Entrevista

Antonio Padeiro – “Não era Deus, era o Brown”

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Antonio Padeiro – “Não era Deus, era o Brown”

Pra mim, pernambucana de mãe e pai, viver Porto Alegre é uma experiência rica e surpreendente. Andar pelas ruas da Cidade Baixa, comer um cachorro-quente e tomar um refrigerante, todas as recomendações do coração selvagem de Belchior. Estar no estado mais ao sul do país é uma aventura com um quê de rebeldia. Enquanto muita gente se pergunta o que eu estou fazendo aqui, eu vivo e estou vivendo.

Foi mais ou menos o que fez o Antônio Padeiro. Trabalhando na portaria de um bar, como foi o Garagem Hermética no auge dos anos 90, viveu e foi vivendo, com bom humor e malemolência. Desta vida noturna toda banhada a drogas, sexo e muita música boa ele escreveu um livro de crônicas, algumas a gente já publicou aqui na Parêntese. Não leu? Clique aqui. Vale a pena, são tão divertidas quanto foi esta nossa conversa realizada pelo whatsapp.

Nathallia Protazio

Parêntese – É um prazer especial conversar com um irmão cronista. O prazer é tanto que estou procrastinando estas perguntas há semanas pelo medo de não conseguir fazer uma boa entrevista. Então, estava ali lavando a louça – que é o que eu faço quando tenho uma tarefa e acho que não dou conta – pensando o que você me diria sobre este medo da entrevista dar errado, e acho que a gente pode começar por aí… O que você me diria?

Antônio – Bom, primeiro gostaria de dizer que também gosto de lavar louça pra poder pensar melhor. Tudo que escrevo, sejam crônicas, contos ou até novelas, surge durante as tarefas diárias de casa. Algumas vezes acontece enquanto estou passeando com Chico, meu melhor amigo canino.  Essa coisa da limpeza – não que eu tenha TOC – tem influência da Dona Teresa, minha mãe. Ela foi doméstica a vida toda, mas pra mim é como uma terapia. Um espaço onde converso comigo, me questiono e me respondo muitas questões. É o meu momento de concentração e me sinto bem nesse lugar. O medo também é recíproco, penso que responder é algo tão complicado quanto perguntar. Sobre dar errado, acredito que estamos na mesma, o que pode ser algo bom pra nós dois. (risos)

P – Qual trilha sonora você indica pra gente entrar num clima bem Garagem? Acho que a música ajuda sempre.

A – Então… no Garagem tinham uma ideia sonora bem ampla, acredito que deveria ser um lugar bem eclético, mas na vida real não era bem assim. Algumas coisas não tocavam por lá, por falta de conhecimento ou até mesmo por falta de empatia, rap nacional por exemplo. Por isso vou colocar “Jesus Chorou” dos Racionais MCs.

P – Ótimo! Ao som do melhor do nosso rap, queria saber mais do teu início… Apesar de ter muito da tua vida no teu livro, conta um pouco pra nós de como foi a tua infância em Viamão, a relação com a tua mãe, Terezinha Martins Figueiredo, teus dois irmãos, a vizinhança.

O menino Antonio com a família (arquivo pessoal do autor).

A – Bah, isso é louco. Vou começar falando da mãe, Dona Teresa não é fácil, mas a vida dela não foi nada fácil também. Acredito que tudo na nossa vida é um reflexo. Meus avós tiveram sete filhos. Minha vó morreu no parto da minha mãe e meu avô morreu logo em seguida, de tristeza. Por conta disto meus tios viraram as costas pra minha mãe. Então, ainda criança ela foi adotada. Com seis anos já trabalhava na lavoura, lá na fronteira, Palmeiras das Missões. Naquela época, 1951, filhos adotados no interior na verdade eram como escravizados. A família que adota é dona da criança, como na escravidão.

