Entrevista

Jacob Klintowitz — Capturado pela arte

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Jacob Klintowitz — Capturado pela arte

A entrevista de hoje dá a palavra para Jacob Klintowitz. Crítico de arte, curador de importantíssimas exposições, jurado de incontáveis certames, autor e editor de dezenas de livros, com milhares de textos produzidos para a imprensa, presença obrigatória no cenário da crítica de arte brasileira no último meio século, Jacob nasceu em Porto Alegre e se transferiu para o Rio e depois para São Paulo, onde desenvolve uma carreira das mais notáveis.

O que de imediato chamará a atenção, especialmente para os mais jovens, é a relativa singularidade da posição de nosso entrevistado no mundo atual. Agora, praticamente em todas os campos da arte, dos criadores aos críticos e outros profissionais, todos vivem dentro ou muito próximos das universidades. São cada vez mais raros os profissionais, especialmente os da crítica, com carreira diretamente vinculada ao mercado. Jacob Klintowitz é um desses. 

Como se vai ler, suas relações de amizade e afinidade são incontáveis, e uma pequena parte dessas pessoas foi convidada por Renato Rosa a oferecer perguntas ao nosso entrevistado. Graças a essa iniciativa do Renato – a quem agradecemos penhorados, como se dizia antigamente –, foi possível reunir a turma do Jacob. Uma parte dela, claro. 

Luís Augusto Fischer


*Esta entrevista é ilustrada por artistas que retrataram Jacob Klintowitz.


Liana Timm, artista multimídia — Querido Jacob! É sempre bom lembrar quando a arte entrou na nossa vida. Ao relembrar o meu início, invariavelmente aparece algum detalhe novo. Conta pra nós quando essa expressão humana te capturou!

Jacob Klintowitz — Capturou é uma palavra expressiva, Liana. Estamos falando de paixão e amor. É da artista, poeta visual e senhora da palavra, querer a gênesis. 

Menino, eu era de uma sensibilidade extrema e difusa. E me encantava com as cores, as formas, o som e os ritmos das palavras. Aos 13 e 14 anos eu era um leitor voraz e à procura da consciência. Ainda sou, na verdade. Aos 14 anos, um professor de português, Luis Emilio Léo, se entusiasmou com uma imensa redação que escrevi, “O medo”, com as 37 citações que eu fazia, me questionou sobre cada uma delas e me fez assumir o compromisso de fazer duas redações por mês. Em troca eu receberia dez, a nota máxima, até o final do ano. Naquele momento eu percebi a individualidade e o talento e tive um vislumbre do destino.

Aos 15 anos eu fiquei fascinado pelos grandes artistas visuais do século vinte e percebi que neles tudo estava contido. Eu poderia entender o ser humano, o destino, a perecibilidade, a tragédia, o percurso da humanidade. Penso isso até hoje. Os artistas com os quais me identificava eram Pablo Picasso, Paul Klee, Kandinsky, Juan Miró, Constantin Brancusi e a arte totêmica, as obras pré-colombianas, e a arte tribal africana. Todos os dias eu passava horas nas bibliotecas da universidade. Foi um amor avassalador. 

Eu estava capturado. 

Paulo Dalacorte, colecionador de arte (de Getúlio Vargas) De que forma o senhor vê, nos dias atuais, o colecionismo de arte no Brasil?

JK — Acho, Dalacorte, a coleção particular, uma oportunidade de termos a guarda e conservação da arte de um ponto de vista não ortodoxo. A coleção particular pode ser o abrigo da originalidade.

A importância que o circuito artístico adquiriu é enorme e tem uma significação imensa para os costumes, o turismo, o comércio, a comunicação gráfica, a moda, a mídia, o valor financeiro dos espaços urbanos, a imagem institucional de cidades e países. Os acervos museológicos são formados por comitês altamente capacitados, mas conformados à história da arte conhecida e a especializações.

Valorizo muito a individualidade. As coleções não convencionais, a formação de acervos motivada pela intuição e a emoção, a paixão. É uma possibilidade de originalidade. E a história nos mostra que os museus, pinacotecas, institutos, fundações, chegam depois da consagração particular.

E, no Brasil, país de poucas e pequenas verbas para os museus, de tradicional descaso público com a cultura, o colecionador é, ainda mais, uma possibilidade das obras e artistas não desaparecerem.

Cosme Martins, pintor (do Rio de Janeiro) Percebo uma grande dificuldade na inclusão e valorização do artista negro no mercado de arte. Qual a sua opinião sobre essa questão?

