Entrevista

Jandiro Koch – Fluidez de gênero, constância de princípios

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Jandiro Koch – Fluidez de gênero, constância de princípios Jandiro Koch na Univates, em Lajeado-RS. (Foto: Elise Bozzetto)

Uma entrevista grande, imensa de tamanho, vale a pena? 

Ah, vale. Pague para ver!

Quem toma a palavra aqui é Jandiro Adriano Koch. Sua história vai ser apresentada em seguida, de forma que não preciso entrar em detalhes. Mas alguns dados ajudam: nascido numa colônia germânica do Vale do Taquari, a uns 100 km de Porto Alegre, num tempo nada remoto, o Jandiro falou o alemão dialetal da região e só foi viver em português no tempo do colégio. Sua vida familiar tem ingredientes que noutros casos conduziram a impasses e derrotas tremendos, mas em sua trajetória resultaram em peças de um imenso quebra-cabeças que se foi acomodando, até encontrar uma voz serena, que é a que o leitor vai ouvir na sequência.

Outros traços nada estranhos ou raros se foram sucedendo: estudou bastante, dedicando energias a um caminho viável de emancipação social e intelectual, formou-se em História e com o instrumental acadêmico promoveu pesquisas de grande profundidade, coragem e qualidade sobre gente discriminada, gente do mundo LGBT, gente negra daquela região. Jan virou um intelectual sofisticado, nesse caminho.

Eu o conheci no facebook, esse imenso e descontrolado pátio de colégio em que se vê de tudo. Deparei com suas postagens sempre inteligentes, sensatas, profundas. Fizemos amizade remota, entre outros motivos porque parte da minha família é do mesmo Vale, e na trajetória do Jan eu posso ler muito do que sucedeu com avós, tios, pais, sobrinhos, primos. O Jan é muito próximo, historicamente. 

E devo parar de falar, para passar a palavra a quem de fato importa: o Jan. Com sua verve, sua dedicação, seu discernimento, seu empenho, pode ter certeza que nosso mundo fica mais compreensível – mais humano, mais amoroso, mais nuançado. 

Entrevista feita por email.


Parêntese – Eu te conheci pelas postagens no facebook, que me chamaram a atenção por várias qualidades – ao mesmo tempo uma percepção aguda das coisas do presente e uma gentileza grande, que não aceitava aquela típica atitude lacrativa, que as redes parecem prestigiar. Queria começar por aqui a entrevista: tu te lembras da história da tua relação com as redes? Entraste nesse mundo já no tempo do Orkut? Foi fácil aprender a lidar com as redes? Mudou a tua atitude em algum momento? Já desististe de alguma?

Jandiro Koch – O que me vem à mente é que, por ter crescido em meio a agricultores de subsistência, muita coisa chegou tardiamente. Algumas vim a conhecer no local de trabalho antes de ter acesso à internet em casa. Juntado a uma certa falta de interesse na parafernália tecnológica, há sempre uma sensação de estar atrasado. Provavelmente é impressão compartilhada, porque a velocidade, nesse universo, não assenta com o vivenciado durante infância, adolescência e boa parte da adultícia de muitos. 

O Orkut foi um dos marcos das socializações que de outra forma não teriam sido concretizadas. Todas as redes sociais são locua do efêmero, mas podem significar a retomada ou o início de conversações longevas. Conheci interessados nas mesmas coisas que eu. Lembro especialmente a avidez em colecionar livros da Cassandra Rios em uma época em que ninguém falava nela. Particularidades nas experiências com o Orkut estavam associadas às chances que pessoas LGBTQIA+ vivendo em áreas rurais tiveram para travar relações fora do micro, fissurando o isolamento. Hoje não faço depreciação das áreas rurais em comparação com as urbanas. Há vantagens em cada geografia, sendo o distanciamento do fervo, por exemplo, observado como benefício ou não, a depender do indivíduo e das suas metas. 

É um paradoxo refutar essas postagens e, ao mesmo tempo, apoiar a liberdade de expressão? Ao chegar nesse entroncamento, prefiro inferir que as agruras decorrem do analfabetismo funcional. Educação de qualidade é a ferramenta própria para triagem, a que fornece a habilidade de tirar a pedrinha do meio do arroz – é essa a aposta. Mas sei que pode soar ingênuo, porque há um quê de perversidade não desconsiderável que entra e se reforça nas universidades, por exemplo. Quantos casos de racismo, machismo, homofobia, só para citar alguns eixos, são oriundos de gente com canudos embaixo do braço?

Retornando. Mantenho três redes sociais ativas: Facebook, Instagram e Grindr. A primeira é a mais utilizada, permite textos extensos, alguma contextualização – embora eu tenha optado por postagens suscintas e humoradas ultimamente, já em distanciamento de um espaço que foi poluído de (des)informações. O Instagram foi se tornando o reino de fantasia, que oprime pelo estado de felicidade constante. Vendido como a normalidade, implica a medicalização da tristeza, o boost energético comprado em pílulas nas farmácias (que se vão na urina), e assim por diante. O Grindr, por último, é um local para relacionamentos entre pessoas LGBTQIA+, especialmente gays homens. Dou umas olhadelas como voyeur, nunca saí com pessoa alguma. Essa caverna é tanto o terreno de indivíduos despojados em busca de afeto e sexo quanto, nem tão bacana, espaço de normalizações se impondo, reproduções de arquétipos e exclusão – toda a gruta parece, ao mesmo tempo, abrigo e caverna de Platão. Dificilmente uma rede social não vai apresentar muitos prós e contras, porque são a humanidade refletida e se construindo. Nessa geografia virtual, já vivi fases diversas, oscilações, euforia e desinteresse, muitas vezes simultaneamente. 

Como foi citado na pergunta, pinço a lacração para avançar. É algo que tem causado simpatia eventualmente e certa aversão – essa a depender de como é externalizada – em mim. Editei o cérebro para encarar o ato de lacrar como ação impreterível, premência de sobrevivência. Pode ser que eu seja dessas pessoas jurássicas que não conseguem se adaptar às flexibilizações e mobilidades dos comportamentos/conceitos, mas mantenho a separação. Vejo com entusiasmo os LGBTQIA+ que, por exemplo, não tinham direito à opinião e que, para marcarem seu reclame, usavam da linguagem ou de algum ato como afirmação, resistência, revide. Ao funcionar para reservar o direito inquestionável à fala, ao lugar, para alcançar garantias constitucionais, vejo como uma atitude eficaz. 

No entanto, a internet catapultou outro tipo de manifestação, que tem a ver com monetarização, com lucro. O fim deixou de ser a carência. Quem passou a recorrer ao método deixou de ser aquele dito vulnerável. O Tik Tok e a função Reels, no Instagram, apesar de realmente divertidos, têm sido povoados por essa geração que assimilou que dá para captar dinheiro “acontecendo” em vídeos curtos, especialmente se nonsense. O mundo cult também foi arrebatado. Nas universidades, tem sido regular o emprego de títulos com o intuito de “causar”. Nestes há bastantes desencontros entre fundamento e Powerpoint. O primeiro é não ter filtros, o segundo é uma maquiagem. Qual vende? Entre esses novos lacradores, há desde os deslocados, “perdidos na maionese” na acepção antiga, passando pelos oportunistas “surfando na onda” até os que vivem uma estranhíssima tensão amorosa com a censura. 

Um outro aspecto que incomoda na lacração: quando essas práticas se tornam o esperado, o desejado, o vinculado. Isso tem a ver um tanto com o que o antropólogo Erving Goffman comentou no livro “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, quando sugeriu que determinadas figuras usualmente excluídas de grupos sociais hegemônicos podem ter relativa “aceitação” quando funcionam como espécie de bobos da corte. Parece que os LGBTQIA+ sempre convivem com a sombra de desconfiar que a “aceitação” decorre do papel de palhaço que os considerados “normais” esperam. Não estou querendo dizer que o espetáculo, o show, a performance, a arte queer não são maravilhosos, não “salvam” como tem sido retórica. Está aí o comediante Paulo Gustavo, vítima recente da Covid-19, como exemplo que cativou pelo humor, pela impressão de ser o personagem enquanto fazia a unha do pé. Mas quando a pessoa é assujeitada de forma que não lhe é permitido o corte entre atuação e a vida fora do palco, aí a lacração se torna em algo limitado a artistas que têm habilidades para reproduzir esse desempenho todo o tempo, algo pouco plausível aos tantos que precisam de emprego – e respeito – na fábrica de calçados, no frigorífico, na loja de roupas, na farmácia. Sem contar que os lacradores já vêm sendo empresariados, orquestrados e manipulados por um aparato que cooptou a logicidade e a transformou em outra coisa.