A mãe estudou até o segundo ano primário, pisciana, nunca levou desaforo pra casa, nunca confiou em ninguém, já encarou a Brigada Militar e nunca aceitou sem-vergonhice de marido. Ela sempre foi turrona. Mas conforme o tempo foi passando percebi que ela só era daquele jeito por conta de tudo que ela passou. Ela foi a primeira grande feminista que reconheci, porém levei tempo pra entendê-la. Saí de casa com dezessete anos, não tinha uma boa relação com meu padrasto que era policial civil, falcatrua pra caramba. Tive várias divergências com a mãe na adolescência, por ter ido mais além, entende? Conheci e experimentei coisas, vivi mais intensamente, e a mãe não conseguiu acompanhar as minhas viagens, apesar de nunca ter desistido de mim.

Sou o mais velho de três irmãos só por parte de mãe, infelizmente meu irmão do meio André já é falecido. Meu irmão caçula se chama Cesar, é cozinheiro profissional e o apelido dele é Gordinho. Sempre vai ser o caçula!

Minha infância em Viamão foi tipo o sonho de qualquer criança do início dos anos oitenta. A gente morava numa casa na encosta de um morro com uma sanga que passava no final do terreno, imagina. Brincava de tudo, mas sempre muito sozinho, meu irmão era pequeno e tava sempre chorando, então eu ficava isolado viajando com uns bonequinhos que vinham nos doces que a gente comprava no armazém.

Foi na minha infância que conheci a black music, Jackson Five, Stevie Wonder. Tive uns vizinhos que dançavam, era mágico. Lembro que eu ficava no muro olhando eles dançarem na sala. Um dia o toca-discos deles estragou e eles me perguntaram se a gente tinha um. Como meu padrasto e minha mãe trabalhavam, eu ficava sozinho, então eles começaram a ensaiar na minha casa. Comecei a dançar junto, mas não era a minha. Um dia a mãe chegou mais cedo e ficou olhando a gente dançando, quando a música acabou, ela deu um berro: “Vamos limpar essa merda toda aí!” Enquanto a gente arrumava a sala ela fez um café. Quando a gente terminou ela deu uma moral pros guris, disse que eles tinham futuro. Quando eles foram embora ela me chamou e disse que aquela não era a minha e nunca mais teve ensaio lá em casa.

P – Como foi a mudança pra Canoas? Teve algum impacto no teu convívio social e familiar?

A – Meu padrasto era policial civil, por isso a gente tava sempre se mudando. Não tenho amigos de infância, isso sempre foi um problema. No início da minha adolescência nos mudamos pra Canoas, eu tava sempre envolvido em algum problema na escola Guilherme de Almeida. Ali chorei muito, sofri muito bullying, mas também aprendi a me defender e virei amigo dos excluídos, ali me tornei um nerd de periferia. 

Meu primeiro apelido em Canoas foi Gatinha, porque em Viamão a gente chamava as gurias de gatinha, mas em Canoas era mina. Logo meu apelido foi Gatinha, mas pra minha sorte as minas do colégio me chamavam de gatinho e por conta disso eu brigava todos os dias na saída.

Nessa época meu padrasto arrumou uma amante e minha mãe teve que segurar as pontas da casa sozinha. Como ela sempre foi uma ótima cozinheira, começou a fazer lanches pra engordar a renda, bolos de festa, salgadinhos, pizzas e pão. Foi por causa do pão dela, que eu vendia numa cesta de vime, que ganhei o apelido de Padeiro.

P – Qualquer um que visita o teu perfil no instagram vai se deparar com muitas fotos tuas na companhia do Chico, como tu mesmo já disse, teu melhor amigo canino. Qual a tua visão da relação dos humanos com os animais hoje em dia? E sobre o veganismo?

A – De um lado existe um processo de humanização dos animais domésticos que me assusta, mas por outro lado pra tudo na vida precisa existir uma medida, um limite, pelo menos comigo é assim. Chico é um cachorro inteligente, me faz companhia, moramos só nos dois, divido quase tudo com ele, ninguém sabe mais da minha vida do que aquele peludo, saca. Ele foi um presente da Vika Schabbach, minha ex-companheira, o Chico tinha menos de dois meses na época. Quando me separei ele veio comigo e deste convívio nasceu uma amizade absurda.

