Entrevista

Lelei Teixeira – Viver para contar

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Lelei Teixeira – Viver para contar As irmãs: Marlene e Lelei Teixeira (arquivo pessoal)

A entrevista com Lelei Teixeira parte do livro que ela publicou há pouco. Histórias sobre família, jornalismo e arte, que foram lançadas no papel a partir das vivências da autora com sua irmã. 

A jornalista aqui entrevistada é muito conhecida no meio cultural de Porto Alegre e do estado. Lelei Teixeira já andou em várias redações e costuma – costumava, antes da pandemia – frequentar muito do ótimo que a cultura oferece na redondeza.

Há alguns meses lançou um livro, E fomos ser gauche na vida (Pubblicato Editora), que não precisa de explicação, mas que cresce quando se sabe que foi escrito pela Lelei como resgate de um compromisso que tinha com sua irmã Marlene – daí a primeira pessoa do plural do título. A Marlene faleceu e a Lelei viveu para resgatar o compromisso de fixar por escrito as lembranças de lutas, conquistas, tristezas e alegrias que viveram.

O livro está circulando muito e com grande impacto, pela qualidade humana das reflexões, por ser um livro de memórias compartilhadas entre duas irmãs muito próximas (Marlene era professora, Lelei é jornalista), por ser muito bem escrito e por conter uma série de serenas reflexões da autora sobre seu nanismo. Num tempo como o nosso, em que dificuldades, limites e preconceitos estão sendo examinados com lupa, o livro é uma grande lição. Mas lição dada com sabedoria, sem dedo na cara, com um carinho que mesmo o leitor mais distante vai sentir, ao virar as páginas.

A entrevista foi feita por email, na virada de novembro para dezembro de 2020. E é uma grande alegria para nós.

Luís Augusto Fischer

Parêntese – Teu livro é uma preciosa memória, não só pessoal, mas também de geração e do estado. Queria saber como está sendo a repercussão de leitura. Tens tido algum retorno já, passada uma semana ou pouco mais do começo da circulação do livro?

Lelei Teixeira – Antes de tudo, quero agradecer aos parceiros que deram este visual tão bonito ao livro – Mariane Rotter pela expressiva foto da capa, Amaro Abreu pelos desenhos das capas internas, tão significativos, Vitor Mesquita, da Pubblicato, pela edição. E agradecer a vocês pela oportunidade de falar para a Parêntese. Sou leitora desde o início. Vamos ao livro! Os retornos são incríveis. Estou impressionada e feliz com a repercussão, os pedidos e as leituras, desde o momento em que coloquei o livro na rua e avisei pelo whatts e pelo face que já estava nas livrarias Bamboletras, Baleia e Isasul em Porto Alegre, e na Miragem, em São Francisco de Paula. Jamais imaginei que teria retornos tão rápidos, tão afetivos e estimulantes em pouco tempo. Retornos vindos não apenas da minha família, de amigos e da minha geração, mas de pessoas bem mais jovens do que eu, de colegas de trabalho que não vejo faz algum tempo, de pessoas que não conheço pessoalmente e que moram em outros países. A emoção é muito grande.  

P – O livro vive citando parentes teus: dá a impressão de que são milhares de pessoas! Sempre tem primos, tios e agregados os mais variados, entrando e saindo de cena. O livro é dedicado aos sobrinhos-netos. A pergunta é: como o livro está circulando entre eles? Houve alguma surpresa para os leitores-parentes? Eles têm falado algo a respeito?