Nesse imbróglio, que nem de longe tem suas nuances exauridas numa resposta, posso dizer que já recorri à lacração por ver nessa a única saída e que já lancei mão no que, hoje, analiso como impreciso. Não somos máquinas, as decisões, no calor da hora, nem sempre estão afinadas com um conjunto de crenças elaborado ao longo da vida. A falibilidade, aliás, tem sido retirada como direito que nos deve assistir – todo mundo, afinal, defeca. Revendo, vejo meu primeiro livro – uma coleção de textos antes publicados em jornais do Vale do Taquari, incluídos alguns que não passaram no crivo dos veículos de imprensa – como indissociável dessa vertente “fechativa”. Em “(Ir)reflexões & ensaios”, de 2011, existia um “eu” mais audacioso, certo furor gerado no descontentamento com a realidade, que era traduzido em mordacidade, sarcasmo e “diretaços”. Um “eu” do qual ocasionalmente sinto falta, porque as amarras do adulto retiraram aquele desprendimento. 

Talvez o sujeito gentil, que você assinalou na pergunta, seja apenas resultante do esforço cotidiano para não deixar prevalecer o cambalacho, que é o que se torna algo ao ser usado com abuso e sem justificativa. Quando a agressividade rende curtidas nas redes, mas deslegitima o que defendo (lembro do Gentileza, do profeta, que era agressivo, tinha pautas morais conservadoras, mas que escrevia frases que cabem em posts água-com-açúcar, ditos típicos de uma hipocrisia política à brasileira – onde práxis e verbo estão distantes), tendo ao freio. É um exercício fundamental nessa lambança atual, tentar construir com certa empatia. 

Tornei esse olhar para o Outro um dos pontos centrais da minha atenção ao ler a filósofa Judith Butler, que, a sua maneira, reitera a importância de um corpo de alianças para lidar com as tribulações. Com certa afeição pelos escritos dela, desloco algumas de suas ideias, enquanto conservo certo ceticismo em assimilar outras. Quando ela fala na premissa de uma coletividade compromissada diante de tantas vidas precárias, especialmente na ausência do Estado como instituição de real amparo desses indivíduos fragilizados, ela tece críticas indeclináveis ao neoliberalismo e ao que vê como simulacro de democracia – e eu, cá comigo, ainda tenho dificuldades em ver uma saída afastada da democracia representativa, mesmo que falha. Não consigo me entusiasmar com coisas como a “ancestralidade” e correlatas, porque vejo como investidas ufanas, que bem puderam, eventualmente, atender pequenas comunidades, mas não suprem diante da dimensão demográfica atual. 

Em termos práticos, mas genéricos, hoje penso nas costuras necessárias para criar unidade em momentos decisórios. Embora seja desanimador que a bagunça antiética reine nas redes, indubitavelmente essas foram transformadas em um dos maiores palcos decisórios. Há uma necessidade “bíblica” de separar joio e trigo – e, mais, de reunir o trigo, que está espalhado. O que mais pode reunir A e Z, onde quer que seja, senão uma vacina de resultados comprovados, ou seja, o bom argumento, a boa massa?

P – Agora voltemos ao começo: como foi tua infância? Como era o contexto? Era a colônia germânica no Rio Grande do Sul? E tua família? Os primeiros estudos foram feitos naquele contexto? Por favor, aponta datas.

Nasci em Estrela, em uma localidade rural chamada Arroio do Ouro. A família era de origem germânica. A comunidade formada por descendentes de alemães. Como éramos alvos, eu parava para ver pessoas negras quando as avistava. Não tinha entre os “nossos”, com exceção do preto Cuti, um andarilho que passava pela propriedade. Também apelidado como Beija-Poste, porque cumprimentava os postes de luz, nos tempos em que eram de madeira, usualmente com um ósculo. Ele era dito inofensivo, mas encarado com desconfiança porque, apesar de conseguir certo rendimento vendendo balaios de cipó, pegava alguma coisa das hortas ou dos pomares.

A primeira vez que vi um casal, uma mulher branca e um homem preto, que tinham um pequeno estabelecimento comercial no centro da cidade, parei em frente para olhar – estático, queixo caído. Não sei como não levei um corridão. Deveria. Levou anos para eu ouvir da minha mãe algo como “negro também é gente”. E mais ainda para eu entender que, afinal, aquele era um passo para ela, que tinha aprendido, desde pequena, que negro era vagabundo e que não fazia serviço bem feito. Quando dois tios meus casaram com “brasileiras”, aquelas uniões foram comentadas com desaprovação entre os parentes, porque, especialmente as mulheres, não viam nelas qualquer semelhança consigo. 

Revisitar esse imaginário étnico-racial permite, quando analisado caso a caso, entender as origens individuais das crenças e da discriminação. Nesse sentido, tenho visto com certo desconforto a nova onda estrutural, que falha quando não verifica as peculiaridades. Isso nas avalanches de internet, não no preciosismo inalcançável do erudito, que bem sabe dessa demanda. Judith Butler, em algum ponto da obra, analisou o impacto da linguagem/comportamento nas existências e como a reiteração discursiva consolidou um entorno com determinadas verdades pelas quais somos enredados mesmo antes de nascer, pré-determinados a ser isso ou aquilo – imaginário com preferência por binários. A certa altura, ela chega em uma encruzilhada ao perceber que, bem, se todos estão amarrados a essas construções (ela prefere o conceito de performatividade, porque, entre outras razões, evita a fantasia de uma construção deliberada, portanto de simples remodelação pelos sujeitos conforme caprichos ou esforço), como podemos responsabilizar o indivíduo pelas falhas de algo que o precedeu? 

Resta-me acreditar que, mesmo que exista o estrutural, não há de se ignorar as especificidades dos envolvidos – são os agravantes e atenuantes da área de Direito, que devem ser incorporados às fichas de réu e agressor. A observação desses detalhes tem sido desconsiderada pelos progressistas repetidamente, quiçá escusáveis pelo resultado almejado da briga na qual estão envolvidos. Somado com o imediatismo na análise – o que é típico da internet superpovoada com julgamentos e cancelamentos à revelia -, tem abalado credibilidades (ao menos aos meus olhos). 

Voltando à infância e à adolescência, tive uma experiência peculiar. O pai biológico era alcoólatra. Um dia foi encontrado enterrado no quintal, os ossos. Versões contam que teria sido assassinado por um rapaz que hoje reside em Teutônia. Outros sussurram que minha mãe, em um momento de pouca lucidez, teria colocado uma camada de terra sobre o corpo após um coma alcoólico. Antes disso, ela se negou a se divorciar, apesar dos incentivos da família. Dizia ver a separação como contrária aos mandamentos divinos – no que também podia estar uma desculpa esfarrapada, porque o amor pode ser perverso. Não descarto a religião como elemento-fechadura. A comunidade, como todas no município, tem seu epicentro na conjugação de escola, salão comunitário e igreja (católica ou protestante). 

Ela desenvolveu uma patologia mental, leigamente associada, ao menos em termos de agravamento, ao problema de saúde do cônjuge. Quanto mais ele bebia, menos provável era o adequado acompanhamento no tratamento medicamentoso dela. Era uma relação extremamente tóxica. Pelo que me contaram, ela casou contra a vontade da família, apostando que iria mudar o comportamento do marido, que já tomava cachaça em demasia. Depois que o corpo do meu pai foi descoberto, minha mãe passou a viver em um mundo só dela, no interior, perambulando como o Cuti. Um dia ela ateou fogo numa mata de eucalipto perto de onde vivia. Provavelmente um acidente, ela costumava fazer pequenas fogueiras, para a comida ou para se aquecer. Foi presa e, na sua condição, remetida ao Instituto Psiquiátrico Forense em Porto Alegre. Dali retornou em um caixão no mesmo dia em que foi absolvida em sentença. 

Fui criado, desde pequeno, por dois tios por parte dessa mãe. Um tio e uma tia, que muitos achavam ser um casal. Eram irmãos solteiros que tinham ficado, dentre uma família de treze rebentos, para cuidar dos seus genitores, meus avós. Os motivos da adoção foram problemas de saúde e financeiros dos pais biológicos. Com certa liberdade conceitual, era uma guarda compartilhada não oficializada. Nunca houve registro oficial. Pais biológicos e adotivos eram vizinhos de uns trezentos metros. Eu vivia entre uma e outra casa, mesmo porque eu tinha um irmão menor. Lembro do meu tio me carregando nos ombros para a casa do pai nas tardezinhas. Toda essa gente vivia da agricultura de subsistência.

Com o irmão Joel (à direita). Quadro a partir de fotos 3 x 4.