 JK — Eu nunca vi. É possível que em uma encruzilhada perdida haja algum lobisomem que eu, andando em velocidade cruzeiro, nem reparei…

É uma informação, Cosme, que me chega por sua pergunta.

Imagino, é claro, que você tenha vivência do que me diz. Ainda que a sua história pessoal seja um percurso vitorioso de reconhecimento social e crítico. 

O que posso lhe dizer, Cosme, é que a crítica de arte, representada por tantas figuras libertárias, teve e tem uma atitude antirracista e a favor da plena liberdade e igualdade de direitos. Estou pensando em companheiros de jornada, para citar só alguns que já estão no Paraíso, como Mario Pedrosa, Quirino Campofiorito, Antonio Bento, Geraldo Ferraz, Walmir Ayala, Harry Laus, Jayme Mauricio, Marc Berkowitz, Mariza Bertoli, Pietro Maria Bardi, Radha Abramo, Roberto Pontual, Mario Barata, Arnaldo Pedroso D’Horta, Ferreira Gullar.

Estou descobrindo a questão por sua pergunta. Eu não sabia de discriminação racial no mercado de arte, no circuito de arte, na divulgação de arte, na acolhida da arte e de artistas nos meios de comunicação e, para ser franco, tenho dificuldade de acreditar nisso. Fui membro de júri em grande quantidade de salões de arte, fui curador em Bienais e membro de vários Conselhos em Bienais e museus, diretor de museu, curador das duas e recentes Bienais de Brasília, e nunca vi alguma atitude de racismo. As discussões, muitas vezes ásperas, foram sempre em torno de critérios teóricos de avaliação, questões filosóficas e conceitos sobre caminhos e atualidades da forma ou da linguagem. 

Tânia Carvalho, comunicadora  Sendo curador, como proceder face à apresentação  casual para avaliar a obra de amigos, sendo a mesma tecnicamente insegura?

 JK — Tânia, você valoriza o sentimento, a amizade, a relação humana. A amizade é uma dádiva, uma forma de amor, uma relação sublime. O meu critério, a minha norma absoluta de conduta, é a sinceridade. Certo ou errado numa avaliação, eu deixo claro a minha empatia com a obra ou a minha indiferença. Valoriza e reforça a amizade.

Como agir longe do coração? A sinceridade é tudo.

Numa apresentação em catálogo e em uma exposição específica, numa curadoria, numa conferência, podemos dizer a verdade, situar o artista e a sua obra em seu desenvolvimento particular e em relação a arte em geral. Nem sempre todos podem ser Picasso, talvez nem o próprio Picasso…

Naturalmente eu espero que os meus amigos sejam amigos por afinidade…

Paulo Gasparotto, jornalista e leiloeiro oficial Registro e acompanho as variações das cotações e preços de alguns artistas. Muitos assinalam quedas surpreendentes, depois de períodos em alta. Como vês estas mudanças?

JK — Paulo, quedas ou altas surpreendentes para um homem com o seu conhecimento e grande experiência pessoal, num mercado no qual se compra ou vende “linguagem”, é sinal de manipulação. Salvo situações específicas, como morte do artista, projeto de retrospectiva, redescobertas de artistas esquecidos, resgates históricos. Nesses casos, é óbvio que haja renovado interesse mercadológico. No cotidiano, em certos momentos, as variações podem ter explicações racionais. No mais, as vezes em que as coisas parecem estranhas, é porque são mesmo estranhas.

Téti Waldraff, artista multimídia Como as artes visuais, fixas ou móveis, de artistas brasileiros têm obtido ressonâncias na qualidade de vida e no cotidiano da sociedade brasileira?…

JK — Somos todos filhos da arte. A arte molda o psiquismo, forma a consciência. Essa é a história da arte e da humanidade. Mas não é tão rápido como se pensa… Na história brasileira a arte esteve associada à modernização e atualização dos costumes, do gosto, do pensamento, do modo de vida. E tem representado visualmente as mudanças de mentalidade. E, a considerar em sua totalidade, com a literatura, a música, a dança, o teatro, a importância da arte no Brasil é imensa. Para se ter noção de sua significação, basta ver como o totalitarismo sempre procura cercear, censurar, demonizar, enfraquecer a arte e substituir formas atuais por arremedos romantizados de formas do passado.