LT – Não digo milhares, mas são muitos parentes mesmo! E de uma convivência intensa. Meus avós maternos, que me criaram e com quem vivi até a adolescência, tiveram sete filhos, cinco mulheres e dois homens, que, por sua vez, também tiveram muitos filhos. E vivíamos juntos e misturados porque a casa desses avós era a casa de todos. Um porto seguro, barulhento e multifacetado, onde cabia tudo. Sempre havia um cantinho para quem chegava e os netos viviam lá. Minhas tias que eram professoras, e precisavam sair para trabalhar, deixavam os filhos na casa dos pais com a maior naturalidade e a vida seguia seu curso. Mas hoje só tem uma irmã da minha mãe viva, a tia Clori, fundamental na minha criação, que está com 93 anos. E a tia Dilma, 94 anos, que foi casada com um dos irmãos da mãe, o tio Plínio, de quem falo no livro porque foi na casa deles em Novo Hamburgo que Marlene ficou para fazer o Científico e eu, pouco depois, para fazer o Clássico, no Colégio Estadual 25 de Julho. O livro está emocionando muito a família, meus irmãos, minhas primas e primos. É um pouco a história deles também e os retornos são maravilhosos.   

P – Outra presença constante é a dos amigos, que também são “um bando e muitos outros”, como tu dizes, lembrando a letra do Bebeto Alves. Na composição do livro eles intervieram? Ajudaram? Atrapalharam? Tu tiveste alguma restrição a contar histórias envolvendo algum amigo? Por quê?

LT – Tive uma infância de muito convívio com crianças da minha idade, brinquei muito e vivia solta, ainda na Jaquirana, onde nasci. Quando fui para a escola e nos mudamos para São Francisco de Paula para seguir os estudos, já não foi tão fácil. Eu não tinha ainda noção do nanismo. Na pré-adolescência, tudo o que eu queria era ter amigos. Apesar da timidez, sempre fui muito procurada porque era uma excelente aluna e estava sempre pronta para ajudar quem precisasse. A grande rede de amigos que nós criamos possibilitou que abríssemos asas para a vida. Depois de São Chico, Marlene foi estudar em Novo Hamburgo, como já falei, e em Caxias do Sul. Eu passei por Novo Hamburgo e depois Porto Alegre. E foi em Porto Alegre que ficamos e vivemos um período intenso, de muitas descobertas, fundamental para nós duas. O movimento hippie ainda reverberava, os tempos eram outros e nossa casa estava sempre aberta. Vivemos algumas decepções, normais porque éramos muito ingênuas, mas fizemos amizades incríveis para toda a vida. E a ida da Marlene para a Bahia, com o nosso primo e grande parceiro Júlio, foi a grande revolução.

Lelei Teixeira (à dir.), em Paris, com Marlene. (arquivo pessoal)

P – O livro é escrito à sombra da morte da tua irmã, Marlene, que era tão próxima de ti que todos, creio, conheciam sempre vocês duas junto. Dá pra dar uma ideia para o leitor da falta que ela faz? 

LT – Marlene e eu moramos juntas já adultas em Porto Alegre, quando a família toda veio pra cá. Conto no livro como isso aconteceu. Ela veio de Caxias do Sul, onde iniciava o curso de Letras, e foi para a PUC. Eu fui fazer o básico da Unisinos no Colégio Anchieta e nosso irmão estava terminando o Segundo Grau. Depois vieram as primas morar com a gente. Marlene e eu sempre tivemos uma identidade incrível. Gostávamos das mesmas coisas. Descobrimos a imprensa alternativa em pleno regime militar. Fizemos uma rede de novos amigos. Mergulhamos na luta política contra a ditadura e, ao mesmo tempo, na arte. Não perdíamos nada, peças de teatro, shows, palestras, filmes, tudo. Ficamos muito conhecidas e até recebíamos bilhetes de alguns atores dizendo que sentiram nossa falta na plateia. Tínhamos vidas independentes e muitos projetos comuns. Marlene terminou a faculdade e foi para a Bahia com o desejo de ficar por lá. Mas voltou depois de seis meses. Eu, ainda no início da faculdade, comecei a trabalhar na Zero Hora como estagiária e nunca mais parei. Pouco depois, Marlene foi para o interior, Cambará do Sul, dar aula. Quando entrou para o mercado de trabalho, a dedicação foi total. Mas nossos finais de semana eram reservados para a arte. E quando Marlene veio transferida para o Colégio Cândido José de Godói e passamos a morar juntas, mais ainda passamos a frequentar os espaços de arte por aqui.