Comecei a frequentar a escola em meados da década de 1980, sabendo somente alemão. Antes de ingressar, já tinha aprendido alguma coisa folheando livros que estavam em um baú – daqueles antigos que eram usados ao pé da cama -, exemplares que tinham pertencido a um dos dois tios meus que conseguiram estudar, um que se tornou professor e o outro juiz. Eu lembro que escalava para dentro dessa enorme caixa de madeira. Aprendi as capitais dos países, coisas desse tipo, que faziam com que me apresentassem para as visitas. Nada suficiente para fazer uma conversação em português. A professora não sabia uma palavra de alemão. Mas, nessa idade, somos uma esponja – e logo foi. Íamos a pé para a escola. Anos depois, ganhei uma Monareta. Da escola, em Arroio do Ouro, recordo-me vagamente de ter levado alguns livros infantis para casa. Sempre me vêm à memória Monteiro Lobato, não sei se era mesmo. 

Olhando para esse passado, hoje tenho como inegável que eu era uma criança que sofria considerável bullying. Especialmente por ser ruivo com sardas. No interior, naquele tempo, tudo tinha outra cadência. Demorou para a criançada se dar conta da sexualidade diferente, embora sempre tenha sido evidente devido aos gestuais afeminados (OBS: não é regra alguém afeminado ser homossexual). Por um bom tempo, eu mesmo não tive noção sobre alguma diferença do padrão esperado. Eu dizia que achava tal homem bonito para a minha mãe, uma recordação que tenho bastante presente porque ela, brincando, fazia questão de contar para a pessoa – o que eu achava desconfortável. Lembro-me de amizades apaixonadas por coleguinhas do sexo masculino, mas não de imaginar, ao menos no período que chamávamos de “primário”, que havia algo de errado.

P – Como e quando rolou tua tomada de consciência sobre a tua identidade de gênero? Em que altura da vida começou a acontecer o processo? Como tua família e tuas relações imediatas se relacionavam com o processo?

Foi da quinta até a oitava série, quando fui pra a escola de uma localidade próxima, chamada Linha Delfina, que encontrei uma biblioteca com mais volumes. Dúvidas se formaram e foram se desanuviando. Encontrei escritos sobre a homossexualidade em livros que tratavam de mitologia greco-romana, em Viva sapata, da Rita Mae Brown, em A queda para o alto, de Herzer, em textos que vinculavam orientação sexual a doença, criminalidade, delinquência e pecado. A análise crítica demorou para aparecer. 

Também ali vivi coisas que foram me sugerindo que havia algo, em mim, que não estava em consonância com a maioria. Não consigo trazer à mente outro aluno homossexual. Até hoje, acho curioso que, de todos os colegas dessa época, não me recorde de outro gay. Tem um trabalho de pesquisa meu em que houve tentativa de verificar se os sistemas de controle e vigilância sobre a sexualidade, nas regiões de interior, são efetivos a ponto de resultarem em menor violência física, tão característica nas cidades grandes. Levando em conta várias causas, em algum momento da minha trajetória intelectual apostei que as instituições – especialmente família, igreja, escola, comunidade -, na zona rural, conseguiam dar conta de subtrair as chances de tornar públicas estéticas não-binárias, donde menos violência física – porque os corpos não se davam a ver na praça. 

Seguramente não se tratou de sustentar que não existem hostilidades corporais em relação aos que residem distante das metrópoles. Nem ignorar que há uma demografia diferente e que há o diferencial representado por sistemas de denúncia organizados nos centros urbanos, enquanto, até recentemente, era comum o titubear dos meios de comunicação interioranos em tratar abertamente o tema. Transformei esse processo de raciocínio em livro, mas não aprofundei – deveria.

As questões sobre gênero foram se tornando aparentes quando a diretora do colégio me chamou para pedir explicações sobre o porquê de eu brincar somente com as meninas; no desconforto e nas tentativas de me esquivar de jogar futebol com os meninos; quando eu optei por um conjunto de brinquedo de fogão e panelas em vez do carrinho em uma reunião da Avon em que participava a minha mãe; nas brincadeiras entre garotos naquele período em que muitas descobertas sexuais são feitas entre rapazotes do mesmo sexo, que se bolinam, masturbam e medem – fase que o pessoal “esquece” quando adulto.

A televisão também era uma forma de olhar para fora de onde o silêncio sobre sexo era lei. Tinha como não ficar maravilhado com o universo andrógino da Madonna? Eu esperava para ver o show de transformistas, no Show de Calouros, do programa Sílvio Santos, ao qual a minha família assistia enquanto jantava (Era um café da manhã trazido para a noite, pão, nata, melado, café, leite, schmier, linguiça, torresmo, ovo curtido na beterraba ou pepino em conserva caseira – esse se comia fatiado em cima de pão, nata e schmier, um agridoce espetacular). Fora isso, observávamos o mundo animal. 

Eventualmente, quando arguido, percebo que os interlocutores esperam relatos de maus tratos pela família em razão da sexualidade. Não tenho qualquer lembrança de agressão corporal ou de pressão psicológica no sentido de tentar “heterossexualizar” um menor que, obviamente, eles enxergavam que era diferente. Eles aparentemente não acreditavam nem na palmada, porque a memória não guardou registros de que tenha sido recurso. Houve eventuais comentários sobre futuras namoradas e casamento, mas nunca como obrigação, talvez porque, afinal, meus pais adotivos eram solteirões. Esse contexto me faz, hoje, diante de tantas trans e travestis expulsas de casa – e acolhidas pelas profissionais do sexo, atividade que muitas reproduzem -, falar em privilégio: ter uma família que, se não falava abertamente sobre a intimidade, jamais representou qualquer obstáculo ao curso natural do meu desenvolvimento afetivo-sexual. 

Eles tinham frequentado as aulas até a quarta série, tempo de ajoelhar no milho e de palmatória, distantes de quaisquer conhecimentos técnicos sobre gênero. Talvez pouca coisa da prática, minha mãe adotiva dizia que subiria “virgenzinha ao céu”. Do pai adotivo, tampouco soube de namoradas. Uma das raras vezes em que sexo foi abordado foi num almoço de Natal ou de Páscoa, família grande reunida ao longo de uma firme mesa de tabuão. Uma das minhas tias aproveitou – ou calhou de ser – um momento de silêncio para soltar: “Se eu soubesse o que era sexo, não tinha casado.” Os talheres voltaram a tilintar alguns segundos depois. Hoje cogito que ela conseguiu externar algum tipo de violência para a qual não atentamos naquele dia. Essa tia faleceu num sinistro há alguns anos. 

Diante do contexto, o comportamento dos meus pais, pensando agora, foi louvável. Sei de parentes incentivando intervenções, dizendo que me “faltava relho”. Quando passei a residir no centro de Estrela, rolaram papos de que eu andava “de vestido”, coisa que jamais sequer senti vontade de experienciar. Em uma única conversa a respeito, minha mãe adotiva disse ter respondido a uma dessas tantas elucubrações: “Pra mim tanto faz se entrar pela frente ou atrás, contanto que tenha caráter.” Corei. Sinceridade rara e palavreado, digamos, bem franco. Anos depois, eles chegaram a conviver rapidamente com um namorado meu, pelo qual se encantaram porque ele falava alemão. Foram grandes pessoas no seu meio, no sentido de ensinar, por exemplo, o valor da palavra. Deixa-me desconcertado ver que precisamos de contratos e, mesmo assim, desconfiamos que não serão cumpridos – e isso vem daquela certeza deles de que a palavra era suficiente. Os velhos eram falhos, evidentemente, como todo ser humano é (embora a era dos cancelamentos insista que não).

P – A saída do ambiente inicial de tua vida para a cidade maior, como foi? Por que aconteceu?  

O primeiro achego ao urbano foi quando cursei magistério no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Professores (CFAP), em Estrela, o antigo Estrela da Manhã. Eu ainda morava entre vacas e galinhas, na roça. Fui semi-interno. Recordo da professora de Filosofia que, questionada, se afirmou ateia. A primeira vez que eu ouvi um posicionamento desses. Anos depois falei sobre a lembrança com ela, professora Rejane Müller Fornari. Ela parece ter achado a lembrança curiosa. Naqueles tempos, eu já tinha lido a Bíblia e parado de acreditar – o que talvez tenha sido o maior conflito que existiu com meus familiares. Minha mãe chorou espalhafatosamente quando me neguei a acompanhá-la à missa dominical. Convenhamos que se autodefinir como ateu, numa comunidade que acaba inaugurar o “Cristo Protetor”, mesmo agora é um desafio.

