Entrevista

Com a bênção de Grotowsky, Sebastião Prata e João Cândido

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Com a bênção de Grotowsky, Sebastião Prata e João Cândido Vivenciando João Cândido, o líder da Revolta da Chibata. (Foto: Wagner Inocêncio)

Quando a revista Parêntese foi criada, na primeira lista de pessoas interessantes a entrevistar estava já o nome do Sirmar Antunes. Todo mundo que esteve vivo e pensando, no Rio Grande do Sul, ao longo dos últimos talvez 30 anos, já viu sua figura, no palco ou nas telas, interpretando com alma forte, coração sereno e olho vivo algum grande personagem. Todo mundo sabe que ele é um grande ator. 

Armamos essa conversa mais de uma vez, sempre por whatsapp, e a conveniência de calendários de compromissos, antes da pandemia e agora durante ela, foi empurrando o encontro para adiante. Mas agora saiu esse papo, que poderia durar muito mais tempo.

Sirmar, por ser ator, por ser o ator que é e mais ainda por ser a pessoa que é, tem um balaio, uma arca de histórias vividas. E aqui ele contou algumas, sempre com uma clareza de quem está repassando um conhecimento, sem nenhuma pose, com toda a delicadeza para com o interlocutor – sua criação na Medianeira, seu pai veterano da Segunda Guerra e estivador do cais do porto, a grande mulher que foi sua mãe, sua estrada no teatro, na militância sindical, enfim, coisa para passar horas ouvindo. 

Pessoalmente, a história que mais me tocou foi a de seu deslumbramento com um certo ator, num certo filme, numa tarde da infância, experiência que o fez pensar em seguir a grande e estranha arte da atuação. 

Dá vontade de fazer como aquele apresentador do Blau Nunes, na abertura dos Contos gauchescos: “Patrício, escuta-o”. 

Entrevista feita por Luís Augusto Fischer, com edição de Cláudia Laitano

Parêntese – Como foram teus anos de infância e adolescência em Porto Alegre?

Sirmar Antunes – Nasci em uma família simples do bairro Medianeira, há 64 anos. Nunca passamos fome, mas era uma vida com certa dificuldade. Nem sempre se tinha tudo que se queria, mas tínhamos o necessário para sobreviver bem. Minha mãe tinha sido doméstica antes de se casar, e meu pai era estivador. Eu e minhas duas irmãs mais novas estudamos naquelas escolas criadas pelo Brizola, um coleginho chamado Grupo Escolar Medianeira. Sinto muito orgulho de ter estudado em uma escola pública. Tive uma educação muito boa vinda também das muitas mulheres da família – mãe, tias, primas, avós, tias-avós, irmãs. Era bom aluno, mas muito travesso. Dia sim, dia não, as professoras queriam conversar com a minha mãe. Uma professora chegou a sugerir me levassem a um psicólogo – ou então me colocassem em um cursinho de teatro. Na época, não entendi muito bem o que significava aquilo. Tenho maravilhosas recordações da minha infância, da minha adolescência, do convívio familiar. Fui criado jogando bola, tomando banho no arroio. Dia de chuva, a brincadeira era saltar no arroio Cascatinha, ao lado do estádio Olímpico. Então foi uma infância muito boa, uma infância feliz, junto a uma família que fez de mim um cidadão de bem. Parei de estudar antes de concluir o Segundo Grau e não tive qualquer tipo de formação acadêmica depois, mas a base da escola pública ninguém tira. Acho que a escola pública foi e poderia voltar a ser o melhor ensino do país.

P – E de que forma a atuação entrou na tua vida? 