O Chico está em várias crônicas que escrevi, principalmente durante a pandemia me ajudou sendo uma válvula de escape. Por exemplo, quando escrevia alguma coisa sobre comportamento humano que incomodava alguns leitores, eles vinham pra cima de mim, cheios de ódio e coisas do gênero, mas quando eu colocava certas frases na boca de um cachorro, ninguém se manifestava contra. Afinal de contas um cachorro tem essa liberdade por pertencer a outra espécie, é tipo a visão do superman sobre o ser humano, saca? (risos)

Contudo, entendo quem chama seu animalzinho de filho, o ser humano anda muito carente de amor. Todos os seres humanos estão nessa barca. Por isso quando alguém te dá amor incondicionalmente, tu pira. É isso que animais de estimação te dão sem te pedir nada em troca. Claro, tem gente que leva isso pra um lado bizarro e tem aqueles que não têm alma, porque pra maltratar um bicho o cara não pode ter alma.

Faz mais de um ano que namoro a Leticia Virtuoso, atriz e professora de teatro. Ela é vegetariana e por uma série de fatores terminei largando a carne de mão. Existem questões do agronegócio e da destruição do planeta que me incomodam, mas também tem o fator financeiro e o fato de me fazer mal. Quando comia carne vermelha passava mal na digestão. Claro, a convivência com o Chico me trazia uma visão romântica do vegetarianismo. Por outro lado o Chico adora carne (risos). Pra mim o fator principal são os temperos. Nossa! Como aprendi a comer bem depois de largar de mão a carne vermelha.

Às vezes ainda acho que meu organismo sente falta de carne, por isso como peixe. Mas de uma maneira geral, lido bem com essa loucura capitalista que é a carne. Quando falo do capitalismo é porque os caras criaram a ideia de que tudo que é comida acompanha a carne. A carne é o prato principal na mesa, mas graças à Leticia estou percebendo que existe muito mais além do que a grande indústria quer que a gente acredite. É um processo de crescimento humano como qualquer outro na vida.

Antonio e o cachorro Chico (arquivo pessoal do autor).

P – Falando um pouco do teu livro BARROS 386: crônicas de garagem (Vamodale, 2021), gostaria de te dizer que li mais da metade em voz alta pra minha mãe e nós nos divertimos muito juntas. Curtimos a noite de Porto Alegre dos anos 90 pela primeira vez – afinal nesta época morávamos em Pernambuco – e foi uma experiência incrível. Me diz, escrever teu livro foi tão fácil quanto foi pra nós a leitura?

A – Escrever se tornou um hábito pra mim ao longo do tempo. Comecei a escrever com doze anos, mas nunca havia mostrado pra ninguém. Estudei até a sexta série e parei pra trabalhar, precisava ajudar em casa. Quis a vida que eu fosse parar na portaria daquele bar, que era uma espécie de faculdade alternativa. Depois do Garagem toquei no Da Guedes, fiz cinema, publicidade, teatro e televisão.

Pra trabalhar na Ulbra TV tive que falsificar meu histórico escolar. Mesmo sendo um bicão em tudo que fiz na vida, sabia que era um artista, só não havia me encontrado. Mas a sociedade te cobra, ainda mais quando tu é de periferia. Lembro de uma vez que fui num órgão público e a guria que me atendeu era fã do Mistura Fina – um programa de humor que fiz com o Bivis na Ulbra TV –, ela ficou toda feliz quando me reconheceu. Então ela pediu meu CPF e viu que eu não tinha o fundamental completo e mudou na hora, fez uma cara de nojo pra mim tão feia que fiquei constrangido. Foi nesse dia que percebi que o sistema pode tirar tudo da gente, menos o conhecimento.