Os anos de magistério também foram aqueles em que frequentei regularmente a biblioteca pública – o interesse literário sempre em expansão. Enquanto isso, “Terra chamando”, fui sendo apresentado às minúcias e aos ardis da discriminação – do que estava relativamente apartado pela “ignorância” dos bois e dos porcos. Pode-se dizer que cheguei inocente do interior. Quando, por exemplo, uma interna foi expulsa do CFAP por terem encontrado um diário em que ela se declarava para uma colega, quando convocaram os pais da garota e, de supetão, contaram sobre a lesbianidade – o que acarretou no afastamento e em quase suicídio -, fui juntando pontas soltas e entendendo que as consequências poderiam ser muitas além da desaprovação e do nariz torcido. Ainda falta muito para se tornar assunto abertamente debatido, muito mais nas escolas. Eu nem sonhava em ter contato com militâncias, não fazia ideia do que era acolhimento. As coisas simplesmente aconteciam e cada um que se virasse. Anos depois, voltei a encontrar essa moça casada com uma professora, ironia do destino. Tornamos sua história matéria de uma crônica de um jornal local.

Formado, prestei concurso para a prefeituras de Estrela, de Bom Retiro do Sul e de Teutônia. Passei. O único que não era para docência era o de Estrela, mas acabei assumindo por ser perto de casa – e porque minha família fez drama descrevendo os demais como “muito longe”. Esse “choro” e as lágrimas escorrendo pelo rosto, no dia em que saí de casa, foram das poucas formas com as quais eles, alemães avessos a demonstrar afeto, deixaram escapar os sentimentos.  Achei inusual haver abraços quando cheguei na cidade. Por ter escolhido uma vaga de almoxarife, algumas pessoas tentaram me consolar acreditando que, mesmo tendo passado nos outros certames, não houvera a possibilidade de aceitarem um professor homossexual. Guardei ranço, porque não conseguia convencê-los de que era mera opção. 

Nesse momento, no entanto, já estava formado o tripé essencial de uma existência fora da curva. A família acolhedora foi um primeiro privilégio, a escolarização foi o segundo e o cargo/emprego, através de concurso público, decorrência dos dois primeiros, o terceiro. Base e escudo. Essa é a estrutura que é negada para muitos LGBTQIA+. Expulsos de casa, permanecem afastados dessas chances que, embora tenham o mérito indissociável no desenrolar, sequer podem ser tentadas. 

Nesse exato ponto, entra a empatia como exercício, a percepção simplória, mas assombrosamente evitada por muitos, de que as conquistas são marcadas por diferenças históricas ou individuais que não nos colocam, em definitivo, num mesmo ponto de partida – ainda que se esteja abordando um coletivo específico e de forma intragrupo. 

O labor levou à mudança. Naquele tempo, saí do interior com uma carga muito forte do que o filósofo Didier Eribon caracterizou como “fantasmagoria do outro lugar”, uma crença de que, em outra paragem, vai ser muito melhor, vai haver muito mais oportunidades, iremos conhecer gente incrível – algo que inflei, sem dúvida, com a leitura de romances e biografias. Biografias continuam uma paixão, ainda mais depois que li Homens em tempos sombrios, um livro menos citado da Hannah Arendt, no qual acredito que ela assinalou o quão interessante pode ser, em tempos obscuros, observar não somente a epistemologia dos pensadores, mas verificar seus passos cotidianos, suas escolhas na vida privada e pública, inspirar-se.  Um mal de toda essa literatura? Cair feito colosso de Rodes quando, afinal, chegado ao centro de Estrela, notei que não entraria num círculo de Bloomsbury. Coisa pretensiosa, sem dúvida.

P – Que horizontes tu foste vislumbrando e buscando, a partir da adolescência? Mudava muito viver na cidade e não na colônia? 

Na “cidade grande” que, pouco depois, notei ser a extensão do potreiro, conquistei autonomia financeira, morei sozinho. Duas das melhores amigas são dessa época. A Dalva Gomes de Oliveira, uma ex-modelo – e caricaturista frustrada -, que, segundo ela narrava, teve uma filha com um homem que sumiu na Ditadura Civil-Militar, quando ela passou uma temporada no Sudeste. Mulher que adorava ler e que abandonou a carreira para cuidar dessa filha, que era epilética, doença pouco conhecida naqueles idos. Conheci já senhorinha, muito pobre, de coração gigante. Vizinha e confidente. A Sandramar Cibel, uma servidora pública da área da limpeza, passou comigo as desventuras dos primeiros amores e ajudou o quanto pode para que dessem certo. Convencer os homens que afiançavam que “só cortavam de um lado” que não tinha mal algum em sair com um gay era tarefa dela – divertidas “batalhas”. Um deles vingou e foi o mais duradouro namoro que tive, heterossexual convicto até os 34 minutos do segundo tempo. 

Nomeio essas pessoas porque, anos depois, quando comecei a frequentar a faculdade, notei que os alcunhados de “simples”, sem estudos, podiam ser muito mais inclusivos do que os formados com várias graduações. Um aprendizado que facilitou o pendor para a História Pública quando não era um conceito mencionado (ao menos não nos meus anos de curso superior)? Jogo que sim. As duas já partiram, não sem antes afastarem de mim mais um senso comum: o de que pessoas mais velhas são sempre mais preconceituosas.

Uma terceira amiga, a Maristela Morschbacher, encontrei no meu local de trabalho. Negra, adotada por alemães da Linha São Jacó, do interior de Estrela. Certo dia, ela foi visitar minha família, aquela com seu pé no racismo. Eles chegaram a cogitar se não havia uma possibilidade de namoro – o mundo gira, afinal (não é?).  Com essa Maristela, passei por um lance hilário dentro da Univates. Fomos convidados a falar sobre discriminação em uma aula de estudantes do curso de Enfermagem. Depois da exposição, pelos corredores, dois rapazes riram assim que me avistaram. Ela captou e me disse: “Mas uma coisa dessas não pode acontecer aqui dentro.” Eu segui adiante, meio que “acostumado”. Quando eu ia comentando que era melhor nem dar bola, olhei para o lado, e ela já estava correndo atrás dos dois, que chegou a encurralar numa sala de aula. Como ela era professora no curso de técnicos de Enfermagem, “deu ruim” para eles. A cidade me ofertou essas grandes amizades heterossexuais. Lembro-me de dois amigos homossexuais. Um deles era negro, obeso, usuário de maconha, pobre e petista  – tudo o que a sociedade local preza. O outro era aparentemente apartidário e apolítico, sem problemas suficientes para desviá-lo de um constante narcisista e da necessidade de conquistas para autoafirmação. Foi mais fácil “imitar” algumas práticas deste, mas aquele deixou marcas mais profundas e longevas.

O ambiente citadino, por outro lado, resultou na inevitabilidade de estar sempre vigilante. O primeiro chefe disse que eu não era uma pessoa que fazia boa figura para a prefeitura. O correto, para ele, seria eu ficar apartado numa salinha aos fundos. Relação truncada, acabamos no Fórum, onde ele foi advertido a não tocar na questão da sexualidade. Uma advogada que trabalhava no setor jurídico da prefeitura também me auxiliou bastante. Como almoxarife, na então Secretaria de Obras, a presença era motivo de burburinho e eventual escândalo. A única trans, em Estrela, tinha vindo de fora e trabalhava como profissional do sexo. Ninguém esperava alguém com a minha estética em outra ocupação. 

Reza a lenda que houve um abaixo-assinado das mulheres que trabalhavam no local para que me tirassem, porque não estavam administrando a atenção que os homens me dispensavam. Era um ambiente prioritariamente masculino. Fosse hoje, alguém provavelmente atribuiria a boa parte dessa “atenção masculina” o termo assédio, mas não aprecio levar conceitos moldados recentemente para o passado. Muito mais direta, se é que é a expressão pertinente, era a forma como os (des)encontros se davam. “Alô, doçura… Tem tudo a ver o teu xaxim com a minha trepadeira”, já cantava a Rita Lee. Eram elásticos os jogos de tentativa e erro. Nada passou de um determinado limite – talvez uns tenham sido o que posso chamar de insistentes chatos. Mas eu também servia – vide o dos 34 minutos do segundo tempo, “facão” convicto, que cortava só de um lado, que se tornou um namorado que chegou a assumir a relação publicamente – para ter assunto nas rodas de chimarrão local. Deve ter sido complicadíssimo para ele, a mãe queria comprar uma corda para suicidar, e por aí vai.

Dessas investidas, descobri que o bicho homem, heterossexual, macho-alfa quase sempre é uma pessoa diferente quando sozinho, quando usualmente respeitoso, atencioso, curioso e falante. Em grupo, se metamorfoseavam prontamente nos homofóbicos clássicos. Essa dedução vem antes da letra para a maioria de nós, mas já foi bem descrita por muitos. Daniel Borrillo, em Homofobia: história e crítica de um preconceito, corretamente destacou que a socialização masculina (ainda) tem como suportes a objetificação da mulher e a exclusão dos LGBTQIA+. 