Retrato de autoria de Cirton Genaro

Miriam Tolpolar, artista plástica Neste ano tão atípico, percebemos muitas mudanças nas relações de trabalho, nas relações humanas e comportamentos. Como percebes a relação entre a produção artística e museus/galerias no mundo pós pandemia?

JK — Será, Miriam, que houve ou haverá mudança? 

Achei a sua pergunta sensível e abrangente. Certamente a tecnologia de comunicação e o processamento de dados e a evolução dos transportes, continuarão a modificar a essência dos circuitos de comunicação, desde a mídia até os museus. 

O que nos ocorre, de muitas maneiras, já estava enunciado na arte e nas narrações culturais. A arte sempre teve um lado profético. Se não for inteiramente profética, pois lida com o tempo. A tragédia atual já estava anunciada em muitos artistas. O que é o Decameron, de Giovanni Boccaccio, a obra de Kafka, senão a profecia da nossa impossibilidade pandêmica? E o expressionismo… Edvard Munch, Vincent van Gogh, Pablo Picasso, Marc Chagall, Hieronymus Bosch, Lasar Segall, Frans Krajcberg, Ismael Nery, Goeldi, Maria Bonomi… Obras diversas que fazem referências às situações apocalípticas.

Penso que o símbolo cada vez mais será percebido pelas pessoas. Cada vez mais a arte será a referência das pessoas. Entretanto, não me parece que haja uma alteração profunda em função da pandemia. O efeito imediato, e vale para todas as atividades, é a percepção de que a humanidade é uma só e todos os países são membros de uma imaginária federação mundial.

Quem sabe, contudo, haverá um efeito inesperado. A pandemia, a percepção da finitude, talvez leve muitos artistas a preferirem um mergulho individual em busca do self e da individuação e a menos investimento emocional em explicar as questões socioculturais da nossa época. E, fatalmente, os museus e galerias e pensadores acompanharão esta renovada proposta artística. O futuro, neste caso, cada vez mais, será o artista e a sua obra.

Magna Sperb, artista multimídia (de Novo Hamburgo): As pessoas sempre me falam: a arte de hoje, contemporânea, é muito mais difícil de entender do que a arte de antigamente. O senhor concorda?

JK — Não concordo, Magna.

Certamente uma arte marcadamente figurativa dá a sensação de que é entendida com mais facilidade, em especial quando contemplada 500 anos após a sua realização. Há uma sensação romântica… 

Por outro lado, uma arte assumidamente naturalista, como a pop art, que reproduz ou reintroduz objetos de consumo em massa, como embalagens e instrumentos cotidianos como garfos e facas, ou agrega cadeiras, escadas, roupas, publicidade, ou semelhantes, parece mais fácil de ser entendida, mesmo quando há pouco a ser entendido. Ou de não ser entendida, pois o público procura o entendimento onde ele não está.

Sempre existiram vários níveis de entendimento. Com a comunicação em massa as pessoas têm a ilusão de que entendem… Nem entendem, nem deixam de entender. Perceber é individual. A arte tem a característica de ser um núcleo de significados e o seu entendimento depende do psiquismo de cada um. O símbolo tem níveis de entendimento quase infinito. 

Estamos falando da arte histórica, pois é a ela que a pergunta se refere. No que toca a arte totêmica, devido à complexidade de sua relação com o seu público, devido ao seu caráter central e espiritual na existência desse público, a questão não se situa no entendimento, mas na autenticidade do objeto criado.

Ivan Pinheiro Machado, editor e artista plástico O que você acha do atual cenário de fragmentação dos meios de divulgação da criação artística? Estamos avançando ou regredindo, como criação/produção e mercado de arte?

JK — Estamos em franco e acelerado declínio. Em regressão a zero. Por equívoco, por ojeriza à cultura, ou por atitudes meramente autoritárias, interrompemos um percurso magnífico em que tivemos intelectuais brilhantes, grandes humanistas, que ajudaram a dar fisionomia à nossa arte, respeitabilidade à nossa produção cultural, criaram novos paradigmas de entendimento da nossa arte e a exigência de participação da nossa arte na vida pública. Tudo isto parece perdido. Ou está perdido. Este tesouro, a sabedoria e o talento que o Brasil produziu, onde está?