Naquele dia senti a necessidade de voltar a estudar, e com trinta e sete anos entrei na FAPA onde cursei a faculdade de Letras, porque lá no fundo eu sabia que a minha praia era a escrita. Foi na faculdade que me tornei Antonio Padeiro e criei coragem de escrever o que penso. Claro, a internet me ajudou bastante. Tu receber um feedback na hora é bom (quando tu tem consciência que não sabe tudo, porque como tem mala na internet!) (risos).

Então, durante a pandemia me isolei em casa com o Chico, na época eu já trabalhava numa produtora, a Mandraque Filmes, e como tudo fechou na quarentena comecei a escrever diariamente no Facebook, e o retorno era bom. As pessoas se identificavam com o que eu escrevia; eu expunha meus sentimentos, não colocava filtros e escrevia com o coração aberto. Todos os dias recebia mensagens de pessoas me agradecendo por algo que tinha escrito, pessoas de outras cidades e estados. Esse foi o primeiro sinal que tive apontando um caminho.

Também por conta da pandemia fiquei meses sem trabalhar, então no dia do meu aniversário escrevi um texto pedindo ajuda pra que eu pudesse continuar escrevendo, e pra minha surpresa ganhei dez mil reais de aniversário dos leitores. Aí a coisa mudou de figura, percebi que as pessoas queriam que eu continuasse escrevendo.

Durante a pandemia escrevi algumas memórias dos anos noventa e vi que muita gente havia gostado, inclusive o professor Carlos Gerbase, que eu conhecia do tempo de porteiro por causa da banda dele, Os Replicantes. Ele foi um dos que fez coro pra que eu escrevesse um livro sobre aquela época, então sentei e comecei a escrever sobre o tempo que fui porteiro do Garagem. Na real escrevi o livro em quarenta e cinco dias, me afastei por uma semana e reescrevi quase tudo. Foi uma delícia escrever sobre aquela época. Acordava cedo, levava o Chico na praça, fazia um café e começava a pesquisar, depois de uma hora começava a escrever e em dois meses o livro tava pronto. Agora estou escrevendo um romance e vejo como o processo é totalmente diferente, mas igualmente prazeroso.

Livro BARROS 386: crônicas de garagem, Vamodale, 2021 (imagem de divulgação)

P – Apesar do primeiro livro que tu leste ter sido aos 18 anos, Cartas na rua, de Charles Bukowski, o teu lance de criar histórias aconteceu antes. Conta um pouco como foi.

A – Ah! Isso é massa. Quando eu era pequeno lá em Barbacena… tô brincando. Esse livro do Charles Bukowski foi o primeiro que eu li, mas quando eu tinha sete anos ganhei da minha madrinha um livro chamado Tonico Vai à Guerra, nunca li, hoje tenho dois exemplares, um dia ainda vou parar pra ler.

Sempre gostei de contar histórias, quando era criança os amigos da minha mãe contavam histórias engraçadas e eu reproduzia com todas as palavras, às vezes dava uma aumentada pra provocar mais graça. Meu padrasto também gostava de contar histórias, mas eram coisas mais tristes e que me faziam pensar e muitas vezes chorar. Achava lindo falar coisas que faziam chorar, acho que em alguns momentos da vida levei isso a sério demais e magoei algumas pessoas, mas já me desculpei com a maioria delas.

Apesar de ser geminiano sempre escutei muito os outros.

Na adolescência eu ficava na esquina com meus amigos cuspindo no chão, inventando histórias de coisas que imaginava serem engraçadas, e como todos riam eu continuava, tipo um stand up, saca? Mas como na vila os mais velhos não respeitam muito o bobo da corte, eu tinha que saber bem a medida entre ser engraçado e ser arriado. Anos depois, já no fim do programa Mistura Fina decidi que não queria mais ser o palhaço, queria ser levado a sério e comecei a focar em outras coisas. Hoje tento mesclar a graça e a emoção.

P – Às vezes como cronista eu sinto que algumas pessoas desconhecidas criam um senso de intimidade comigo após lerem meus textos, o que me deixa muito feliz. Penso: ‘‘se esta pessoa acha que me conhece então estou mentindo bem’’. Isso tem acontecido com a publicação do teu livro? Te incomoda ou é divertido? 