Fora dessa bolha do ambiente de trabalho, as ruas de Estrela definitivamente não eram convidativas. Embora a segurança seja tratada como qualidade das zonas interioranas, por um tempo e várias vezes tive que fugir de turmas de rapazes querendo espancar; chamar a polícia para sair de estabelecimentos, porque essas turminhas de uns cinco ou seis estavam aguardando do lado de fora; ouvir os gritos de quem passava de carro, e por aí vai. Um conhecido meu usa a expressão “levava um baile” para dizer o que acontecia. Consistia mais ou menos nisso, éramos o tal “bobo da corte” do Goffman, tínhamos esse “papel” de ser a diversão – com pouco retorno, exceto, talvez, para cabeleireiros. O que passou a irritar os conservadores é que eu me apresentava em todos os locais que, antes, podiam ignorar as nossas existências: escola, emprego formal, universidade. Era uma posição de dianteira sem que houvesse uma noção de que fosse, ao menos durante o cai e levanta do processo.

P – Tu tiveste crises, problemas, enfrentamentos, em torno da tua afirmação de gênero, a partir da juventude? Tem alguma experiência que valha a pena ser contada? Em momentos de crise, tu tinhas referências de pessoas ou instituições que te ajudaram? 

Tenho conhecidas formadas em Psicologia que dizem que tenho perfil de quem fez terapia. Não sei exatamente o que elas querem dizer, mas se elas acreditam nos bons resultados do que ofertam, devo representar um case de sucesso. Mas não fiz. Tenho poucas dúvidas de que as melhores análises que fiz foram pela literatura e pelo processo de escrita – aqui não estou dizendo que não é relevante consultar profissionais se necessário. A forma particular para lidar com a vida foi aliando livros com certa solidão. Estar só também evitava um combate difícil vinte e quatro horas/dia (que, embora sejam outros tempos, continua sendo uma realidade). É dificílimo apurar o que se ganha e o que se perde com a escolha por menos contato social. Não sei nem se é justo o termo “escolha”. De toda a sorte, a leitura levou a percepções de mundo, que foram aprimoradas durante o curso de História, graduação que, quase certo, fez o papel de rejunte em diversas peças soltas. Indígenas, negros, pobres, homossexuais, transexuais, todos sujeitos/grupos que o Vale do Taquari mantinha apagados da história oficial, passaram a ser meu enfoque nas ocasiões em que havia espaço para manifestação. 

No privado, talvez as piores “crises” tenham decorrido dessa certa solidão gerada pela vivência em um tempo em que era improvável alguém assumir relacionamentos em público – o em que o preço pago por isso era exorbitante. Embora os armários não tenham saído de moda, o que pode ser visto em redes como o Grindr, em que existe um número grande de perfis sem rosto ou falsos, essa dificuldade vem sendo mitigada pelas novas gerações – por indivíduos que, em boa parte, usufruem do resultante dos esforços históricos com o propósito de garantia de direitos.  Minha vida afetiva foi tumultuada – e, hoje, gosto de paz.  Escolha? 

Claro que amor e ódio renderam histórias. Lembro-me de um dos rapazes mais homofóbicos da cidade, vivia pegando no meu pé, berrando palavrões, carinha que chegou a me ameaçar com um revólver. Denunciei e o caso foi para o Fórum. Resultou em uma pena alternativa – se minha memória não falha. Tempos depois, eu estava andando nos entornos do Banco do Brasil, no bairro central, prédio que tinha reentrâncias na parede leste. Eram vasos enormes em que estavam plantadas algumas – arvoretas? Acho que era isso. Distantes cerca de um metro e meio um do outro, deixavam vãos entre si. De um desses lugares, ele surgiu munido com uma faca. Ninguém na rua, “é cantar pra subir”, pensei. Ele, afinal, revelou interesse sexual, queria um encontro. Anos passados, quando eu já trabalhava na Secretaria de Saúde, para onde tinha sido transferido, o atendi. Ele pediu desculpas, já casado e com uma filha. 

Uma lição de situações como essas é que, embora exista um lado fragilizado merecedor de atenção prioritária, é evidente haver outro, que também lida com dilemas, crises, distanciamentos daquilo que foi levado a acreditar como fruto de uma educação que exige ao menos a representação – senão a prática – heterocisnormativa. Bissexualidade ou fluidez permanecem bichos-papão. Por isso, nunca me integrei bem em coletivos que excluíam a possibilidade de debate com o heterossexual presente (não vou comentar sobre outros grupos “minoritários”, mas cabe a analogia), muito menos se o propósito era a “aceitação”. Existem momentos de aparte e de fortalecimento intragrupo, mas a conversa precisa se estabelecer com os diferentes. Não irá existir uma sociedade sem os ditos “heterossexuais”.

Talvez outra “crise” seja mais constante. Embora se diga que o preferível é a autodenominação do sujeito por si – o que é bem problemático em alguns grupos identitários –, passei boa parte da vida sendo adjetivado por terceiros: gay, bicha, viado, traveco, travesti, quase-mulher, trans, afeminado e por aí segue. Quase-mulher era esdrúxulo por sugerir um estar nem aqui e nem lá, o que induzia a uma sempre obrigação de investir alto para tentar ocupar um lugar onde a entrada era proibida. Um jogo cínico. Nesse cenário de categorias e denominações, são raros os que, como a cartunista Laerte fez por um tempo, podem se dar ao luxo de se autoafirmar. A certa altura, ela passou a se dizer “uma mulher possível”. Era um conceito só dela – que acabou dispensado, uma pena. 

Talvez a Rogéria também tenha feito algo semelhante ao, apesar das pressões, nunca abandonar o Astolfo, seu nome de batismo, se dizendo “o travesti da família brasileira.” Em geral, entretanto, o que acontece é o enquadramento do outro pela estética. Vesti todas as nomenclaturas. Quando a roupa ficava apertada, trocava (nem sempre despir-se de uma terminologia é tão fácil quanto parece aqui, escrevendo). A última que me impuseram – com boa vontade, diga-se –, que até usei por alguns meses até concluir que não era bem isso, foi mulher trans. Não é um tecido com caimento pra mim, mas não posso culpar alguém por acreditar, já que é inegável que eu flerto com a transgeneridade não-binária. 

Quando a sociedade impele a essa definição fixa, que sinto incerta a respeito da identidade de gênero (não da orientação sexual), ela retroalimenta um interminável estado ansioso – em mim. Ver cada vez mais siglas no acrônimo LGBTQIA+ faz pensar que não é uma inquietude exclusiva, porque as letras acrescidas às “originais” representam uma fuga de celas. É apropriado ficar relativamente distante das categorias identitárias? Categorizações são relevantes para fazer engrenar sistemas que buscam dar conta das desigualdades, como as cotas, por exemplo. Seria inoperável fazer essas ações com critérios individuais. Todavia, há um quê que me afasta de qualquer nomenclatura – tanto que já namorei outsider e queer. Tornam-se prisões muito rapidamente. É como se, ao fundá-las como casinhas, simplesmente tivessem esquecido da necessidade de portas e janelas. E a “crise” vem justamente da dificuldade de agrupar defendendo uma ontologia allien, por assim dizer. A convergência dos grupos se dá por similaridades – a maravilha da exceção e do excêntrico é literária. 

Sempre ressalto, ainda, que estar num lugar não especificado não significa negar a biologia. Tenho certas restrições com quem parte para uma guerra com o corpo, porque, afinal, aí está. Não tenho muita dúvida em afirmar que, se qualquer coisa opera no espectro cultural, o pode porque a biologia/corpo o permitem – seja recorrendo a artificialidades, produzindo ciborgues ou não. 

Tornando à indagação inicial, mesmo com as múltiplas novas identidades, o ambíguo, o andrógino, o afeminado sobrevivem num limbo. Tanto que grifei em alguns escritos que afeminofobia tem mais relevância de atenção do que a homofobia – embora possa entrar como subcategoria. O gay perfeitinho do Instagram é desejado – e vendido. Tudo vira produto. É nítida a dificuldade em encontrar referências que não sejam aquelas reproduzindo padrões comercializados pela sociedade capitalista e que, no fim, não tentem espelhar um dos opostos clássicos; homem/mulher heterossexuais. Não dá para duvidar que muitos LGBTQIA+ binários não seriam diferentes em outra situação. Eles estão consideravelmente integrados na sociedade – e felizes, muito que bem e já não era sem tempo. Mas há muita macaquice, muita emulação de modelos heterossexuais para maior passabilidade e inserção. É estratégico porque traz a vantagem de evitar sofrimentos. E eis outra encruzilhada: Como pedir para fazer a luta dentro de uma arena que causa tantos ferimentos quando a pessoa consegue se colocar, finalmente, longe das facas? 

