Entrevista

Kristina Michahelles – Entre as duas margens

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Kristina Michahelles – Entre as duas margens Kristina Michahelles (Foto: acervo pessoal)
A tradutora do alemão Kristina Michahelles nos conta aqui como dirige a Casa Stefan Zweig, na cidade de Petrópolis, relata suas experiências e preferências com a tradução e ainda lembra dos tempos de jornalista, na queda do muro de Berlim.

Stefan Zweig, Rede Globo, a Avenida Borges de Medeiros, J. M. Simmel, a cidade de Petrópolis no RJ, o Muro de Berlim, o Fórum Social Mundial, tradução literária, o Grêmio, Angela Merkel – é preciso uma pessoa muito interessante para concatenar tudo isso em 40 minutos que passam voando. É o caso de Kristina Michahelles. Jornalista e tradutora, conheci-a na edição de 2014 da Oficina Vice-Versa, um workshop de tradução literária, realizada em Curitiba sob a excelente moderação dela e de uma colega nossa da Alemanha, Marianne Gareis. Após ela amavelmente aceitar meu convite para contar mais sobre a sua diversificada carreira na área da cultura, realizamos esta entrevista pelo Zoom, que conectou Porto Alegre e Rio de Janeiro em uma fria manhã de agosto. Segue a nossa conversa, que passeia por temas como tradução, literatura, difusão cultural, exílio e transformações sociopolíticas.

Parêntese – Obrigado por aceitar o convite. Poderias primeiro fazer um repasse sobre a tua carreira?

Kristina Michahelles – Primeiro queria agradecer o convite porque para mim é uma honra. Tenho uma tríplice carreira um pouco heterodoxa, como jornalista, tradutora e diretora de museu. E as três convergem. 

Como jornalista, comecei em 1979 – e também é heterodoxo, porque comecei na editoria de economia do Jornal do Brasil, depois fui para a revista Veja, depois para a Rede Globo, porque quis sempre experimentar as várias plataformas que existiam na época, que eram o meio escrito, a revista semanal (que já é outra abordagem) e a televisão. Na televisão eu passei também pela editoria de ciência, quando caiu o Muro de Berlim. Sendo bilíngue e com os dois passaportes, falei: “Que que eu tô fazendo aqui no Brasil? Sentada num buraco” – a redação da Rede Globo, por incrível que pareça, era um subterrâneo meio cavernoso – “e olhando a coisa acontecendo em Berlim lá nas telas da televisão…”. Falei: “Tenho que ir para lá”. A Veja estava procurando um correspondente, então fui para lá, passei um ano e meio. Voltei, e já fui para outro desafio, que era ser editora de um caderno semanal de meio ambiente, preparatório para a Rio-92. Depois disso é que eu realmente comecei a minha ida para a literatura. Em 1994, o Brasil foi país-tema da Feira de Frankfurt pela primeira vez (depois voltou a ser em 2013). Comecei trabalhando para isso fazendo minibiografias de autores brasileiros e acabei indo para a Feira de Frankfurt. Aí, em 95, eu comecei a minha carreira de tradutora – digamos assim, a minha segunda existência. Essa carreira tem a idade da minha filha, ou seja, 24 anos. Comecei a traduzir sem muito compromisso, ao lado da minha atividade jornalística – eu era então colunista de meio ambiente. Assim eu fui levando as duas carreiras juntas, e em 2006 começou a minha terceira vida, que foi como diretora de museu – aos poucos também, sem nenhum planejamento. Hoje, sou diretora da Casa Stefan Zweig, em Petrópolis. E nisso eu estou cada vez mais metida na pesquisa dos exilados da Segunda Guerra Mundial, ou seja, tem ali uma quarta vida coexistindo, que é a de pesquisadora. Também nada planejado, foi tudo… acontecendo. 

Turistas alemães na Casa Stefan Zweig, 2017 (Foto: acervo CSZ)

P – Tua história profissional está entrelaçada umbilicalmente com a língua alemã. Como começou tudo isso?

KM – Tive um enorme privilégio – e me considero realmente uma eleita – porque fui bilíngue desde o berço – umbilical, como você disse. Cresci com as duas línguas e inconscientemente pratico tradução e versão desde que comecei a entender o que são palavras e o que é significante e significado. Por isso, talvez, nunca tenha almejado ser tradutora: foi a minha própria biografia que me empurrou para esse lado. Meu pai era alemão, nascido em Hamburgo. Minha mãe era de São Paulo, porém de família alemã, então de parte de mãe eu sou da quarta geração no Brasil.

P – Tu tens uma ligação forte com o Instituto Goethe do Rio de Janeiro, correto?