P – Outra coisa que salta das páginas do livro é a dureza da infância, tua e da Marlene, talvez mais tua do que a dela. Podes resumir as diferenças de trajetória inicial entre vocês duas? Por que tu foste criada alguns anos longe dela? Como tu vês isso hoje, na maturidade?

LT – Eu não chamaria de dureza os tempos de infância. É claro que eu sofria com as dificuldades financeiras da família materna e com a estranheza que provocava, mas adorava aquele burburinho todo. E não me adaptava à vida da fazenda, onde viviam meus pais e meus irmãos, por mais que gostasse de estar com eles. Achava o ambiente sisudo, triste, cheio de regras, enfim. Fui morar com meus avós maternos com apenas três meses porque Marlene adoeceu e nossa mãe não tinha condições de cuidar sozinha das duas pequenas. Como não tinha afinidades com a sogra, ela buscou a ajuda dos pais e das irmãs na Jaquirana. Acabei me apegando muito a eles, e eles a mim, e o resultado é que não voltei, por mais tentativas que meus pais fizessem. E eles fizeram, disso nunca tive dúvidas. Marlene sempre teve muita culpa por ter sido a “escolhida da mãe”, entre aspas mesmo, mas só revelou na maturidade, depois de alguns anos de análise, processo que vivemos juntas. Choramos muito, o que foi muito bom. 

P – O livro é cheio de lembranças sobre o papel da canção popular na tua vida. Tu achas que essa experiência é como a da tua geração, em geral, ou há algo particular na relação tua e da Marlene com isso? Por quê?

LT – A arte nos ajudou muito em todo o processo de crescimento, amadurecimento e entendimento da nossa condição, mesmo que ainda não verbalizada. Amenizou alguns sofrimentos. Abriu portas. A música foi o nosso refúgio desde crianças porque havia uma solidão grande na nossa trajetória inicial. Nós não falávamos sobre o nanismo. Não pronunciávamos a palavra “anão”. Não gostávamos de encontrar pessoas como nós. Não íamos a reuniões dançantes ou a bailes, tão comuns na época. Uma negação absurda, talvez já alimentada pelo preconceito que percebíamos, mas não entendíamos. Então, salve a arte! Para além dos medos e receios, vivemos nossa adolescência e juventude embaladas pela música, o rock, os Beatles, nossa grande paixão, os festivais da canção que traziam uma geração talentosa de compositores, cantores, músicos maravilhosos, engajados, libertários, que estão em cena até hoje como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Rita Lee/Mutantes, João Bosco, Ney Matogrosso, Martinho da Vila, enfim. Da nossa geração, com certeza. E depois descobrimos os gaúchos Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves, Nico Nicolaiewski, Sílvio Marques, Hique Gomes, Nei Lisboa, tantos. E os que conhecemos mais tarde, como Cida Moreira, José Miguel Wisnik, Zeca Baleiro. E Tom Jobim, Elis Regina, Cazuza. Realmente a música, a canção popular, tem um papel fundamental nas nossas vidas. Nos embalou, nos acarinhou, nos fez dançar muito. Assim como o teatro e o cinema. Não perdíamos as peças dirigidas pela Maria Helena Lopes, Irene Brietzke, Luciano Alabarse. Acompanhamos o início da produção cinematográfica por aqui com os jovens intrépidos que criaram a Casa de Cinema. Marlene promovia debates com alunos do Colégio Godói. Participamos da produção de um seminário chamado “Ponha sua cabeça em campo” e por aí afora. Enfim, agitávamos muito. E adorávamos carnaval! Muito pulamos atrás dos trios elétricos em Salvador.