Tudo isso para dizer que se, na infância e adolescência, havia escassez de boas figuras para referência, ainda mais no interior do Rio Grande do Sul, hoje em dia, mesmo diante da pluralidade – ou em razão dela –, continua a haver dificuldades. Por fim, não consigo ver instituições locais, citadas na pergunta, receptivas ou preparadas para amparo, ao menos não por enquanto. Já sugeri a formação de um centro com pessoas especializadas nas demandas de Saúde de trans, proposta sempre varrida para debaixo do tapete – embora Lajeado tenha alto número de prostituição trans e de pessoas trans em outras áreas. A maioria das instituições se comporta como corredores poloneses. Igrejas promovendo a “cura gay” indiretamente? Temos aqui. Escolas vigiando professores que inserem a diversidade em uma proposta de aula e demitindo os mesmos (quando escolas particulares)? Aham. Para onde vão os LGBTQIA+ velhinhos? Não sabemos. 

Vou citar um curioso exemplo.  Em alguns momentos o meu nome veio à baila para integrar uma associação literária. Em número, tenho mais publicações do que muitos associados. Em qualidade? Podemos discorrer, mas ao menos três dos volumes estão em condições de me colocar ao lado de tantos outros. O negócio era mais ou menos assim: havia cadeiras sobrando e nomes faltando. A dispensa do meu nome por parte de alguns integrantes foi feita – numa conversa extraoficial entre alguns integrantes – por eu ser “comunista”. Reagi achando super engraçado. Primeiro por nunca ter almejado a dita academia. Segundo porque não faz muito sentido o elo com o comunismo. Apesar de pender totalmente para progressistas de esquerda, pela própria história conturbada entre “comunistas” e LGBTQIA+ – vide a experiência infeliz do escritor Reinaldo Arenas em Cuba -, meus pés ficam atrás com algo que, assim como as demais correntes, funciona no campo do ideal. 

Existiu algo não verbalizado, especialmente depois que o STF criminalizou a homofobia, embutido naquele “comunista”? Mais complexo do que responder é levar em conta que posso encarar com bom-humor esse hipotético rechaço, mas somente isso seria superficial se não houvesse o exercício de me colocar nos sapatos de outras pessoas em situações correlatas. Há muitos lá fora, sem carteira assinada, que podem ser afastados de vagas que poderiam ampliar o distanciamento da violência de gênero nas ruas, indivíduos que não escaparam da teia de ciladas representada por uma vida sem acessibilidade. “Critérios” dessa ordem, infelizmente, parecem remanescer como cartas usadas nos bastidores. 

Fora as instituições, existiram, sim, indivíduos que, de acordo com suas possibilidades, abriram portas. Mesmo dentro dessa associação, há “simpatizantes”. Professores, jornalistas, colegas de trabalho. E essas oportunidades, quando existe isolamento e minoria numérica – no caso dos LGBTQIA+ esse é um fato incontornável –, são indispensáveis. Não dá para deixar de aceitar a mão estendida apostando que todos conseguiremos lacrar como a Pabllo Vittar. Trajetória louvável, contudo um aparte. 

Parcela da mídia tem tido um papel considerável na maior tolerância, no Brasil, exaltando a imagem de drags como Vittar. Apesar disso, comprar a ideia, que flerta com a meritocracia, de que, se quisermos, todos seremos como ela não passa de aquisição de mercadoria falsificada. Não nascemos todos com gogó. Assegurado o protagonismo dos próprios, é utópico considerar avanços, especialmente na inserção em diversas áreas, sem alianças com heterossexuais. Sem políticas públicas que evitem o descaso, que olhem de frente para a desigualdade e que permitam ações efetivas – e que precisam de votos. A interlocução constante entre diferentes, mesmo que desgastante, é extremamente importante para garantir a “maioria” nos momentos decisórios – ainda mais se fecharem canais como o Judiciário, abarrotando-os com quem defende o conservadorismo moral. As vivências de muitos de nós não poderiam ter sido bem-sucedidas sem os heterossexuais, como quer que os denominem, uma vez que descartaram o “simpatizante”. São alianças a ser reconhecidas e reforçadas – o que, com o tempo, talvez modifique o cenário.

P – Profissionalmente, qual foi teu caminho? Foi tranquilo? 

A vida laboral toda foi resultado de concursos públicos. Quando passei para a Prefeitura de Estrela, ouvi rumores de que eu tinha obtido o cargo por ter um relacionamento sexual com o prefeito. Quando entrei para a Procuradoria-Geral do Estado, na seção de Lajeado, recordo que a primeira pessoa a me cumprimentar falou em “muita sorte”. Num cursinho preparatório, uma participante comentou que ela não compreendia qual a razão de eu estar ali, porque era óbvio que não passaria. Enfim… Embora eu não seja fã do discurso meritocrata, mormente quando usado como comparativo, sem dúvidas houve e há esforço. E os LGBTQIA+, salvo miopia minha, ainda têm que demonstrar duas ou três vezes mais que podem e que conseguem. Foi assim quando comecei a escrever para jornais, porque vinham perguntar quem corrigia, se tinha um “ghost-writer”, especulações conspiratórias bizarras – sempre pautadas numa junção entre identidade de gênero/orientação sexual e incapacidade laboral ou cognitiva. Dependendo da formação emocional da pessoa, a (auto)cobrança para provar a capacidade pode ser destrutiva.

Por fim, fiz um concurso para o Instituto Nacional do Seguro Social, onde permaneço. Não acredito que eu tivesse tido lugar, na época, na iniciativa privada. Houve apenas uma tentativa. Fui recebido e despachado com certa chacota no Sine. Realmente não sei de ninguém com a minha estética que tenha trabalhado em emprego formal, no Vale do Taquari, antes de mim.  Pode ser desconhecimento. Ainda hoje escuto empregadores debatendo se não espantariam os clientes se contratassem essa ou aquela trans para os seus estabelecimentos. Sem entusiasmo, tenho que convir que estarem cogitando é um passo.

O ativismo social também decorreu de um desses concursos, ao menos foi em um deles que iniciei um sem-contar de palestras destinadas a públicos diversos: professores, estudantes, profissionais da saúde, mães e pais, religiosos. Quando na Secretaria da Saúde, onde dispensava medicamentos na farmácia do SUS e no setor de atendimento às pessoas com HIV/Aids, frequentei encontros, a nível nacional, em que ativistas e militantes buscavam difundir a ideia de atendimento humanitário, tanto na saúde quanto na educação. Essas atividades se intensificaram com o programa “Brasil sem Homofobia”, criado em 2004, que teve, localmente, considerável rejeição – a maior parte por silenciamento.  Recordo um secretário da Educação de um município que, durante a apresentação de um integrante da ONG Nuances, de Porto Alegre, que convidamos para falar com os professores, levantou e colocou que, se os presentes quisessem ver sem-vergonhice, bastaria ir aos banheiros das escolas. Ele foi ovacionado. Essa inserção me levou a escrever um dos primeiros textos mais consistentes sobre a temática para um jornal do Vale do Taquari. 

Posições contrárias não impediram que, com o tempo, com propaganda de boca em boca – e a pressão oficial do Governo Federal de então – as palestras, encontros, rodas de conversa e variantes se multiplicassem. Novamente, sem consciência no tempo em que se deu, fui a primeira pessoa a chegar nesses espaços de educação com essa proposta – e estética. As idas foram encerradas recentemente pelo medo gerado, nos educadores, por possíveis retaliações de grupos como o Escola Sem Partido. Receio que, desde 2019, se intensificou por outras razões – marcadas por um reforço institucional não oficial e apoio, claro, de parcela conservadora do professorado. Alguns dos docentes, que o faziam habitualmente, foram proibidos de me convidar.

Encaro a censura como desprezível, mas confesso que foi um alívio ter esse tempo de volta depois de anos de trabalho voluntário. Foi uma parada não planejada que possibilitou contabilizar que o “de graça” estava sendo muito custoso. Resolvi embarcar no “cuidado de si” foucaultiano. Novamente, apesar de particularmente ser um refresco, posso cogitar que outros poderiam muito bem estar cumprindo essas jornadas, de preferência remunerados, mas que as portas estão cerradas. 

P – E o curso de História, como ocorreu na tua vida? E o aprendizado da pesquisa, como ocorreu?

