Entrevista

Antônio Carlos Côrtes: “A favor da negritude, sua cultura e seus valores”

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Antônio Carlos Côrtes: “A favor da negritude, sua cultura e seus valores” Ilustração Sílvia do Canto

Todos carregam sua história consigo – nos traumas que ficam gravados na alma, nas alegrias que acalentam o coração, num jeito de caminhar, num gosto à mesa, na preferência em matéria de futebol. São no geral marcas implícitas, guardadas no íntimo de cada um. 

Mas no Brasil os negros carregam tudo isso na pele, visível a todos e a qualquer um. Ser negro, aqui, implica ser descendente de um escravizado: em algum ponto do passado, há uma inegável humilhação, um horror, um suplício – mas também uma dignidade, ainda que mantida a muito custo, o desejo de liberdade e de fartura, que nasce da privação. 

Nosso entrevistado desta edição pode se orgulhar de haver trilhado um caminho digno. Antônio Carlos Côrtes é um testemunho vivo de um trecho já grande da história brasileira, em seu capítulo porto-alegrense: o trecho que vem da época do racismo naturalizado, que tanta dor infligiu e tanto privilégio garantiu (e que ainda remanesce, entocado e intocado), até o presente, tempo em que finalmente o estado nacional admitiu a necessidade de promover reparos historicamente devidos aos descendentes dos escravizados e em que a necessidade do combate ao racismo virou assunto diário.

Côrtes é figura conhecida em Porto Alegre, e o leitor vai logo perceber que em algum momento já presenciou cenas que em alguma medida dependeram dele e de seu grupo. Figura ligada ao movimento negro e à cultura popular, Côrtes carrega sua história com alegria e orgulho. Sua história ajuda a entender melhor o passado e viver melhor o presente, para todos nós.


Parêntese – Comecemos pela história pessoal. O senhor é porto-alegrense? Onde e quando nasceu? Em que lugares da cidade transcorreu sua infância? Seus pais e outros parentes eram daqui mesmo? Ou houve deslocamentos importantes no espaço? E seus primeiros estudos: onde foram feitos?

Antônio Carlos Côrtes – Sou porto-alegrense. Nasci na Maternidade Mário Totta, da Santa Casa de Misericórdia, no dia 26.12.1948, às 15 horas. Morava na Colônia Africana – antiga Rua Larga, hoje Santa Cecília. A especulação imobiliária da época empurrou a residência de meus pais, Egydio Ribeiro Côrtes e Isolina dos Santos Côrtes, para a Vila Bom Jesus, no Alto Petrópolis. Depois, os pais compraram casa no Morro Menino Deus (Rua Dona Gabriela,143). Como o pai era funcionário (contínuo) do Departamento da Loteria do Estado do RS, foi convidado a ser também zelador da sede daquele prédio público, e nos mudamos para a Rua dos Andradas, 849. Meu pai é falecido, mas minha mãe Isolina, nascida em Rio Pardo/RS, graças a Deus, está viva. No dia 4.5.2021 celebrou 104 anos. Lúcida e com muita saúde.  Continua rezadeira e benzedeira em Viamão/RS, onde é considerada Oráculo. Já foi homenageada pela Câmara de Vereadores de lá, por obra do vereador negro Armando Azambuja. Cursei inicialmente o primário no Grupo Escolar Vieira da Cunha, na Rua Silveiro, bairro Menino Deus, concluindo o primeiro grau no Colégio Nossa Senhora das Dores, onde fui  bolsista.

P – Em que momento o senhor toma consciência do racismo, da discriminação racial? Houve algum episódio marcante?

ACC – Tomei consciência do racismo ao ver a indignação de meu pai com noticiário policial dos jornais da época: “No crime eram 4 elementos, um negro”. Não comentavam a presença dos três brancos. Desde adolescente, o pai recomendava a mim e aos meus irmãos quando saímos para a rua: “Levem os documentos. Para a polícia, negro é vagabundo e sempre suspeito.”