A – Apesar de tudo, já era bem conhecido no meu mundinho por conta da banda e do programa de tevê, mas escrevendo foi uma linda novidade. Não era levado a sério no mundo das artes da cidade de Porto Alegre. Outros artistas não viam em mim alguma qualidade suficiente pra me respeitarem como um igual, pra eles era mais um bicão, o eterno porteiro do Garagem, saca? Isso mexia com a minha autoestima. Em contra partida, o público me adorava, então de alguma maneira só faltava aquele encaixe.

Penso que como escritor tenho uma responsabilidade com o leitor, sou respeitoso e gosto de ser respeitado. Não me permito certas brincadeiras, apesar de falar com certa intimidade com todo mundo, mas é meu jeito, não tenho como fugir. No fim termino criando laços com as pessoas e algumas se tornam amizades, algumas vezes virtuais, outras presenciais.

Lembro que minha mãe falava dos atores das novelas com certa intimidade. Fazia isso porque os via diariamente na televisão. Na internet não é diferente, afinal de contas somos normais, como qualquer outro, a diferença é que eu escrevo e eles leem.

Acho muito preza quando alguém fala bem do que escrevi, adoro saber que alguém se emocionou ou sorriu, às vezes eles dão gargalhadas e me mandam áudios agradecendo por ter animado o dia ruim que estavam tendo. Essa é a nossa função, entreter, mas sem perder a noção.

Antonio Padeiro (foto de Martins Figueiredo)

P – Falando nisso, dia desses eu li numa publicação dos @funkeiroscults que de acordo com o mestre Antônio Candido a literatura tem três funções: psicológica, social e formadora. Pra ti qual a função da literatura?

A – Adoro o Candido, ele tá certíssimo. Pra mim a função da literatura é exatamente isso. Principalmente nos dias atuais, em que as pessoas se distanciam cada vez mais da literatura. “As pessoas não gostam de ler textões”, escuto muito isso, mas sinceramente não concordo, escrevo textão todos os dias e elas leem. (Risos)

Só que pra isso funcionar é preciso atualizar a literatura, principalmente nas escolas. Não tem como tu chegar pra um menino de dez anos e pedir pra ele ler Machado de Assis. Ele não vai entender nada. A educação sucateada só serve pra criar esse maldito analfabetismo funcional, que empobrece o intelecto do sujeito tornando-o um escravo do sistema.

A leitura é muito distante da realidade da população, por isso é fundamental a literatura marginal. A gente fala a língua do povo, com nossas gírias e dialetos suburbanos. Trocando ideia e respeitando a função de cada um – quando digo isso é porque a literatura de um modo geral menospreza algumas profissões e isso afasta o leitor mais periférico –, a gente quer se ver, a gente quer fazer parte de alguma coisa.

O Ruy Castro tem uma frase ótima: “A vida de todo mundo dá uma boa biografia, mas nem todas devem ser publicadas”. Saber contar história é uma maneira de incluir os excluídos. Respeito o cânone, mas peraí… Quem escrevia, quem sabia ler naquela época? O Brasil precisa aprender a interpretar texto, é por essa e outras que o país tá na mão desses caras aí.

Minha escrita é pro povo, falo como escrevo e escrevo como converso no dia a dia.

P – No teu livro eu encontrei uma escrita sem filtro moral, algo raro de ver na literatura. Você fala sobre drogas, comportamentos sociais e sexuais, com naturalidade. Isso já te causou algum problema da parte de algum leitor ‘‘mais conservador’’?

A – Minha mãe sempre me disse que quem fala a verdade não merece castigo, ela é batuqueira e católica, dá pra notar pela frase. Por outro lado, mesmo que a verdade não seja absoluta, ela é envolvente.