SA – Comecei a me inserir no meio do teatro ainda adolescente. Lembra a história da professora que falou pra minha mãe que ela devia me levar para um cursinho de teatro? Curso de teatro para família pobre é utopia, não tem como, mas naquela época, não sei por que cargas d’água, duas professoras de Educação Física da escola resolveram incluir um momento para o teatro durante as aulas. Achei a ideia maravilhosa. Naquela época, não tínhamos televisão, e as novelas de rádio eram a alegria das donas de casa. Minha avó mandava as crianças irem brincar na rua ou ficarem quietinhas, mas eu preferia ficar ouvindo novela com ela. Achava aquilo um barato. Quando terminava, repetia todo o capítulo para minha avó. Sem perceber, eu já estava brincando de fazer teatro. Minha avó foi minha primeira incentivadora, meu primeiro público, e logo minha mãe também começou a me incentivar. Quando começaram as aulas de teatro, o “teatrinho”, como chamavam, minha mãe passou a não ser mais chamada no colégio, minhas notas melhoraram, e eu comecei ali. Talvez ali tenha nascido ator ou o ator nasceu ouvindo as novelas do rádio. Mais tarde, quando fui fazer um estágio no Banco da Amazônia, já com 16 ou 17 anos, conheci um grupo de teatro de rua amador de Canoas, e foi ali que de fato iniciei minha trajetória. Depois fui buscar mais conhecimento. Era um rato de biblioteca. Conhecia as pessoas do Teatro de Arena a ia lá para pedir ingresso para assistir às peças. Comecei a me inteirar, mas com um objetivo: ser ator de cinema. Bem jovenzinho, minha mãe e minhas tias me levaram para ver um filme brasileiro no cinema. Vi uma pessoa na tela que imediatamente me chamou atenção: o senhor Sebastião Bernardes de Souza Prata. Quando vi aquele cidadão atuando, eu disse: é isso que eu quero fazer, é isso que eu vou fazer. 

E ali nasceu o ator que hoje as pessoas conhecem. Esse senhor, Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo, foi minha grande referência negra. Meu pai disse que ia ser muito complicado ser ator de cinema, porque eu teria que ir embora daqui para o Rio de Janeiro, São Paulo, enfim. Ele queria que eu seguisse a carreira militar, que tinha futuro garantido. Até acho que era um futuro garantido, sim, mas imagino que o meu pai, morando agora lá no último andar, deve estar feliz. Porque eu já fiz um monte de militar em cima de cavalo no cinema gaúcho e não precisei sair do pago. Não quis ir embora. Acho que a coisa de ficar aqui é muito mais importante. Minha mãe deve ter plantado meu cordão umbilical na porta da cozinha para eu não ir embora. Estou brincando, claro, mas nunca quis sair mesmo. Morei fora já, mas não com intuito de ir embora. Consegui conquistar meu espaço como ator no cinema produzido aqui no Rio Grande do Sul.  

No filme O dia em que Dorival perdeu a guarda (Foto da equipe)

P – Em que época tu moraste fora? Foi uma experiência interessante? Valeu a pena?  

SA – Quando pintou o Dorival [o curta-metragem O dia em que Dorival encarou a guarda, dirigido por Jorge Furtado e José Pedro Goulart], em 1986, aquela galera toda que tinha feito o curta – Pedro Santos, Marcos Breda, Lui Strassburger – todo mundo se mandou para Sampa e Rio de Janeiro, mas eu não quis ir, não era o meu momento. Faltou disposição, aquela coragem de saltar fora, até porque eu trabalhava nos Correios na época. Fui carteiro por um bom tempo, e dentro dos Correios eu pude realizar o sonho de dirigir um grupo de teatro. Ajudei a fundar um grupo de teatro chamado Cartaberta. Fui mandado para a rua dos Correios em 1990, por conta de uma greve. Sempre fui envolvido com política sindical, tanto que hoje sou vice-presidente do SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos do Espetáculo do Rio Grande do Sul). Faço parte ainda hoje do sindicato dos Correios na pasta da Anistia, que peleia pelos trabalhadores dos Correios que foram para a rua por motivos políticos, ou seja, por motivo de greve. Os sindicatos, na época, não eram tão organizados quanto hoje. Mas essa é outra história. 

Então, em 1990, quando saí dos Correios, resolvi dar um pulo em Sampa. Morei lá de 1991 a 1996, trabalhando como arte-educador na Acaiabe Produções, do João Acaiabe, o ator que fazia o Dorival no curta-metragem. O Acaiabe contratava atores, técnicos, músicos, bailarinos, artistas plásticos para serem arte-educadores e oficineiros. Durante um ano, trabalhei com a Acaiabe Produções. Fiz também alguns frilas e depois trabalhei mais três anos e pouco na TV Bandeirantes, como auxiliar de iluminação. Foi uma época bem interessante que eu vivi em São Paulo, mas não fui para lá com a intenção de nunca mais voltar. Gostei de ter morado fora, porque sabia que iria voltar, sabia que eu não iria embora daqui. Sou muito agarrado com essa terra. E olha que vivemos em um dos Estados mais caucasianos da federação. O Estado mais racista do Brasil é o Rio Grande do Sul, até porque os negros aqui são minoria. Não é que nem São Paulo, Rio, Minas, Nordeste. Somos minoria aqui, mas talvez isso nos faça crescer. 