Ivan, para mim, a sua pergunta é fundamental e possibilita o entendimento do Brasil e da cultura no Brasil. Os nossos veículos de comunicação, diante do avanço tecnológico dos meios de comunicação, optaram por eliminar a inteligência e a sensibilidade de seus quadros. Justamente o que tinha custo insignificante e possibilitava a individualidade dos veículos. Hoje a pauta é tão idêntica em todos eles que não é preciso ler senão um… E é uma pauta estreita: esporte, política, economia…

Acho uma perda irreparável. Nós tínhamos filósofos, críticos de arte, ficcionistas, poetas, pintores, dicionaristas, folcloristas, escrevendo sobre os nossos artistas e sobre a arte que se fazia no Brasil. A imensa riqueza e a multiplicidade e diversidade da arte brasileira devem à esta plêiade o seu reconhecimento e valorização. Hoje vivemos um evidente retrocesso. Culturalmente é um desastre, é difícil recuperar o que era tão dinâmico, excitante, lírico; é uma regressão à zero.

Retrato de autoria de Siron Franco

Sergius Gonzaga, professor e crítico literário Entre os anos 60 a 80, a arte produzida por gaúchos teve larga repercussão nacional. O que explicaria, hoje, a relativa ausência de artistas do Sul em posição de destaque no atual cenário brasileiro?

JK — Intrigante pergunta, Sergius. Eu a leio com certa tristeza. Essa questão é essencial. Na década de 70, em palestra que dei no Ateliê Livre, me fizeram uma pergunta semelhante, praticamente igual à que você me faz. Cerca de 50 anos depois a pergunta continua atual.

A qualidade da arte produzida no Rio Grande do Sul sempre foi elevada. A arte habita nas cidades e ela é percebida por exposições, catálogos, artigos, textos críticos, ensaios abrangentes, livros, mostras temáticas, mostras antológicas, participação em salões de arte e grandes eventos artísticos coletivos. O que obviamente torna necessária a participação do poder público. Em muitas instituições que dirigi ou participei mostrei a arte de artistas gaúchos. A receptividade, em todas as ocasiões, foi muito boa. O RS tem uma diferenciada história cultural e sempre teve artistas muito destacados.  É perfeitamente previsível que tenha artistas originais e brilhantes. Hoje o RS continua a ter artistas de alto nível. Mas, é evidente, sem trocadilho, eles devem ser vistos. 

Paulo von Poser, artista multimídia (de São Paulo) Conheço teu bem editado livro Mestres do Desenho Brasileiro. Imagino que você conheceu e acompanhou a produção de muitos artistas na intimidade. Quais eram os mais “apaixonados” e inspirados pelo desenho em seus processos criativos?

JK — Paulo, só um artista faria essa pergunta. Você está em busca da essência e dos limites. Paulo, se entendermos o desenho como aquilo que designa, contorna, torna visível o ser, torna inteligível, distingue o ser do não-ser, a sua pergunta dá vontade de escrever um novo livro sobre o desenho. Sempre estamos um passo atrás do entendimento. O que nos obriga a escrever um novo texto a cada santo dia.  

Sem pesquisar, ao sabor da escrita, da memória e do momento, numa entrevista, podemos alinhar artistas para quem o desenho é indispensável: Siron Franco, Milton Dacosta, Sérvulo Esmeraldo, Aldemir Martins, Bruno Giorgi, Candido Portinari, Amilcar de Castro, Israel Pedrosa, Henrique Léo Fuhro, Livio Abramo, Carlos Scliar, Miguel Contijo, Magliani, Vasco Prado, Glênio Bianchetti, Luis Paulo Baravelli, Wesley Duke Lee, Vicente do Rego Monteiro, Roberto Magalhães, Rubens Gerchman, Anna Bella Geiger, Livio Abramo, Maria Bonomi, Anna Letycia, Yukio Suzuki, Yutaka Toyota, Megumi Yuasa, Danúbio Gonçalves, Roberto Magalhães, Liana Timm, Carlos Tenius, Gustavo Nakler, João Câmara, Gilvan Samico, Luise Weiss, Marcello Grassmann, Octávio Araújo, Gregório Gruber, Ivald Granato, César Romero, Mario Cravo Jr., Carybé, Chanina, Franz Weissman, Glauco Rodrigues, Rubens Matuck, Alfredo Volpi, Aldo Bonadei, Flávio de Carvalho, Ismael Nery, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Inos Corradin, Niobe Xandó, Rubem Valentim, Rodrigo de Haro, Geraldo de Barros, Ubi Bava, Judith Lauand, Hercules Barsotti, Arthur Luiz Piza, Lothar Charoux, Cirton Genaro, Zorávia Bettiol, Abraham Palatnik.