Existe um conhecimento de causa no que escrevo. Nunca escrevi sobre algo que não conhecesse ou que não tivesse experiência. Às vezes, quando tu escreve de maneira tão crua e direta e ao mesmo tempo com emoção e graça, tu tira o peso que as mentes maldosas dão pra certos assuntos, pelo menos é assim que vejo. Posso estar errado e tá tudo bem, não estou aqui pra ser o certo.

A maldade muitas vezes está nos olhos de quem lê. Tento ser direto, justamente pra evitar esse tipo de celeuma. Nunca me disseram nada sobre nenhum texto, espero que não aconteça, se acontecer vou conversar e tentar entender melhor, mas não me vejo mudando minha essência, nem minha maneira de escrever por causa de alguém que não conheço.

Muito se fala sobre os tabus. Acredito que escrevo pra uma camada da sociedade bem menos hipócrita do que outras, por isso não sofro este tipo de perseguição. Mas ainda estou começando, não sou muito conhecido como escritor, talvez amanhã ou depois desta entrevista as coisas mudem, né. (risos)

P – Às vezes tenho a sensação que a classe média brasileira – e isto não exclui a possibilidade de acontecer em outros países, na Suíça era bem parecido – se acha muito descolada quando consegue equilibrar o pensamento politicamente correto enquanto frequenta lugares que exploram os funcionários e fuma sua erva comprada ilegalmente. Como você sobreviveu no Bom Fim sem perder o bom humor?

A – Bom, isso foi complicado no início, mas não muito. Basicamente eles tinham medo de mim e eu sabia usar isso a meu favor. Apesar da cara feia, sou um amor de pessoa (risos). É verdade! Estou sempre buscado graça nas coisas, faço piadas com tudo e com todos, crio falsa intimidade, sou comunicativo e me considero um cara legal.

Meu objetivo no Bom Fim não era ter o que eles tinham, era saber como fazer pra ter aquilo também. Queria saber o caminho, quem poderia me abrir portas, quem poderia me ajudar a ter um emprego melhor. Não por acaso saí da portaria do bar e caí na publicidade e depois na televisão. Durante esse tempo conheci pessoas e fiz festas com elas. Claro, tinha a coisa da droga, conseguia drogas com meus amigos traficantes e abastecia festas dos bacanas da publicidade. Poderia citar nomes, mas não preciso, eles sabem (risos). Me tornei amigo de muitos bacanas, sabia qual era o interesse deles em mim e deixava claro o meu interesse neles. Muitos eram amigos até a droga acabar. No outro dia era novamente um estranho.

Mas aí já tinha a informação que precisava pra dar mais um passo. Vou dizer que sempre dava certo? Não. Queimei meu filme algumas vezes, mas era errando que aprendia. Assim sobrevivi à maldição da classe média.

Emocionalmente consegui sair ileso. Conheci muitas mulheres que me usaram pra se vingar dos pais, até conto no livro a história de uma menina que era filha de um desembargador e só queria ir pra Europa com as amigas e o pai não deixou. Aí, pra se vingar, ela me levou pra dormir com ela depois de uma noite muito louca e de manhã me convidou pra tomar café com o desembargador, imagina a cena. Na época eu era bem maloqueiro e nunca tive medo de cara feia. (Risos.) Ele surtou com a guria e aceitou o acordo, ela foi pra Europa.

Antonio Padeiro (foto de Debora Beina)

P – Quais as tuas influências na literatura, além do padrinho Bukowski?

A – Aprendi muito com José Saramago e Gabriel García Márquez, adoro esses caras, mas amo Mia Couto. No Brasil gosto da mãe da literatura marginal, Carolina Maria de Jesus, Luiz Antonio de Assis Brasil, Dyonélio Machado, Ferrez, Sacolinha e o Sérgio Vaz. A geração Beatnik foi muito importante pra minha construção, eles tinham uma forma de escrever descompromissada.

Saramago me ensinou a coisa mais importante pra mim na literatura: não importa o final, mas como se conta uma história. Márquez me mostrou que tudo pode ser possível, se tu souber como conduzir a história. Carolina me apresentou a literatura marginal e Ferrez era como eu, um marginal nato.