Três episódios marcantes. Primeiro: agência de publicidade colocou anúncio em Classificados do Correio do Povo pedindo redatores. Para tanto, preliminarmente os candidatos deveriam enviar Redação de próprio punho. O fiz. Fui chamado junto com outros 6 candidatos. Lá chegando vi que somente eu era negro. Outra redação e recursos de linguagem foram submetidos. Como saímos todos juntos, pelos comentários entre nós, observei que havia me saído melhor que os demais. No outro domingo, saiu novamente o mesmo anúncio, porém pediam que enviassem foto. Segundo: concurso de locutores da Rádio Guaíba. Adroaldo Streck, então gerente, ficou surpreso com a nossa boa classificação, cujo teste avaliava voz, dicção, noções de inglês, francês e conhecimentos gerais. Na avaliação dele, fui classificado entre os melhores, mas que o chamamento não dependia só dele. Indicou que eu aguardasse em casa o chamamento, o qual nunca ocorreu. Terceiro: concurso de apresentador de notícias na TV Difusora. Os técnicos que gravaram o piloto nos informaram que fomos o melhor.  Não fomos chamados. Anos mais tarde, soube que não fora chamado pela desculpa de que meu cabelo Black Power era muito grande. Sequer me perguntaram se eu concordaria em diminuí-lo.

P – Na sua juventude, como era a cidade? Em que espaços, geográficos e simbólicos, o senhor e seus parceiros se movimentavam? Como foi seu tempo de universidade? Como era cursar Direito naquele momento? Que amigos ou parceiros de jornada o senhor teve? Gostaríamos de um depoimento detido sobre seu colega, no Grupo Palmares, o professor e poeta Oliveira Silveira. Que traços notáveis ele apresentava? 

ACC – Em minha juventude, aprendi a amar ainda mais a minha cidade de Porto Alegre. Nos anos de 1960/1970, morar no centro era uma beleza. Tudo acontecia ali. Cinemas de calçada, teatro, espetáculos ao ar livre. Fiquei feliz quando tive minha proposta de sócio da Sociedade Floresta Aurora aceita. Memoráveis festas, bailes, teatro negro na sede da rua Lima e Silva. Sociedade negra, fundada por meus ancestrais libertos e forros em 1872. Ali, iniciei os primeiros passos de ator e militância negra. Quando comparecia no Mercado Público, gostava de ouvir senhores negros de idade avançada (Griôs), que contavam história da nossa gente. Mestre Borel, tamboreiro, foi meu grande amigo e incentivador.

Lá no Floresta Aurora, conheci no teatro Vilmar Nunes, Ilmo da Silva, Jorge Antônio dos Santos, que mais tarde fundaram conosco o Grupo Palmares, em 1971, já então com Luís Paulo Assis Santos e Oliveira da Silveira. Entretanto, Jorge e Luís Paulo, por questões de foro íntimo, pediram para não constar da nominata.

Nos finais de semana, quando não tinha atividade no Floresta nos encontrávamos à noite na esquina da Rua da Praia com a Avenida Borges de Medeiros (hoje Esquina Democrática), junto com outros jovens negros para analisar, discutir a situação da nossa etnia no Brasil. Sem saber, plantamos a semente da Esquina Democrática, pois ali todos tinham voz com suas ideologias.

Em meados dos anos de 1970, tive a honra de presidir a Sociedade Floresta Aurora, quando acolhemos em nossa gestão jovens negros para o saudável entretenimento cultural de afirmação de seus valores e elevação da autoestima. A centenária sociedade ganhou o simpático apelido de Mansão Black. Aquele movimento marcou positivamente a vida de muitos daqueles jovens, hoje, médicos, advogados, jornalistas, odontólogos, professores e tantas outras profissões.

Colei Grau em 1976 na Faculdade de Direito da UFRGS, como Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Fui, nesta faculdade, vice-presidente da Academia de Oratória  Joaquim Nabuco. As Ciências Sociais me levaram a aprofundar estudos em psicanálise, que usei no exercício da advocacia na área criminal e do direito de família. Em minha turma do Direito éramos apenas dois negros. O outro irmão abandonou o curso por motivos que desconheço, mas não descarto que o bulling que sofríamos pesou. Mas eu já era adepto de Malcon X. Sobrevivi.