Paula Ramos, jornalista e curadora (de Berlim) Como percebes e defines hoje a tua abordagem como crítico? Em décadas de atuação, acreditas que ela mudou? Se a resposta for “sim”, o que marcou essa mudança?

JK — Certa vez, há alguns anos, eu estava no magnífico ateliê em Pituaçu, Salvador, de Mario Cravo Jr., então se aproximando dos seus 90 anos. Éramos íntimos. Olhávamos as suas esculturas eólicas deslizar no pequeno lago. E ele observa que a minha maneira de escrever, o próprio estilo, havia mudado muito. Respondi de pronto: é que agora, Mário, tenho condições de aprender …

O Mário ficou deslumbrado e insistiu que eu fosse à sua casa. Ele, há muito pouco tempo, dissera a mesma frase para Lúcia, sua mulher, e ela, até este momento, pensava que era uma piada, algum tipo de ironia… Ele queria que eu testemunhasse que não tem fim o aprendizado…

 Paula, uma pesquisadora tão cuidadosa como você, certamente quer saber do percurso. Nesses últimos 50 anos o mundo mudou, e eu também mudei. Penso que, no fundamental, sou o mesmo. Com quase 60 anos de vivência e de estudo a mais. E com a firme convicção de que a arte me ensina. Ela me conduz.

Há algumas coisas que não mudaram em mim. A mesma paixão. A mesma esperança. Uma curiosidade que me parece maior hoje do que a que existia na adolescência. O mesmo prazer no contato com a arte.

A mesma convicção no caráter universal do símbolo, e a mesma independência e crítica ao poder (grupos, governos, ideologias). A favor do individualismo e a suspeita em relação aos grupos e corporações e as suas práticas de intimidação. Eu sempre fui “kafkanista”… A minha primeira crítica foi editada pelo Mario Quintana, e era um comentário sobre Kafka. Continuo a pensar no difícil convívio entre a individualidade e a organização social.

E tenho sempre presente a consciência trágica do destino humano: as dádivas da harmonia, da forma, da originalidade, e a consciência da perecibilidade.

Em tantos anos tornei-me tolerante com o ser humano e a sua produção. O que me faz ainda mais curioso sobre as mais diversas manifestações culturais. Os novos materiais de trabalho, as tecnologias de fazer e multiplicar, a diversidade de espaços urbanos, a capacidade de processar dados e imagens, as novas ideias sobre civilizações diferentes da nossa, tudo isso pressupõe e possibilita uma aventura lúdica e uma invenção sem fim. Cada vez mais, em um exercício diário nessas décadas de trabalho incessante, procuro me abster de “pensar” antes de contemplar. Amo quando a obra me sugere uma maneira de perceber. Eu sou um místico sem religião. Não posso recusar mesmo os fiapos da iluminação. Hoje sou infinitamente mais cuidadoso com o que escrevo e falo, o meu acervo de informações é qualificado, e ele me faz silencioso e amoroso.

A mudança que eu observo em mim, não brusca, mas gradativa, é que cada vez mais, a arte, as manifestações artísticas, me ensinam mais.

No início, eu tinha muito de repórter, de não querer deixar nenhum assunto no silêncio. Tudo era uma polêmica, um debate. Ainda sou polêmico, entretanto, com menos ênfase; o meu sentimento do tempo é outro, menos atualidade, mais eternidade.

André Seffrin, crítico literário (do Rio de Janeiro) A criação literária em você é nuclear, mesmo no exclusivo horizonte do ensaio e da crítica de arte você nunca a dispensou. Quando e como o ensaísta tocado pela poesia e pela prosa poética resolveu abraçar a crítica como ofício contínuo?

JK — André, caríssimo, a sua pergunta é a biografia mínima que eu gostaria de um dia escrever a meu próprio respeito. O milagre da palavra, e o universo que ela contém de significados, sons, símbolos, ambiguidades, sempre me comandou. Fiz mais do que ensaios. Livros de contos, relatos, poemas, participei de antologias, mas praticamente guardei para mim essa produção. A minha é uma gaveta de fundo infinito.

Acredito que deveria ter aumentado a pauta. 

Acho que não escolhi conscientemente, fui levado pela correnteza. Ocorreu um fenômeno factual na minha vida. Eu, um tímido disfarçado, um silencioso, um recluso por vocação, fui convocado, convidado, me ofereceram lugares, mirantes de alta visibilidade. Assim foi na Tribuna da Imprensa, com o grande Hélio Fernandes. Assim foi no Jornal da Tarde, com o mítico Murilo Felisberto. E por aí em diante. Sempre me ofereceram e eu sempre aceitei. Era uma trilha ensaística.

