligar no rádio e torcer para o locutor falar da sua rota, mas o hoje professor da Universidade Federal da Bahia participava em Dublin, Irlanda, de pesquisas a respeito das cibercidades, que viriam a se chamar mais tarde cidades inteligentes. Em 2021, imaginar o futuro do espaço urbano e da nossa relação com a cultura digital passa por observar as pesquisas passadas e presentes de André Lemos.

Para quem não é iniciado no tema, a dica é começar pelas reflexões a respeito da mútua influência entre cultura digital e pandemia presentes no livro A Tecnologia é um Vírus: Pandemia e Cultura Digital (Sulina, 2021. 150pg). A obra é um apanhado de textos publicados por Lemos em veículos de imprensa, redes sociais e no dossiê “In Vitro” no blog do Lab404 (Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço/Poscom-UFBA). Mesmo em suas publicações mais acadêmicas nesses mais de 30 anos de contribuições à área, o professor faz jus à profissão e proporciona bons mergulhos na evolução da cultura digital e na formação de fenômenos sociais como as cidades inteligentes de modo compreensível e lógico.

Um exemplo de boa didática é esta entrevista. Concedida a la Jetsons por videochamada, nela, André Lemos fala sobre dataficação, plataformização e pinta as cores vibrantes e sombrias de um amanhã que já está presente.

Parêntese – Como o senhor vê, em 2021 e especialmente no Brasil, a questão das cibercidades?

André Lemos – O que a gente chamava de cidade digital era num momento em que a internet emergia e que precisaríamos dotar as cidades de infraestrutura básica mínima de acesso à internet, de transparência da informação pública. Havia um processo de colocar as instituições do espaço urbano na internet, disponibilizar acesso às pessoas, não só à informação, mas também à própria internet. Esses problemas continuam. Nós vivemos em um país de uma grande desigualdade e essa pandemia tem revelado muito isso. 

O conceito evoluiu acompanhando as dinâmicas dessas tecnologias por que passamos, nesses 20 anos, para uma nova configuração da cultura digital, que é a sociedade de plataformas, com essas diversas instituições que mesclam software e hardware, na qual os aplicativos são a face mais visível, a pele dessas estruturas, e também baseado em um grande uso de dados e de inteligência artificial, de algoritmos de inteligência artificial. Essas novas tecnologias trouxeram uma mudança na ação para o urbanismo, para a política pública, para as cidades no sentido de dotar esses espaços de objetos inteligentes, de sensores, de tratamento inteligente de dados que fizessem com que a dinâmica, o fluxo das pessoas e das coisas no espaço urbano se tornassem mais responsivo, que a ação política se tornasse mais responsiva em relação a esses dados. Se não tínhamos antes essa possibilidade de monitorar deslocamento de pessoas, de informação, etc., hoje nós temos isso. 

Nós podemos colocar sensores em vários lugares para medir, em tempo real, como é que a cidade reage a, por exemplo, engarrafamentos, ruídos, limpeza urbana, e essa própria dinâmica vai alterar a forma como as pessoas vão lidar com o espaço urbano. Hoje temos essa lente de ação sobre o espaço urbano que é o telefone celular: você vai saber o percurso que você vai fazer de carro, o ônibus que você vai pegar, usar um aplicativo para chamar um carro para se deslocar, mas, também, para os poderes públicos que vão instituir um urbanismo baseados em dados e inteligência artificial. 

P – E qual a diferença, ou relação, entre os termos “cibercidade”, “cidade digital” e “cidade inteligente”?

AL – Essa ideia de cibercidade continua. A ideia de “ciber” caiu um pouco em desuso, mas acho que o princípio continua, e talvez até mais forte, porque o princípio da cibernética é controle e pilotagem. O termo “ciber” vem daí. E a gente tá hoje com uma cidade ainda mais controlada e pilotada pelos dados, pelos algoritmos e, logo, por essas tecnologias. Então, a evolução dessa discussão sobre cibercidades, ou de cidades digitais, vai se dar hoje no que se chama de cidades inteligentes. Quando a gente fala de cidade digital, a gente falava o digital acoplado diretamente à cidade, então a gente entendia como tecnologia. Mas, quando a gente fala “inteligente”, já remete a uma outra coisa: “Peraí, será que isso é inteligente mesmo?”, “De que inteligência nós estamos falando?”. O “smart” aqui no “Smart Cities” são tecnologias sensíveis digitais. Isso não significa necessariamente que estamos caminhando para uma cidade mais inteligente. Isso seria uma discussão importante a ser feita. Toda cidade é inteligente na sua forma de existir, mas uma cidade inteligente não necessariamente precisa usar esses artefatos para desenvolver a sua inteligência. Talvez, seja mais inteligente uma cidade em que as pessoas consigam se deslocar de maneira mais autônoma e que gere menos pegadas de carbono do que com carros que dirigem sozinhos, por exemplo. Por um lado, o termo vincula a essas tecnologias que são inteligentes porque captam dados em tempo real e nos permitem agir no fluxo do deslocamento de pessoas e dados. Por outro lado, nos permite questionar de que cidade inteligente nós estamos falando, o que é uma cidade inteligente, qual o futuro, o que queremos e outras questões.

P – Em seus trabalhos, o senhor fala muito das cidades inteligentes terem a ver com uma questão de adaptabilidade em relação ao uso que se faz da própria cidade. Em que medida o senhor avalia que os governos – nas esferas municipal, estadual e federal – têm realmente feito uso desses dados para melhorar as cidades e deixá-las mais adaptáveis? 

AL – Não tem uma receita pronta para ser utilizada em todos os lugares. Eu passei um ano na Irlanda e fui trabalhar com o Rob Kitchin (professor e pesquisador na Maynooth University), que é um dos maiores especialistas mundiais nessa discussão. Tinha uma experiência muito interessante, em Dublin, que era o uso tripartite de empresas públicas, das prefeituras (há mais de uma responsável por Dublin) e das universidades para produzir experiências inteligentes na cidade. Nós tínhamos lixeiras que sabem quando estão cheias e indicam quando devem ser coletadas para ter uma maior racionalização do transporte. Você tem sensores em prédios públicos que medem o grau de ruído e de poluição da cidade, bicicletas públicas, aplicativos para todo o deslocamento de ônibus, smart cards para pegar o trem e os ônibus, e uma ação, também, de vigilância e de controle. Essas são tecnologias de vigilância no sentido mais neutro da palavra: eu estou vigiando como está o trânsito pra poder intervir, quantas pessoas tem no ponto de ônibus para poder colocar mais ônibus naquele ponto, o ruído para ver se consigo diminuir. Por isso que a Shoshana Zuboff (professora aposentada da Harvard Business School, autora de A Era do Capitalismo de Vigilância – Editora Intrínseca, 2021. 800pg) vai chamar esse capitalismo de dados como um capitalismo de vigilância, que é colher dados para produzir ações. 

P – E como isso vem ocorrendo no Brasil?

[Continua...]

O acesso a esse conteúdo é exclusivo aos assinantes premium do Matinal. É nossa retribuição aos que nos ajudam a colocar em prática nossa missão: fazer jornalismo e contar as histórias de Porto Alegre e do RS.

 

 
 
 

 

 

 

 
 
 

 

 
conteúdo exclusivo
Revista
Parêntese


A revista digital Parêntese, produzida pela equipe do Matinal e por colaboradores, traz jornalismo e boas histórias em formato de fotos, ensaios, crônicas, entrevistas.

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.