A família sempre prezou a profissão de professor. Para eles, era status. Não no sentido atual da expressão, de soberba. Era visto como algo relevante socialmente. Tive uma paixonite pela minha primeira professora. Foi de um professor, o João Schmidt, na Escola da Linha Delfina, que, pela primeira vez, meu pai ouviu que eu tinha potencial. Acabei acreditando que acabaria em uma sala de aula, lecionando. Até tive essas inserções nas escolas nos estágios e, com mais tempo, nos encontros supracitados. Quando concluí o Magistério, desviei – mas remanescia uma vontade de, talvez, ser docente para o Ensino Médio. Não entrei para a universidade por um bom tempo. Foi o concurso no INSS que permitiu o custeio. Devo ter sido a primeira pessoa com um visual transgênero na Univates – e, em um local em que a cada semestre se reúnem vários estudantes de pequenos municípios dos arredores, em boa parte dos quais não existem registros de figuras “trans”, a cada seis meses eu me tornava uma novidade. No final do curso, houve uma visibilidade maior resultante de um misto de interesse real de certas pessoas e de obrigação legal institucional com os discursos inclusivos. Isso somado à coordenação, da minha parte, do Núcleo da Diversidade do DCE da Univates no ano da sua criação, gerou bons frutos.

Coordenação do Núcleo da Diversidade da Univates. Foto: Elise Bozzetto.

O interesse pelas pesquisas já era anterior. Sebos de Porto Alegre, museus e arquivos já estavam nos meus caminhos. O curso ampliou o acesso, forneceu metodologia, conceitos, autores que eu não leria. Mas foi a Priscila Detoni, uma docente vinda de Porto Alegre para o curso de Psicologia, que me fez entender mais de Judith Butler – especialmente porque é uma autora que flerta muito com Freud, Lacan e outros dessa área. Formamos um grupo de estudos que vivia às voltas com Foucault, Paul Preciado, pensadoras feministas e outros teóricos Queer, linha da qual eu gosto – até certo ponto.

Pela minha biografia, o tema dos estudos do trabalho de conclusão de curso estava dado: LGBTQIA+. Em jornais e em livros, eu já publicava sobre esse grupo no Vale do Taquari, tentando (re)produzir uma história, o que é considerado testeira até hoje – “estudante de História” era um título que, de certa forma, legitimava os escritos. Os olavistas e suas visões tortuosas chegaram quando eu já não estava mais na universidade.

Dois livros dos quais eu gosto bastante (um terceiro meio que renego pela forma) saíram dessa fornalha formada pela somatória do interesse particular e de estudos universitários: Um baile misturado: (sobre)vivências LGBT e negras no Vale do Taquari e Sociedade à espreita. O primeiro entrelaça as vidas de negros que mantiveram alguma espécie de liderança local – como proprietários dos ditos “salões dos morenos” ou como líderes sociais – e de LGBTQIA+, esses também lideranças entre os seus. Ambas coletividades para as quais bailes/festas foram emblemáticos para a socialização, especialmente porque apartados das festividades realizadas em locais exclusivamente para brancos (explicitamente) ou para heterossexuais (tacitamente). 

O segundo traz um pedaço pequeno do meu trabalho de conclusão, em que levantei uma infinidade de fontes sobre o Vale do Taquari, desde o século XIX até o final do século XX, procurando descobrir como os discursos sobre a população LGBTQIA+, que foram emanados por religiosos, políticos, psicólogos, médicos, jornalistas e outros profissionais locais, se apresentavam, como impactaram ou não sobre as relações mãe/pai e filhos. Para o livro, fazendo recurso da história oral, também entrevistei as Mães pela Diversidade de Lajeado – só há duas no município. Um terceiro tomo começou a ser rabiscado, mas como lançamentos com esse teor são recebidos com desconfiança, com ressalvas, deixei de lado. Mesmo porque o público regional acaba sendo restrito – e já era meu quarto livro àquela altura, o que me deu uma sensação de já ter feito bastante no contexto.

Concordo com uma frase do historiador Peter Brown numa entrevista para o El País: “Não assumir a parte vergonhosa do passado é uma recusa a estar aqui, a ser adulto”. Infelizmente, onde vivo é assim. Uma imaturidade generalizada para simplesmente partir de uma confissão honesta dos erros passados – descaso com os indígenas, escravidão negra, posições negativas sobre a homossexualidade, violência com a mulher, rusgas entre religiosos protestantes e católicos e as proibições disso resultantes, descaso com o meio ambiente – para acertar adiante. É insólita essa coisa de dispender tamanha energia negando que erraram o urinol.

Bom, adiante. Para apaziguar a agonia com abundante material em mãos, dei o pontapé inicial em outro projeto, com pretensão de expandir o público leitor. Nessa nova investida, quis abraçar a história LGBTQIA+ no RS, sobre a qual recolho fontes há muito – e que remanesce como lacuna na historiografia. Para alcançar minimamente o intentado, comecei tateando pelas beiradas. Os primeiros volumes trouxeram personagens gaúchos, mas não tiveram os fatos sobre os quais dialogo centrados no estado sulino. Foram lançados pela editora Libretos: Babá: esse depravado negro que amou e O crush de Álvares de Azevedo

Lançamento de Babá: esse depravado negro que amou. Univates/Lajeado. Foto: Délis Bianchini.

Mixando biografia, história, literatura e outras áreas, busquei, no primeiro, tocar – indiretamente – num ponto que me incomoda, que é o de transpor para outros tempos os conceitos tecidos no agora – como o da homofobia. Fiz de forma tão sutil, que pouca gente notou – ou não gostaram da ideia. Parece que é uma anacronia perdoada. Permaneço intrigado com a pergunta: pode uma pessoa do final do século XIX não ter sido aversa aos homossexuais e, ao mesmo tempo, defendido alguma espécie de cura da homossexualidade? Certamente há um posicionamento mais contundente sobre a condição, mas a noção de que se apresentava um sujeito inimigo de “gays” – quaisquer que tenham sido as nomenclaturas em voga – em todo o defensor da famigerada cura, tem um quê de controversa. Um campo minado, que, hodiernamente, resguarda vários religiosos supostamente querendo salvar as almas pecadoras. Mas o aporte de saberes, no século XXI, é outro. 

A pesquisa sobre Álvares de Azevedo, por sua vez, rendeu duas coisas no campo da reflexão, fora o olho pela fechadura que encerra um possível enlace amoroso entre o gaúcho Luís Antônio da Silva Nunes e o poeta: a) como bem sumarizou o Guto Leite em uma resenha para a Zero Hora, o texto desvela como a história literária está amarrada ao viriarcado quando os narradores fazem incontáveis esforços para afirmar os representantes do cânone dentro da redoma heterossexual; b) a constante dúvida sobre a orientação sexual – sustentada até o fim – evidencia a sensatez de retornar a assuntos em disputa (no caso a homossexualidade ou não de Azevedo) e de investigar a partir dos argumentos e não de um lado, embora um seja inclusivo e o outro não. 

Finalmente, estava planejado um terceiro volume, chegando ao Rio Grande do Sul. Está com quase trezentas páginas em word, com iconografia recolhida e quase revisado. Empacou. A historinha para o travamento é simples e sem graça. Nenhum livro meu rendeu. Sequer se pagaram, como dizem. Um baile misturado foi financiado pelo Diretório Central de Estudantes da Univates, mas abri mão dos direitos autorais. A distribuição foi gratuita – e o trabalho de pesquisa, entrevista e escrita foi oneroso e demorado pra mim. Ou seja: doação. Costumo pensar nas obras como autoanálise na qual valeu a pena investir; como entretenimento, porque há prazer na pesquisa em arquivos; como ativismo social, porque abordam os grupos sociais silenciados. Mas chega aquela hora em que não se vai adiante sem contraparte. Quando dizem que a teimosia é burrice. Dias atrás, li sobre a penúria comercial do escritor João Gilberto Noll e, óbvio, fiquei pasmo – mesmo ciente de outros casos.

Preciso aproveitar o Noll para confabular, ainda, que sempre foi difícil de alcançar algo a respeito da sua vida privada. Assim que bati o olho nos textos, há alguns anos, reconheci algo. O chamado “gaydar” acerta na tentativa – muitas vezes erra. Entendo que, apesar de haver reiterada defesa, no mundo dos escritores, de que a obra é central e não a biografia, um discurso totalmente inteligível, essa mesma vertente acabou por nos deixar órfãos de heróis. Tenho ranço de heroicizar humanos, então vou propor a expressão referências positivas. Por preconceito certamente, por longo tempo, foi muito difícil fazer o outing de personalidades, que, em vida, pelo contexto, acabaram não se expondo. O antropólogo Luiz Mott foi dos primeiros a fazer uma ampla lista, que ainda resta muito controversa. Nesses anos de pesquisa, muita gente bateu com a porta na minha cara. Parentes e próximos que conviveram com escritores gaúchos e gays como Walmir Ayala e Francisco Bittencourt, esse parente do Caio Fernando Abreu, entre outros. Pessoas que se esquivavam da homossexualidade, que foi assumida em vida pelos citados, como se fosse a Covid-19. Em compensação, os estudos vêm se concentrando na “recuperação” de personagens “marginais”, o que tem muito mérito – mas, às vezes, peca no excesso de certeza de que o indivíduo tal, cheio de passagens na delegacia de polícia, não fosse a discriminação, seria candidato à canonização.