Agora me empenho em terminar o meu livro de poemas Hai Kai, um imenso livro de relatos e terminei um novo volume de contos. Não sei a extensão da minha trilha, mas penso num livro de poemas em prosa, homenagem ao Baudelaire. 

Aposentei a minha infindável, infinita gaveta. 

Luís Augusto Fischer, editor Como foi tua formação inicial condições culturais da família, escola, comunidade. Teve relação com o Clube de Cultura? Acompanhou algo dos primeiros anos?

JK — O meu pai era um humanista com profundo respeito à criação cultural. E uma visão universalista dos caminhos humanos. Era um homem silencioso, traumatizado, pois a sua mãe e irmãos foram assassinados pelo nazismo.  Isso me marcou definitivamente: a solidariedade e a ausência de preconceitos. Naturalmente eu respirava essa atmosfera. Éramos pobres. Mas eu li Balzac e Dostoiévski com 10 anos. 

O Clube de Cultura estava presente no meu imaginário. Eu era comunista aos 9 anos de idade. Aos 12, eu pertencia aos quadros do Ichud Habonin, movimento sionista-socialista. Sempre esteve presente em mim a identidade judaica. A dialética da cultura judaica é fascinante e me acompanha até hoje. 

Com 9 anos, na escola judaica, junto com outro menino, César Dorfman, organizamos uma greve contra a intervenção americana na Coréia. Uma farra! Impregnado pelo humanismo paterno eu era, principalmente, livre.



Luís Augusto Fischer, editor Que Porto Alegre era essa da tua formação? Aliás, quais os anos inicial e final da tua vida porto-alegrense? No campo específico das artes visuais, quais eram as tuas experiências e possibilidades?

Porto Alegre, nas décadas de 50 e 60 — eu sou de 1941 —, era uma cidade encantadora. Tudo me parecia lindo. O cafezinho com um cálice de mineral gasosa. O Theatro São Pedro, o mercado público com o cálice de nata batida com sorvete, os vestígios da cultura ibérica, a biblioteca pública, as histórias correntes da vida campestre, a presença de escritores, poetas, atores, gravadores, pintores. A ênfase na música erudita. O jornal “Correio do Povo”, conservador, que eu lia de ponta a ponta. A variedade de comidas típicas. Um deslumbramento.

Com 16 e 17 anos eu comecei a conviver com artistas plásticos: Danúbio Gonçalves, Vasco Prado, Zorávia Bettiol, Paulo Porcella, Henrique Léo Fuhro, Carlos Tenius, Alice Soares, Ado Malagoli… Não me imaginava escrevendo sobre arte e artistas. Mas gostava das suas entrevistas por escrito, pois, a partir do estilo de cada um, eu sugeria e ajudava nas respostas… E a biblioteca da Faculdade de Filosofia, para mim, era uma vivência extraordinária.


Luís Augusto Fischer, editor Como ocorreu a tua ida para São Paulo? Por que aconteceu? E como foram os teus anos iniciais por aí? Que contatos e aprendizados foram decisivos?

JK Por avaliação do momento, após alguns episódios traumáticos, pensei que seria bom mudar de ares. Provavelmente eu estava equivocado. Em 1966 fui morar no Rio de Janeiro. Ainda era uma cidade cosmopolita, culta, sensível, com uma vida intensa e sensual. Mesmo a sombra do totalitarismo não havia destruído o espirito da cidade. E eu tive a sorte de ser bem acolhido, de receber diálogo, trabalho, amizade.

Em 1973, mudei para São Paulo. Eu achava uma cidade feroz, competitiva, sob muitos aspectos uma cidade fechada. Mas com capacidade de produção. Este aspecto me seduziu, pois o meu temperamento tem este componente, eu quero fazer, tornar concretas as minhas intuições.

No Rio de Janeiro, na primeira semana na cidade, escrevi e doei uma página formato de jornal para alguns artistas plásticos, com as suas ideias, porque queriam participar do debate. Ela foi publicada na Tribuna da Imprensa.  Os artistas incluíram o meu nome na assinatura. Na segunda vez em que me pediram eu fui escrever na própria redação. Um homem formal, fisionomia séria, o Hélio Fernandes, editor e proprietário do jornal, perguntou quem eu era, relacionou com a página já publicada e, em seguida, em sua sala, lugar quase inacessível, me ofereceu uma coluna diária e uma página semanal. E me surpreendeu com uma tirada: “você, se não se corromper, será o melhor do país”.