KM – Meu pai foi a vida toda conselheiro do Goethe – na época ainda Instituto Cultural Brasil-Alemanha, fundado, aliás, por um exilado, Willy Keller, que também teve passagem pelo Sul –, e a família sempre apoiou fortemente as instituições culturais. Era uma dicotomia: eu vivia a realidade brasileira com o imaginário dos livros de contos da Alemanha etc. O Goethe foi superimportante na minha adolescência para a minha formação cultural (isso infelizmente é algo que está se perdendo um pouquinho), ou seja: para além do ensino da língua, era muito forte na realização de eventos que me marcaram bastante na década de 70 – música dodecafônica, Stockhausen… O diretor depois foi Hans-Joachim Koellreutter, outro exilado (a gente vai falar muito de exilado nesta entrevista, e da importância deles na intermediação cultural). Então, o Goethe foi importante para a minha formação cultural… a biblioteca – sempre muito rica, muito farta – e agora, ultimamente, como parceiro importante da Casa Stefan Zweig.

P – A biblioteca do Goethe de Porto Alegre foi fundada pelo Herbert Caro, não?

KM – Exatamente, Herbert Caro. Não sei se foi fundador, mas foi durante muitos anos, acho que décadas, o fiel guardião daqueles livros. Tem uma piadinha que nós contamos na nossa série, Cantos dos exilados (quem conta é o Peter Naumann). O Herbert Caro diferenciava os usuários quando eles perguntaram por Simmel: ele já desclassificava os que queriam o Simmel da literatura de aeroporto [Johannes Mario] dos que queriam o grande filósofo [Georg].

P – Então, conta um pouco sobre as atividades da Casa Stefan Zweig e teu trabalho lá, e como veio a ideia.

KM – A Casa Stefan Zweig é a última morada de Stefan Zweig com sua segunda mulher, Lotte, em Petrópolis, a uma hora e pouco do Rio, para onde se mudaram em setembro de 1941 e onde moraram apenas meio ano, coisa que pouquíssima gente sabe (todo mundo acha que o Stefan Zweig morou cinco, dez anos no Brasil, mas não ficou nem seis meses naquela casa). Depois que ele morreu, essa casa (era alugada) ficou em mãos de particulares, foi vendida, era alugada, e esteve à venda em 2005, quando um grupo em torno do biógrafo e grande jornalista Alberto Dines (biógrafo de Stefan Zweig) resolveu comprar a casa. Foi comprada em 2005; em 2006, fundou-se uma associação sem fins lucrativos, a Casa Stefan Zweig, com vistas a fazer daquele lugar um museu em homenagem a Stefan Zweig e a todos os exilados que vieram, como ele, na Segunda Guerra Mundial. Exilados que tiveram que fugir e aqui fizeram sua nova vida. Começamos a fazer a Casa Stefan Zweig na Internet, como se fosse um museu virtual, enquanto andavam todos os problemas de licenciamento e a reforma da casa, concluída em 2012. Abrimos as portas em julho de 2012, portanto estamos há oito abertos ao público. Nesses oito anos, a Casa Stefan Zweig firmou-se como um centro cultural, um lugar que atrai turistas tanto estrangeiros quanto brasileiros (nós temos mais ou menos um terço de turistas estrangeiros) e como memorial do exílio. Além disso, temos outra missão muito importante, que é a visitação escolar, ou seja: levar aos jovens, principalmente de escolas públicas de Petrópolis, que não sabem nem escrever aquele nome gringo complicado, as ideias humanistas e pacifistas do Stefan Zweig. Além da visitação escolar, que é um programa cada vez mais forte, temos atrações culturais, concertos, exposições, palestras… e a visitação normal, porque aquele lugar tem uma magia. É uma casa pequenininha, não tem nada de muito especial, mas, de alguma forma, o fato de aquilo ter simbolizado o suicídio, esse ato muito desesperado de um casal no meio da guerra, torna aquele lugar muito… tem alguma coisa especial. Não sei explicar, mas todo mundo sente a mesma coisa. E não é para o lado negativo, nós não enfatizamos essa coisa negativa do suicídio, ao contrário: tentamos elevar muito a bandeira do humanismo, do pacifismo, das ideias, da inquietação intelectual do Stefan Zweig em torno das biografias de gente muito incrível, que vai de Erasmo a Fouché etc. Então temos ali uma plataforma a partir da qual tem milhares de coisas a fazer.

Stefan Zweig em cartão postal, 1920 (Foto: acervo CSZ)

P – Uma vez tu me disseste que havia o projeto de fazer lá uma residência para tradutores, não?

KM – Nós temos vários sonhos ali. Na inauguração da Casa, o Alberto Dines disse: “Isso aqui é o produto de um sonho de um bando de malucos, e deu certo”. E realmente deu certo. Os outros sonhos são: 1) construir uma biblioteca – nós temos bastante livros –, mostrar que o livro físico não é um produto do passado, que ele é muito atual ainda; e 2) sim, fazer uma residência, seja de escritor, seja de tradutor. Mas não temos ainda a infraestrutura para isso. Agora, sonhar não é proibido, nem hoje, nem nunca – nunca vai ser. Então continuamos, sim, com esse sonho. Tem outro sonho: o de fazer daquela casa e da cidade de Petrópolis a capital mundial do xadrez. Um sonho arrogante? Pode ser. Mas por que não? Virtualmente é possível você conectar escolas do mundo inteiro e fazer campeonatos mundiais de xadrez. São vários sonhos… a gente chega lá.

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