P – Lembra de alguma experiência em que a condição de negro tenha se apresentado como um problema concreto pra ti?  

SA – Recebi da minha família uma blindagem muito boa para perceber de longe onde seria discriminado. Aprendi que se acontecesse alguma coisa desse tipo eu devia erguer ainda mais o meu nariz. Ou seja, nariz em pé, peito estufado e orgulho de ser negro. Então nada me atinge. Quer dizer, aquela coisa do racismo não me atingia, não me deixava nervoso, porque eu assumia desde menino essa coisa de gostar de ser negro, de achar bonito ser negro.

P – Tens registro de elementos culturais da tradição afrodescendente? Carnaval, clube social de negros ou de religião afro-brasileira… Tua família tinha alguma ligação desse tipo?

SA – Eu e minhas irmãs fomos criados como católicos apostólicos romanos. Sabe aquelas pessoas que vão à missa todo domingo? Cheguei inclusive a ser coroinha. Domingo de manhã era a missa. Na segunda, sessão de umbanda de noite. Na terça ou na quarta, outra sessão de umbanda. Na quinta, tomar um passe numa casa espírita. Na sexta ou no sábado, festa numa casa de nação, numa casa de batuque. É assim que era minha família. A exemplo de inúmeras famílias da periferia, negras ou não negras, mas principalmente as famílias negras. Minha mãe estava com 37 anos, e já apresentando problemas cardíacos, quando teve o primeiro filho. Nasci prematuro e fiquei três meses na incubadora do Hospital Presidente Vargas. Quando saí, o médico disse para minha mãe: “Tenha fé. A medicina fez o que podia ser feito. Leve o menino para casa e tenha fé em Deus”. Minha mãe realmente foi numa casa de religião e estou aqui até hoje. Selei um compromisso com a religiosidade. 

Aos 14 anos, decidi que ia seguir o batuque e até hoje sou de religião. Mas sempre fomos um exemplo de sincretismo religioso. A gente sabe que São Jorge não é Ogum, Ogum não é são Jorge, mas ambos aceitam ser chamados um pelo outro, e o outro pelo um. Nos tempos coloniais, os padres católicos obrigavam os negros a fazerem suas preces aos santos católicos, e daí veio o sincretismo por aproximação. Descobriram que São Jorge é o santo guerreiro, então faziam suas oferendas a Ogum diante da imagem de São Jorge. Lembro que quando éramos bem crianças minha família ia à procissão de São Jorge ou à festa de Navegantes. Até hoje dá para ouvir os padres dizerem: “Uma salva de palma para São Jorge, viva São Jorge, viva Ogum!”. Tanto que lá nos Navegantes os padres também usam esse termo, já ouvi várias vezes. Por que isso? Porque a maioria daquele público afrodescendente que está lá é tudo batuqueiro, é tudo umbandista. Então os padres de hoje, modernos, fazem essa conexão e têm as suas igrejas sempre lotadas de fiéis que sabem que São Jorge não é Ogum, mas Ogum, aqui no Sul, como o churrasco, é meio que uma coisa assim. Então essa foi a minha vida religiosa. Sobre carnaval: lá na rua Silva Paes, na sede dos ex-combatentes da FEB [Força Expedicionária Brasileira, nome geral da força militar que foi até a Itália lutar na Segunda Guerra Mundial], tinha um pátio muito grande e a família do meu pai se dava com muita gente de Carnaval. A associação então alugou o terreno para que a escola de samba Embaixadores do Ritmo ensaiasse por lá. Foi o contato mais direto com o Carnaval que a minha família teve. Mas de apreciar, de ser folião, não de ser carnavalesco de dentro da escola. Nos últimos anos, tenho feito parte de júris de Carnaval. Não apenas em Porto Alegre, na região metropolitana, mas no interior do Estado e até fora do Brasil. No Uruguai já fui jurado, em Santa Catarina também. São grandes quilombos, tanto o mundo da escola de samba quanto o das casas de religião. São pequenos quilombos onde a gente se encontra, se curte, se gosta e se fortalece, não apenas com a fé, mas se fortalece para enfrentar as diversidades, ou melhor, as adversidades