Mas minha maior influência na literatura é o povo. Como na tragédia grega: as histórias orais, aquelas que não estão nos livros, aquelas que os vizinhos contam, sabe? Escuto histórias por onde ando, converso com pessoas e sempre quero mais. O povo tem uma mística inacreditável. Me emociono só de pensar nas pessoas que conheci ao longo dos meus quarenta e seis anos de vida. Foram tantas histórias ou como diria Roberto Carlos: “Foram tantas já vividas, são momentos que não me esqueci. Detalhes de uma vida, histórias que contei aqui…”.

P – Olhe, escutar o Sobrevivendo no inferno me inspirou. E parece que assim como o José Falero, tu tem uma relação importante com eles. Como os Racionais MCs salvaram a tua vida?

A – Puxa, vou chorar, já te disse que sou um chorão? Já senti brotar uma lágrima aqui… Bom, eu tive período na minha vida que perdi tudo, perdi meu emprego, meu casamento, estava afundado em um mar de drogas e bebidas. Parecia que nada estava dando certo, e foi a única vez na minha vida que me vi naquela situação. Era bem famoso por conta do programa, não ganhava bem, mas me divertia muito. Um dia fui injustamente acusado de roubo e demitido da TV e da rádio, entrei em depressão, uma coisa que não era acostumado. Na vila a gente é criado pra quebrar a cara, mas nunca pra se dar bem. Por isso somos tão espiados. Desconfiamos de tudo, mas naquele momento estava fragilizado e cheguei a procurar um amigo que era evangélico, o Rodolfo, que era dos Raimundos. Ele era da igreja Bola de Neve e eu pensei que talvez precisasse de ajuda, mas nunca consegui falar com ele.

Cheguei a pensar que não havia mais espaço pra mim nesse mundo. Me sentia um merda, me afastei de pessoas legais e estava até o pescoço no submundo. Então um dia eu tinha cheirado um monte e tava tomando cachaça, sentei na sala da minha casa e por algum motivo, que até hoje não sei explicar, no aparelho de CD começou a tocar uma música dos Racionais. Não sei como aquilo aconteceu, mas quando Brown disse “Fé em Deus que ele é justo, ei irmão, nunca se esqueça. Na guarda, guerreiro, levante a cabeça. Truta, seja lá como for, tenha fé porque até no lixão nasce flor”… Eu estava no lixão, eu era o lixo. O sistema tinha me engolido, eu estava onde eles disseram que estaria.  Só um pouco, desculpa.

Foi meu pior momento na vida, mas depois daquele dia levantei a cabeça, larguei as drogas de mão e busquei meu caminho. Sem religião: não era Deus, era o Brown, saca. Era um igual a mim, nem maior nem menor, igual. Naquele momento eu vi a luz. Naquele dia eu percebi que a minha vida dependia só de mim.  Queria ver meus filhos adultos, queria conhecer meus netos, abraçar minha mãe e dar orgulho pra ela.

Ali tudo mudou, fiquei mais forte.

Hoje sou um cara justo, prego a paz, mas não baixo a cabeça pra ninguém. E assim vou trilhando meu caminho, cheguei até aqui sem dever nada pra ninguém e disso tudo a maior lição que tirei é que a mãe da gente é a nossa última barreira da dignidade. Sou um orgulho pra dona Teresa, o primeiro filho a ter um diploma, o primeiro da família toda. Ela leu o livro que escrevi, e se só ela tivesse lido pra mim já teria valido a pena. Naquele momento Racionais salvou minha vida, foi meu pior momento.

P – Quando te chamei pra esta nossa conversa tu disse que adora responder perguntas. Quando você ensaiava pra ser famoso como o Michael Jackson tinha alguma pergunta que você sempre quis responder e ninguém nunca te fez?

A – Ah sim, eu queria que me perguntassem como consegui tamanha fama. Pena que até eu não conseguiria responder. (risos)

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