Em São Paulo, na minha primeira semana na cidade, fui tomar uma bebida num hotel com o meu amigo Ailso Braz Correia. Lá um dos diretores do Grupo Estado, Joaquim Mendonça, me raptou por alguns minutos e me apresentou o Murilo Felisberto, editor chefe do Jornal da Tarde. Murilo me ofereceu ser o crítico do Jornal da Tarde. Recusei, mas ele insistiu, me pediu uma matéria de duas páginas com chamada de capa, eu fiz a gentileza e trabalhei no Jornal da Tarde por 19 anos. O Murilo era um encantador de serpentes.

Retrato de autoria de Newton Mesquita

Sergio Faraco, escritor Tuas críticas literárias primam pela riqueza e precisão da linguagem e, sobretudo, pela sagacidade, como se tivesses decifrado as emoções do autor enquanto ele escrevia. Mas são raríssimas. Por quê? A literatura te ganha tão menos do que as artes plásticas?

JK A sua pergunta, Faraco, é um estimulo, além de uma revelação. Fiquei curioso. Espero estar, cada vez mais, próximo da literatura. Mas, talvez, eu esteja mais perto do que parece até a mim. Nos últimos anos tenho escrito aforismas, anotações, pequenos ensaios. Estou escrevendo alguns ensaios sobre escritores que me emocionam e são fundamentais na minha vida cotidiana. De repente, tenho tido vontade de contar o que me comove na literatura. Deixará de ser um prazer secreto, será um novo diálogo. Não sei por que demorei tanto a voltar para casa e abrir todas as janelas.

Escrevi há pouco um ensaio para um livro delicadíssimo de Marco Lucchesi sobre o seu diálogo com Israel Pedrosa. E um ensaio para o livro 120 noite de Eros, de Floriano Martins, um volume originalíssimo sobre as mulheres e o surrealismo.

Tenho certa ordem de preferência nesses meus próximos ensaios sobre literatura. Penso em dar prioridade para “Um artista da fome”, de Kafka. Em seguida “El Aleph”, de José Luis Borges, e finalmente sobre o Golem, a partir do “O Golem”, de Isaac Bashevis Singer. E, dos nossos, tenho vontade de escrever sobre Nelson Rodrigues, apresentando-o como um moralista clássico perdido no século vinte.

Não me acanho, na minha idade, em fazer planos. 

Renato Rosa, marchand (Rio de Janeiro) O senhor poderia nos falar de sua apreciação pela obra dos escritores Borges e Kafka? Houve algum fato envolvendo especialmente essas admirações? Seria possível citar outros autores no mesmo grau?

JK Jorge Luis Borges é o escritor que mais me comoveu na segunda metade do século vinte. Ele costumava escrever e declarar que a sua ideia do Paraíso era uma biblioteca. Pode ser, desde que nesse Paraíso tivesse Borges. Ele é o escritor que falava na espiritualidade e no misticismo e era agnóstico… É uma época em que têm muito crédito os que narram a iluminação sem tê-la experimentado… 

Nenhum escritor, como ele, teve uma vida tão literária. A narração de seus dias é a descrição de suas leituras, pensamentos e escritos. O seu conto sobre arte, “Utopia de um homem que está cansado”, é simplesmente a mais intrigante história sobre arte já escrita. O seu ensaio sobre Dante, “O último sorriso de Beatriz”, é simplesmente um dos mais tocantes e belos ensaios escritos no século vinte. O conto “El Aleph” reinaugura a ficção cientifica. E, é tão belo, no seu epílogo em O livro de areia ele diz sobre o conto “O Congresso”: “O início opaco quer imitar o das ficções de Kafka”. Não é belo um artista homenagear outro artista?

E nos liga ao Franz Kafka. Em Kafka é impossível chegar ao fim. Entre um ponto e outro ponto existe uma infinidade de pontos. A vida dos homens é impossível. Ele nos diz que entre o homem e a organização, entre o homem e a estrutura, está a infelicidade. Em Kafka todas as coisas são mediadas até a eternidade. Penso em Kafka como o último profeta judeu. Mais do que Freud. Em Kafka há o mistério insondável e belo da metáfora transformada em ficção. Muito jovem eu escrevi sobre Kafka. E passei o resto da vida fazendo anotações para ampliar a minha visão. Quanto mais cresci, mais me apaixonei por Kafka.