Syrio Procópio Corrêa, pai de Sirmar Antunes (ex-combatente da FEB na  II Guerra). Foto: acervo pessoal

P – Teu pai foi pracinha na II Guerra, depois estivador. Ele te contava histórias sobre o tempo da guerra? E o Cais do Porto, onde ele trabalhava, chegaste a frequentar? 

SA – Meu pai começou a trabalhar cedo, com oito ou nove anos. Quando chegou na idade, entrou para o quartel. Era ferreiro e trabalhava na cavalaria, e essa paixão dele pelos cavalos acabou passando para mim. Depois que saiu do quartel, foi ser estivador. Era o serviço que sobrava para os negros com pouco estudo naquela época. Viveu praticamente a vida inteira na estiva no Cais do Porto. Quando estourou a guerra, ele se alistou e foi enviado para o teatro de operações na Itália. Lutou com os pracinhas da FEB e depois da guerra voltou a ser estivador. Boa parte dos estivadores que eu conheci tinham sido pracinhas da FEB também. Meu pai chegava a ficar quase uma semana no porão de um navio quando tinha carga grande e me ensinou a ir até o Centro, pegando o bonde ali na Medianeira, para encontrar com ele. Eu descia perto da Riachuelo e ia até lá ao Cais para buscar algum dinheiro para levar para casa. Pegar um bonde e ir sozinho para o centro da cidade passear e tal: eu me sentia o dono de Porto Alegre. 

Lembro que na época saiu uma reportagem de capa no jornal que chamava os estivadores de “príncipes de calção”. Isso porque os estivadores ganhavam relativamente bem na época áurea da estiva. Não só em Porto Alegre, mas nos portos todos, Rio Grande, Santos… Os estivadores ganhavam muito dinheiro porque trabalhavam muito. Eram todos muito fortes, era um trabalho braçal extremo. Então eu curtia muito ser filho de um “príncipe de calção”. Nos desfiles de 7 de Setembro, quem abria a parada eram os ex-combatentes, e às vezes os filhos desfilavam com eles. Desfilei algumas vezes de mãos dadas com meu pai no Dia da Independência. Até hoje adoro os desfiles do 20 de Setembro. Não tanto pela coisa da tradição, mas mais pelos animais. Sempre fui apaixonado por cavalos. A certa altura, a associação dos ex-combatentes ganhou um terreno lá na Medianeira para construir uma sede campestre, e nós fomos morar lá. Eu, minha mãe, meu pai, minhas irmãs – o meu pai era o zelador. No final de semana, os pracinhas apareciam por lá, faziam festas, churrasquinhos. O lema da associação era “a melhor homenagem aos companheiros mortos é dar assistência aos companheiros vivos”. Então eles se reuniam, comiam churrasco, contavam histórias… Alguns deles brincavam: “Heróis coisa nenhuma. Estávamos todos encagaçados, mas fomos lá para brigar pelo Brasil”. Eles tinham esse bom humor. Aprendi muito com aqueles coroas. 

P – Tu falaste da importância das mulheres da tua família na tua vida. É uma experiência brasileira muito comum essa. Tem gente que diz que isso tem a ver com a cultura afro-brasileira. Conta um pouco mais da tua mãe.