Oliveira segurava meu ímpeto com sua voz mansa, inteligência e o talento de raros poetas  nobres. Pagava de seu próprio bolso suas publicações. Ficávamos irados com a falta de apoio de editores a ele. Reconhecíamos desde cedo sua competência. Pena que só depois de morto é que sua obra passou a ser reverenciada.

P – Como foi a criação do Grupo Palmares, em 1971? O senhor poderia contar episódios desse momento? Que propostas tinham? Como eram as reuniões? Onde aconteciam?

ACC – O Grupo Palmares, como antes informei, de certa forma nasceu na turma do Teatro da Sociedade Floresta Aurora. Mas para não comprometer a entidade em plenos “anos de chumbo do país”, resolvemos criá-lo fora de lá. Eu, pesquisando na Biblioteca Pública do Estado, encontrei o livro “O Quilombo dos Palmares “, de Edison de Souza Carneiro. Um grande etnólogo com estudos na cultura afro-brasileira.  Esta obra foi básica e fundamental para a criação  do grupo, mas outras do Octávio Ianni também. Meu Professor do Direito de Trabalho e Previdenciário na UFRGS, saudoso José Antônio Pereira Leite, certo dia perguntou a mim perante a turma se sabia que a famosa Lei Áurea era uma Lei oca e vazia, pois tinha somente dois artigos:

Art.1º- Está abolida a escravidão no Brasil.

Art.2º- Revogam-se as disposições em contrário.

A essência da ideia estava formada. Todos abraçamos a criação do Grupo Palmares. A primeira reunião formal foi na casa do Prof. José Maria, na rua Thomas Flores, 303, no Bom Fim, eis que era sogro do Oliveira da Silveira. A segunda reunião foi na residência dos meus pais na Rua dos Andradas, 849, no Centro de Porto Alegre, onde se definiu por sugestão nossa o nome de Grupo Palmares. Passamos a dizer não ao 13 de maio da Princesa Isabel e sim ao 20 de novembro de Zumbi dos Palmares. Isto ocorreu em maio de 1971. A notícia ganhou corpo ao ser veiculada no Jornal do Brasil no RJ. Negros universitários sul-rio-grandenses contestavam o 13 de maio.

Nos anos seguintes, o Movimento Negro Unificado abraçou a causa que ganhou o país. Neste ínterim fazíamos Roda de Conversa, abordando aquelas obras e outras, bem como datas importantes para a negritude. Tínhamos por local o Club Náutico Marcílio Dias na Avenida Praia de Belas. Realizamos os atos com ênfase na literatura e na inteligência, não queríamos confronto ou derramamento de sangue de irmãos, como nos Estados Unidos. Não éramos ligados a nenhum segmento político ideológico. Nossa luta era a favor da negritude, sua cultura e seus valores.

P – Hoje, cinquenta anos depois do começo da trajetória do Grupo, que balanço o senhor faz?

ACC – O Grupo Palmares elevou a autoestima do negro brasileiro e do cone sul. Eu mesmo palestrei em Montevidéu para os nossos irmãos do Grupo Bantu e do Candombe no Sul da capital uruguaia. O reconhecimento dos avanços vem, por exemplo, na voz da jornalista Maria Júlia Coutinho (Maju), da TV Globo, que enaltece aqueles que pavimentaram o terreno para que ela e outros pudessem chegar aonde estão. Ainda há muito a fazer, mas já é um caminho sem volta. Nosso símbolo é a lança, que é instrumento de avanço e nunca de recuo. Lanceiros Negros que também inspiraram a permanente luta. Enquanto a população negra não for proporcionalmente representada no Brasil nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, é mera falácia referir que vivemos em um regime democrático.

P – O senhor tem trajetória ligada ao carnaval em Porto Alegre. Como começou e se desenvolveu essa ligação? Que diferenças há entre o carnaval aqui no sul e outros estilos de carnaval no Brasil? Por que elas existem? 