O conto “Um artista da fome” é a história de uma linguagem que se perde. Uma arte que se finda porque não há identidade entre ela e a juventude atual. O defensor é a memória viva da arte que já não existe. Quando este homem morrer com ele terá morrido uma civilização. É um paralelo com Borges.

Existem muitos autores de altíssimo poder artístico e literário. Obviamente a pergunta se refere à minha afinidade. Autores amados. Existem muitos graus de amor. E existem muitos momentos na vida de um leitor, como é o meu caso, em que os escritores voltam ao meu aconchego. Mas penso em que seria difícil ter uma vida plena sem Sófocles, Salomão, Bashô, Moritake, William Shakespeare, Fernando Pessoa, Raissa Cavalcanti, Miguel de Cervantes, Machado de Assis.

Fernando Duval, artista plástico (do Rio de Janeiro) A arte, sabemos, serve a muitos motivos. E válido usar Arte como suporte para divulgar uma “ideia”?

JK Fernando é inteiramente válido uma arte para divulgar uma ideia. Depende do que é a arte e do que consideramos uma ideia. “Guernica”, de Pablo Picasso, a obra mais famosa do século vinte, é uma arte que nasce da indignação. Mas se a ideia é só um slogan e se a arte é só uma ilustração, ela simplesmente é de baixa qualidade. Entretanto, se entendermos a ideia como a forma de uma intuição e a arte como a invenção de uma forma e de relações entre formas, então, meu amigo, a arte será deslumbrante.

Ivette Brandalise, jornalista Vês alguma possibilidade de salvação e manutenção da Cinemateca Brasileira? O que vai ser do acervo?

JK Ivette, a sua pergunta trata de uma questão fundamental. A guarda, conservação e estudo da criatividade brasileira. A perspectiva é ruim para o futuro da Cinemateca. O que será de seu acervo tão precioso? Já está se deteriorando. Eu gostava de passear no seu lindo prédio. Organizei muitas exposições naquele espaço privilegiado. Como fica bem a arte atual naquela estrutura tradicional.  Infelizmente vivemos num país voltado para a regressão. A tristeza de nossas instituições com verbas minúsculas! No mundo, em nossos dias, a criação de museus e a sua programação, colocam cidades no mapa. Revitalizam o espaço urbano. É da sabedoria ecumênica que os museus são as catedrais do nosso século.

Retrato de autoria de Antonio Cabral

Paulo Wainberg Jacob Klintowitz, como relaciona a sua história pessoal, o judaísmo e a arte?

JK Eu me acho profundamente judeu. Faz parte da minha identidade. Estudei e estudo a ética judaica, a tradição filosófica e especialmente a sua tradição dialogal. Penso que ela favoreceu o surgimento de Freud e de Harold Bloom. Também me interessam as suas histórias e lendas do cotidiano. Mas não sou religioso, no sentido tradicional. Não sou como Freud, um judeu sem Deus, mas sou um judeu místico sem a ortodoxia religiosa. Então essa impregnação faz parte do meu ser.

Por outro lado, a família do meu pai foi assassinada pelos nazistas. Isso incluiu a minha avó. É importante que eu honre essa memória. Ainda pretendo escrever um Kaddish por essa avó que não conheci, mas com quem falei na minha noite escura. Allen Ginsberg escreveu um Kaddish por sua mãe e a sua demência e o seu convívio. Eu, se conseguir, escreverei sobre a ausência.

Meu pai não era religioso, era um humanista, um universalista. Eu penso que descendo dele. A arte para mim tem sido, desde sempre, uma fonte, a penetração no espaço-tempo sempre renovado, o convívio de todos os tempos. Quem, de mente livre, não encontrará na arte atual os vestígios da arte totêmica? Não sei se este amor à projeção no tempo, este desejo de penetrar nas vertentes principais da humanidade, terá alguma coisa a ver com a vivência profética do povo judeu. Se for, poderemos dizer que o mundo se tornou judeu, pois esse amor a esta viagem sem fim, encontramos em todos os povos. Somos nautas desse oceano desconhecido.

Só posso relacionar a arte na minha existência como uma correspondência ao que eu sou. Uma parte dessa história, na perspectiva étnica que você coloca, é a que eu lhe relatei agora. É incompleta como narração do meu percurso, não é toda a verdade, mas é verdade.

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