SA – Minha mãe foi criada por uma família, ela e a mãe dela. Minha avó materna não cheguei a conhecer, mas sei que era filha de escravos. Meu avô era português. Minha mãe chegou a terminar o ginásio, o que para aquela época era muita coisa. Chamava-se Marília de Dirceu, nome da musa do poeta Tomás Antônio Gonzaga. Sempre gostou de poesia e lia muito para mim e para as minhas irmãs. Então aprendi com ela a gostar de poesia. Tinha uma sensibilidade tremenda e me incentivou muito a ser artista. Talvez minha mãe tivesse alma de artista sem mesmo perceber dentro daquela vida que ela levava. Ela era cardíaca – aliás como toda a família: eu, minhas irmãs, meu pai, minha avó… Minha mãe morreu com 54 anos, e o meu pai com a idade que eu estou agora, 64. Quando solteira, era aquele tipo de empregada doméstica que, na verdade, não tinha um salário. Trabalhava na casa e ganhava regalos, presentes. Meu pai não gostava muito disso, e quando os dois se casaram ela ficou trabalhando como doceira. Recebia encomendas grandes de doces. Eu brinco que nem todos os doces de Pelotas eram feitos pelas baronesas. Na verdade, eram as negras que faziam, e as baronesas levavam o nome. E a coisa da negritude, o fato de a família brasileira ter essa cultura do amparo, do cuidar do outro, vem muito do matriarcado africano. Minha mãe era muito austera com a gente e nos criou, eu e minhas irmãs, para sermos realmente pessoas que seguissem uma linha correta. Não admitia mentira, não admitia engodo. Ela queria olho no olho. Aprendi muito com ela e as outras mulheres da família. Todas se ajudavam muito.

P – Contaste que tu eras rato de biblioteca em certa época. Tens lembrança de alguma leitura significativa, algum autor que te marcou, que abriu teu horizonte, te jogou para frente? 

SA – Foi o livro Em Busca de um Teatro Pobre, do Jerzy Grotowski. Devorei esse livro, literalmente devorei. Percebi que a técnica que o diretor usava lá com o grupo de Canoas era a do Grotowski. Era o meu primeiro grupo, a minha primeira experiência de teatro mesmo. Então até hoje uso alguns ensinamentos que estão lá. Mais tarde, já tendo um conhecimento um pouco maior de teatro, fui descobrir o Constantin Stanislavski. Os livros dele sobre interpretação e construção da personagem eram considerados a bíblia dos atores. Até o Actors Studio, de Hollywood, usava. Mas o Grotowski foi o livro que me chamou mais atenção. Nunca fiz curso de teatro, mas tive a chance de ministrar algumas oficinas de iniciação teatral pelos anos de experiência que eu tenho. A bagagem me dá chance de buscar nas gavetinhas da memória. Dependendo do que preciso, busco lá. 

P – Voltando ao tema do cinema, que afinal é uma das tuas praias, talvez a mais notável: conta um pouco da tua experiência como espectador de cinema de rua, na infância e na adolescência.

SA – Na Medianeira, tinha um cinema chamado Alvorada. Ali eu vi muitos filmes no tempo de guri. Aquela coisa de trocar ingresso por gibi e tal. Tinha uma tia que morava perto do Cine Pirajá, na Bento Gonçalves. Foi no Pirajá que eu e meu primo, guris ainda, fomos ver sozinhos Barrabás (1962), com o Anthony Quinn. Perto da Igreja de São Jorge, na Aparício Borges, tinha o Cinema Miramar. Acho que até em Teresópolis tinha cinema, mas não lembro o nome. Sei que fui a muitos. Gostava de bangue-bangue, filmes do Bruce Lee, de kung fu… Até porque comecei a me interessar por artes marciais e tal. Adolescente quer ver ação, corpo, movimento, exercício. Isso nos ajudava a gastar energia só de ir assistir. Gostava também de ir ver os filmes do Teixeirinha. Ia com meu tio lá no Cinema Vitória, no Centro. Foi justamente em um filme do Teixeirinha que eu estreei no cinema. 