ACC – Tornei-me radialista ao observar que, em coberturas do carnaval, festa cultural  genuinamente negra, os profissionais  de comunicação da época, em sua maioria, desinformavam os reais fundamentos do belo e rico espetáculo que apresenta, em um só tempo, escultura, magia de cores, música de elevada estrutura rítmica, coreografia espontânea e criativa na expressão corporal inteira, em sua mais expressiva sublimação freudiana. Fiz esta crítica ao vivo, na antiga TV Difusora (hoje Bandeirantes), no programa do saudoso Fernando Vieira. Ele nos desafiou: “Então, fica aqui e comenta o carnaval para nós.” O fiz e nunca mais deixei de ser convidado para diversas funções: Comentarista e Comandante de Jornadas. Passei por TV Guaíba, TV Gaúcha (RBS/TV), Bandeirantes, TVE, TV Joaçaba/SC e rádios Princesa, Bandeirantes, Farroupilha, Gaúcha, Metrô e 1.120.

O que lamento em nosso carnaval foi o abandono das Tribos Indígenas, que chegaram a somar o expressivo número de 17. Espetáculo tão rico quanto Parintins. Nos desfiles da Avenida Borges de Medeiros, as arquibancadas ficavam lotadas de turistas uruguaios, argentinos, chilenos, paraguaios e até peruanos. Mas, lamentavelmente, a ideia de tentar imitar o carnaval-espetáculo das Escolas de Samba do RJ com as escolas daqui acabaram com as Tribos. Os baianos foram criativos ao optar por outra linguagem carnavalesca, que abarca trio elétrico, afoxés e blocos afros. O turista quer algo diferente, por isto, em termos de economia é lucrativo para o poder público investir. 

P – Como vê a situação presente, no Brasil, no campo social, a respeito da condição dos afrodescendentes? A política de cotas tem dado bons resultados? A explicitação do racismo, em episódios que chegam a níveis de agressividade absoluta, que novidades traz para a luta antirracista? 

ACC – O Brasil mostrou desinteligência no campo social, ao desprezar o poder criativo da população negra, que é a maioria no país. O sociólogo Arnold Joseph Toynbee (Estados Unidos), ao assistir o desfile de Escolas de Samba do RJ, afirmou: “Se os técnicos da NASA quisessem organizar este espetáculo, iriam tentar a vida toda e não conseguiriam. Mas se estes carnavalescos fossem colocados lá, em menos de 5 anos colocavam o homem na lua.”  Este chamado jeitinho brasileiro (no bom sentido) exibe o talento inesgotável do povo. O sucesso de cientistas do Brasil lá no exterior confirma o dito pelo notável pensador.

Todos os descendentes de escravizados deveriam ser indenizados monetariamente pelo Estado Brasileiro, em face ao genocídio praticado contra seus ancestrais, mas como isto jamais será aprovado por nossos parlamentares, as políticas de quotas são um remendo que tenta minorar o crime horrendo executado pelo homem branco. Assim, ações afirmativas devem sim ser implementadas em todos os níveis. Os quotistas têm comprovado o excelente nível no desempenho. 

P – O senhor tem acompanhado a produção de jovens escritores? Tem lido a obra de escritores negros? Como tem percebido essa novidade?

ACC – Jovens escritores negros comprovam que, surgindo oportunidade, seus saberes afloram. Não necessariamente com temas afros, mas no geral da cultura brasileira. Não vou citar nomes, pois seria injustiça deixar muitos fora do rol.

P – De seus livros, qual ou quais o senhor destaca como realização? Há novos livros e projetos no seu horizonte?

Meus livros formam uma tríade. O primeiro, Bailarina do Sinal Fechado, é com a vendedora de jornais nas esquinas. Forma uma sombra em frente ao sol escaldante de verão. O Rua da Praia 40⁰, ainda ao calor se aproxima daquele Sol da alma humana. E, finalmente, o Degraus da Vida é a individualidade da alma divina que todos desejam alcançar e o farão um dia, formando assim um mundo de paz e amor ao próximo, onde racismo, preconceito e segregação não têm mais lugar. 

No prelo há sim outros livros e projetos no horizonte, não só necessariamente direcionados à cultura negra, hoje bem representada pelos jovens escritores negros.

Capas dos livros que formam a tríade de Antônio Carlos Côrtes.
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