P – A reflexão mais contínua do livro se refere ao nanismo, teu e da Marlene. Para o leitor, isso está entre os mais fortes motivos para a leitura, por causa dos relatos de dificuldades que vocês enfrentaram, relatos sempre delicados, nunca agressivos, e das várias oportunidades de superação dos obstáculos. Não sei se cabe a pergunta, mas enfim: alguma vez tu não tiveste problemas em ser anã? Onde? Como? Com quem? Podes contar alguma história sobre?

LT – Nanismo é um problema em uma sociedade que não está preparada para entender a diferença e suas peculiaridades. Uma sociedade pautada pelo senso comum, onde a cor da pele, a condição social, a deficiência física, mental, intelectual, ou qualquer comportamento que não corresponda aos padrões instituídos de normalidade, portanto estranho, chama a atenção e acende o preconceito. A luta por inclusão é recente, mas está explodindo. A acessibilidade ainda é quase zero e, infelizmente, deixou de ser prioridade no governo atual, que nega tudo. As pessoas, de um modo geral, não se dão conta. Já enfrentei muitos problemas em bancos, caixas eletrônicos, ônibus, aviões, elevadores, supermercados, espaços diversos com balcões altos ou muito cheios. Ainda enfrento. Na agência do Banrisul onde tenho conta há bastante tempo, ganhei uma escadinha. E quem percebeu a nossa dificuldade, minha e da Marlene, foi o guarda do banco. E ele foi atrás de uma escada para facilitar a nossa vida. Escrevi muito sobre isso no meu blog “Isso não é comum”. Mas o que ainda me inquieta bastante é que, de um modo geral, as pessoas com nanismo não são levadas a sério. Provocam risos, deboches, piadas. Quem não lembra da expressão “anões do orçamento”, tão usada nos anos 1980, quando descobriram roubos de alguns deputados do chamado “baixo clero”? Ou de outra expressão desabonadora – “salário com perna de anão”? Comento no livro algumas situações constrangedoras como essas, bizarras até, que vivemos por conta disso. E, às vezes, algumas pessoas não sabem o que fazer comigo. Enfim, são muitas situações. Mas de um modo geral no meio profissional não tive problemas por ser anã. Sempre fui muito respeitada, em alguns momentos com uma dose de exagero porque hiperdimensionavam a minha inteligência. Marlene também viveu isso no meio acadêmico. 

P – Como tu vês os problemas do nanismo na sociedade brasileira atual? Temos algum motivo para otimismo? Vão diminuir os problemas como os que tu e a Marlene precisaram enfrentar?

LT – Estamos avançando. Hoje as pessoas têm mais consciência, mas temos muito para fazer ainda. Há grupos organizados que fazem um trabalho maravilhoso de orientação, como a Annabra/Associação Nanismo Brasil, com sede no Rio de Janeiro. São inúmeros os tipos de nanismo e há alguns casos graves que precisam de muitos cuidados, tratamento e cirurgia. A medicina precisa avançar mais neste sentido. A mãe de um menino com nanismo de Rio Grande, aqui no RS, Vélvit Severo, criou a “Cartilha Escola para Todos – Nanismo”, simples, lúdica, educativa, que valoriza a diversidade, e trabalha para que a publicação seja inserida nas escolas. Formamos uma rede que não se acomoda e está na luta. Quanto à discriminação, que é grande, eu acredito que a fala pode ajudar muito. Especialmente em relação à curiosidade das crianças quando encontram uma pessoa com nanismo. Vivo isso quase que cotidianamente. E sonegar uma resposta, fazer de conta que nada está acontecendo, fugir do enfrentamento, como já fiz, só fomenta o preconceito. O texto que fecha o livro, no final da página 166, diz: “Não queremos apenas atrapalhar o trânsito ‘feito um pacote tímido’, como diz a canção de Chico Buarque. Queremos parar o trânsito para que nos olhem como seres humanos com direito à vida plena”. É isso!


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