Em 1976, fiz o primeiro trabalho profissional no teatro, com aquele grupo de Canoas. O Mobral contratou o grupo para montar um espetáculo e viajar o ano inteiro fazendo apresentações para os alunos do Mobral e seus familiares. Cada participante do grupo ganhava um salário mínimo, então foi meu primeiro trabalho profissional. No mesmo ano, eu e outro colega do grupo nos inscrevemos para fazer figuração no filme Carmem, a Cigana (1976), com o Teixeirinha e a Mary Terezinha. Foi uma festa. Um filme que tinha cigana, casamento de cigana, gente pra caramba e tal. A minha cena tinha um monte de gente, e eu tive que forçar a vista para me reconhecer na tela. A filmagem foi no parque Saint-Hilaire, em Viamão. Ali eu vi aquela parafernália toda de cinema pela primeira vez. Aquilo tudo me fez realmente me apaixonar por aquela vida. Foi bem interessante eu ter conhecido o Teixeirinha. Ele era um ícone do cinema. Sem ser ator, se tornou um ícone e suas produções oportunizaram a formação de grandes profissionais do cinema gaúcho. Anos depois, vim a trabalhar com dois desses profissionais que eu conheci ali: o falecido Paulo Crespo e sua esposa na época, a Gina O’Donnell, que hoje é diretora de produção. Anos depois, dei uma entrevista para a TV Cultura do Rio de Janeiro, quando passaram Netto Perde sua Alma, e na entrevista um dos críticos de cinema perguntou de onde vinha o cinema gaúcho e tal. Falei que antes daquilo que todo mundo conhece hoje, a gurizada do Super 8, houve a força de um empresário chamado Vitor Mateus Teixeira, que financiava os seus próprios filmes. Era um músico que faturava muito com seus discos e fazia filmes, e esses filmes criavam mercado de trabalho para muita gente que até hoje está aí trabalhando no audiovisual. O Teixeirinha tem uma importância tremenda e eu me sinto feliz de ter convivido, nem que fosse por três dias de filmagens, com esse cara. Pereira Dias, o diretor de Carmen, a Cigana, depois me convidou para fazer uma ponta em outro filme que ele dirigiu, chamado Domingo de Grenal (1979). Depois de adulto, alguns filmes que me marcaram foram Tubarão (1975) e Inferno na Torre (1974), que marcaram aliás a vida de muita gente. Sinto falta daqueles cinemas antigos. Acho que a violência e a especulação imobiliária acabaram com os cinemas de calçada e levaram os espectadores para dentro dos shoppings. Gostaria que as calçadas ainda tivessem cinema com pipoqueiro na frente e tal.

P – Tiveste alguma vivência em cidades do Interior? Teu pai e tua mãe eram de Porto Alegre? Quando foram tuas primeiras experiências com cavalos?   

SA – Meus pais nasceram em Porto Alegre, como eu. Não tenho referência nenhuma de interior do Estado. A paixão pelos cavalos veio do meu pai e de um tio que era carroceiro. Todos os dias, a eguinha que trabalhava com ele ia lá na porta da cozinha da nossa casa para comer banana, torrão de açúcar ou cenoura na palma da mão. Era minha única experiência com cavalos. Meu pai montava muito bem por ter servido na cavalaria e foi passando para mim esses conhecimentos sobre cavalos, mas só fui aprender a cavalgar quando fiz o filme Lua de Outubro (1998). O diretor, Henrique de Freitas Lima, levou os atores todos que iam montar para um hotel-fazenda em Livramento para a gente aprender a conviver com os cavalos no campo e tal. Então foi lá que montei pela primeira vez e tive meus primeiros tombos também. Até em cena eu caí, mas não podia ir para o filme a queda. 

Sequência de Lua de Outubro,  de Henrique de Freitas Lima (1997). Foto: Alberto Basail

Em 1999, na preparação para o filme Netto Perde sua Alma (2001), do Tabajara Ruas, aí sim tivemos um aprendizado mais longo. Foram três meses de aulas de equitação, três dias por semana, na Estância São Pedro, em Gravataí. Hoje posso dizer que monto relativamente bem como ator. Não sou um ginete para participar de Freio de Ouro, claro que não, mas como ator monto muito bem. Posteriormente, fiz Os Senhores da Guerra (2016). Então o “véio” deve estar feliz lá no céu. Meu pai faleceu em 1987, pouco depois do lançamento de O Dia em que Dorival Encarou a Guarda (1986). Foi o único filme que ele viu. Foi lá do céu que ele me viu sendo milico em cima do lombo do cavalo e fora dele também, porque eu fiz o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, no teatro, e fiz um brigadiano por duas oportunidades em curtas da RBS TV. Embora tenha sido criado em casa com pátio,  sou o típico gauchinho de apartamento. Daqueles que se pilcham de gaúcho na Semana Farroupilha… Claro que eu não faço isso, não me pilcho nunca. A minha ligação com o gauchismo é de apartamento, sabe, um gauchismo do Bonfa (risos). 

P – Como foi essa montagem sobre João Cândido? Conta um pouco dessa experiência.   