Pesquisar é maravilhoso justamente por mostrar esse mundo complexo. Por, num conjunto muito maior, facultar a contribuição efetiva nos avanços sociais. E o curso de História é um legitimador, considerado pela burocracia atual, para respaldar quem se aventura.

P – Olhando agora, já com uma obra publicada, como tu vês a tua trajetória? 

Frustrado por não ser um pesquisador full time? É o que eu gostaria de fazer. Por outro lado, em uma realidade insegura, não seria previdente, nessa altura do campeonato, recorrer ao livretinho A sutil arte de ligar o foda-se e jogar o conquistado para o alto – e aventurar. As chances de eu me inserir não são as mesmas na iniciativa privada. Somos pessoas para quem os outros olham e sobre quem existe um julgamento pejorativo imediato. É evidente para afeminados, travestis, trans. O privado apareceu tanto na narrativa não só porque é biográfica e porque historiadores curtem cavoucar nesse terreno, mas porque interfere sobremaneira na seara pública. As igrejas conservadoras se multiplicam. O cenário, no STF, vai se “evangelizando”, quando o tribunal foi, até então, emanador de decisões afirmativas. Isso enquanto o Legislativo escanteia, esperando clamor social – que não veio e não sei se, numa ascensão neopentecostal, virá. E a gente está aí.

Há alguma vantagem? Curiosamente tenho reparado que alguns admitem existir uma “reserva de mercado” para LGBTQIA+ e que esse aparte é uma mina de ouro. Uma quimera. Sem contar que não tenho afinidade com as ideias associadas de lugar de fala e de reserva de mercado quando giram em torno de áreas de estudo, por exemplo. Não somente por achar cientificamente descabida a suposição de que somente alguém dentro de um segmento específico tem propriedade para opinar ou escrever sobre determinado assunto que lhe constituiu, mas porque, afinal, a tal construção de uma sociedade em que as diferenças serão valorizadas passa pelo compartilhamento dos saberes – momento em que, novamente, o argumento não pode ser afastado em detrimento de quem fala, a não ser temporariamente, quando não existir paridade de espaço de comunicação e enquanto esse não for separado. 

Aqui também é apropriado mencionar a existência de quem vocifera que o “vitimismo” facilita acessos, quando, com pouco espaço para rebate, a realidade mostra que existem os estigmatizados e que essa forma de os tratar se torna, para eles, um fardo a mais. A criação da terminologia “vitimismo” é, em si, um tanto cafajeste – a não ser para exceções, que precisam ser verificadas particularmente –, e por isso o estrutural nem sempre é a resposta. Um bom desenho do que acontece é que, enquanto comungamos do medo do assalto nas vias públicas, da doença e do desemprego, para citar alguns, há um peso a mais na nossa trouxa – da pancada ou da negação pela identidade de gênero ou orientação sexual. E o “vitimismo” é, no fundo e na maioria dos casos em que o termo é utilizado, apenas um erro conceitual para discorrer sobre uma das formas de ativismo: a reclamação para deixar de suportar a sobrecarga. 

Especificamente sobre a literatura e o ser escritor, não vislumbro a tal obra. Nem sei se vai existir – mas que houve um processo rizomático ou de polinização do que foi sendo feito, houve. Fico feliz com o feedback positivo nas andanças. Quando, por exemplo, ouço relatos de gays mais novos dizendo que, a certa altura, minhas proposições os encorajaram regionalmente. Ou ao encontrar heterossexuais confirmando que mudaram seu comportamento ou a forma de encarar algum ponto, ou que se sentiram mais robustecidos naquilo em que já acreditavam (porque, afinal, nem sempre estão errados), quando leram ou ouviram tal coisa. 

No Vale do Taquari, o poder de mando está concentrado em pessoas que defendem determinados valores – ainda que de forma oportunista e dissimulada. Sujeitos que estão refestelando na atual conjuntura mundial, para não deixar o abacaxi somente com os brasileiros. Mesmo nesse cenário, houve deslocamentos na forma de lidar com diversos assuntos do ontem para o presente. Aqueles “bailes” que levávamos na rua, por exemplo, são muito menos frequentes, espero que raros. E há como denunciar. Costumo pensar que tem dedo meu nisso – os foucaultianos deixam.

Verificando as produções sobre temas LGBTQIA+ no país, é notável o enfoque nos atores sociais das metrópoles. Precursores, visionários, os que tiveram mais luz sobre si para o bem e para o mal, sem dúvidas. Uma centralidade que, no campo dos estudos, está relacionada com a localização geográfica das universidades, dos arquivos e com a possibilidade material dos pesquisadores – portanto, não há uma acusação de negligência. Mas há que se pensar na gente, em mim e nos demais de áreas do interior, muitos totalmente desconhecidos do “grande” público, como elementos indispensáveis para que, no dia a dia, houvesse concretude naquilo reclamado nas “grandes” lutas. Somos nós que nos dirigimos às escolas do município tal, que convivemos com as pessoas da zona rural e que, por fim, traduzimos, no recôndito, o que é travado a nível macro. É uma soma. 

Talvez eu seja daquelas pessoas que escrevem e que, afinal, não vão ser bem interpretadas sem a vinculação com a bio. Pensando numa literatura para instigar, para dar pistas, para levantar temas, na função social, eventualmente tenho essa incerta sensação de que há uma fase da minha vida que posso aposentar quando achar conveniente. Certa vez, a Laerte, que mal tinha entrado para o meio, verbalizou, em outras palavras, que ficava muito pesado ser acionada sempre e por tudo o que acontece com essa questão: e é verdade. Creio que não tenha quem, ativista solitário (no interior é muito isso) ou em grupo militante, não tenha parado pra respirar e pensado que, como tem me acontecido vez em quando, enquanto estava suando para ver um mundo menos desigual, outros curtiam a vida, trabalhavam para juntar grana – e que isso faz falta em alguma hora. Talvez sobrevenha algo mais voltado ao ego – se é que a arte pela arte pode assim ser descrita. 

P – Que planos estão desenhados para a tua trajetória de pesquisa e redação? Que novos livros vêm vindo por aí?

A intenção primeva, até horas atrás, era lançar O gaúcho era gay? (1737-1939), título provisório que reúne os achados de revolver acervos. Cheguei a pedir autorização ao historiador Mário Maestri para utilizar o título, porque a pergunta ficou conhecida em um artigo famoso por ele publicado, texto com o qual dialoguei para amarrar os elementos um tanto esparsos – uma história a partir de fragmentos. Fora isso, como relatei antes, quem sabe acontece algo menos voltado a uma função social específica, algo (auto)ficcional, não sei. O tipo de escrita que faço, que tem compromisso com a honestidade intelectual, tem uma maleabilidade restrita. A não ser para o revisionista histórico com pretensões políticas um tanto, digamos, fora de esquadro, que faz das suas estripulias, as margens estão bem definidas. Parece que estou, no desfecho, retornando ao “pequeno tratado sobre o argumento”? Porque se tem algo que me contraria sobremaneira, nas redes sociais, onde iniciamos, é que qualquer postagem de fonte incerta tem chances de virar “informação”, suplantando considerações de minuciosa pesquisa, gerando consequências nefastas. Funciona assim com o que acredito ser vacilo em situações bem-intencionadas de lacração, que recortam ou esfumaçam o conteúdo para dar uma forma que será melhor “comprada”. Funciona assim com posts e whats negacionistas – que recorrem a uma tática semelhante, uma lacração do mal disfarçada em bons intentos. 

O formato de apresentação pode ser papiro, livro, e-book, imagem, dancinha de Tik Tok, porém, data venia, o argumento é obrigatório. Mas para a penúria contemporânea, até os progressistas têm evocado discursos de empoderamento do povo, certamente populistas, sem refletir que, como já alertava o sociólogo Joseph Schumpeter, as massas são conduzidas pelas emoções – movimento que, em boa parte, prescinde da razão. As implicações de jogar as (des)informações como batatas quentes nas mãos do grande público estão aí. 

Bom, isso tudo que escrevi é para hoje. Que constância pode ter quem diz ter fluidez na identidade de gênero, Fischer? Mudando os ventos, administro. No fim das contas, diante do insolúvel, o plano para logo é ser vacinado aqui no interior do Vale do Taquari, onde jacaré foi de espécie rara de zoológico a ameaça de super-reprodução até, finalmente, a animal de estimação – vai entender!


Jandiro Koch ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. Escreveu Babá – Esse depravado negro que amou e O crush de Álvares de Azevedo (ambos pela Libretos).

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