SA – Em 2001, o Nei Ortiz montou o espetáculo João Cândido Vive, que tinha teatro, dança e música, e eu fazia o João Cândido falando em primeira pessoa. Conseguimos uma entrevista dele para o Museu da Imagem e do Som e montamos o roteiro a partir desse material. A parte cênica do espetáculo foi toda eu que concebi, e o Nei dirigia a parte que envolvia coreografia. Foi bem interessante. Em outra oportunidade, mais tarde, um grupo de dança de Encruzilhada do Sul, terra do João Cândido, me convidou para fazer uma apresentação poético-musical em homenagem a ele. A parte que escolhi falar era assim: “Teve um momento da minha vida em que andávamos, eu e a filha Zeelândia, pela mão. E dois homens passaram pela gente e eu vi que um deles disse ‘aquele nego véio é que tinha que ser nosso presidente, porque ele é forte, tem postura’. E a minha filha de cinco anos me disse assim: ‘Papai, tão falando de você’ “. 

O que eu não sabia era que essa filha Zeelândia, que morreu em 2006, aos 82 anos, estava na plateia do Theatro São Pedro naquela noite. Foi uma emoção muito grande quando ela foi homenageada pelo pessoal de Encruzilhada. Ela subiu no palco e disse: “Primeiro de tudo, antes de agradecer aos senhores todos, eu vou ali abraçar meu pai”. Cara, tu não imaginas a emoção que eu senti. Tirei o lenço vermelho, que era o lenço vermelho do filme Lua de Outubro, o lenço maragato que o João Cândido usava, e coloquei no pescoço dela. Alguns anos depois, alguém da Casa do Poeta Rio-Grandense foi a um evento no Rio e me contou que ela lembrava de mim: “Mande um abraço para aquele ator que fez o meu pai lá no teatro bonito aquele, São Pedro. Sirmar o nome dele. Manda um abraço e diz que eu ainda tenho guardado com muito carinho o lenço”. É uma daquelas coisas que o ator não esquece, e isso me marcou para o resto da vida. 

P – Como tu avalias hoje os filmes em que atuaste ao longo da tua carreira? Tens algum preferido? 

SA – Participei de 18 longas, talvez uns 10 curtas para a RBS TV e mais uns 10 curtas especificamente para cinema. Um prêmio em curta, um prêmio em curta para tevê, um prêmio por Netto Perde sua Alma, fora novelas, minisséries, essas coisas. Mas o cinema é a minha praia. É óbvio que Netto Perde sua Alma tem uma importância tremenda na minha trajetória. Tem um espaço na galeria dos meus troféus, obviamente, e no meu coração. Mas o longa do Henrique de Freitas Lima, Lua de Outubro, foi o que me projetou. Quando o filme estreou, as pessoas de cinema viram o meu trabalho e começaram a me chamar para fazer curtas, médias, longas, tudo isso. O próprio Tabajara me viu ali. O Henrique conta que deu de presente para o Tabajara, que na época morava em Florianópolis, uma fita em VHS do Lua de Outubro. Logo em seguida, recebi o convite para fazer o Sargento Caldeira em Netto Perde sua Alma. Então esses dois filmes têm uma importância tremenda na minha vida. O Lua porque foi o divisor de águas na minha carreira. Até então eu fazia teatro e algum curta, só isso. Tinha feito O Dia em que Dorival Encarou a Guarda e depois não tinha acontecido mais nada. 

Aí, quando fiz o Lua, começou a mudar tudo na minha vida e comecei a fazer cinema. Então Lua de Outubro é meu trabalho principal, ou seja, o que abriu caminhos, e o Netto abriu caminho para os prêmios. Cada trabalho que a gente faz é um filho que a gente tem, mas eu tenho uma paixão tremenda por todos os meus filhos. Do Tabajara, gosto do Netto e o Domador de Cavalos (2008) e A Cabeça de Gumercindo Saraiva (2018). Do Paulo Nascimento, Em Teu Nome (2009) e Valsa para Bruno Stein (2007). Tenho muitos trabalhos e fico meio perdido para identificar o melhor, o que é muito bom. Caramba, fico muito feliz em poder ter feito esses filmes.  

Em Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas (2001). Foto: M V Martins

Sirmar Antunes vive atualmente na Casa do Artista Riograndense, uma instituição que acolhe quem precisa e que agora necessita de auxílio. 

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