Entrevista

Lélia Almeida – Intensa, vital

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Lélia Almeida – Intensa, vital

Nesta entrevista, Lélia Almeida conta sua trajetória até alcançar os estudos que a levaram ao feminismo. Uma conversa sobre a vida, a política e os livros.

A Lélia eu conheço há muitos anos. Mais de duas décadas. Primeiro era ela amigona de uma cunhada, e foi nessa teia que pela primeira vez conversamos longamente. O assunto central era seu mestrado, uma visada muito original sobre as mulheres em O tempo e o vento, especialmente, se lembro bem, Bibiana. Virou livro e representou um passo adiante na fortuna crítica do grande Erico Verissimo.

Uns tantos anos depois, eu sempre sabendo dela mas sem proximidade maior, ela convidou a mim e ao grande amigo Luiz Sérgio “Jacaré” Metz para conversarmos com alunos dela, em Santa Cruz. Era um dia quente de verão; o Jaca tinha lançado, meses antes, em 95, seu sensacional romance Assim na terra, e a Lélia queria que ele falasse sobre o livro (eu fiz uma fala sobre a literatura no Rio Grande do Sul). Agora escuta essa: o Jacaré morreu poucos meses disso. Morreu para sempre, como costumam fazer os que morrem. Um homem na flor da idade, com um romance maravilhoso, que insinuava outras maravilhas nos anos seguintes, que nunca vieram ao mundo impresso. Aí a Lélia, um tempinho depois, me passa uma fita VHS com a nossa fala. E ali estava o Jaca repassando seu livro. E a Lélia perguntando a ele as coisas que devia perguntar.

Mais tempo passa, já depois da morte de meu irmão (que foi casado com aquela que era a amigona da Lélia), e nós nos reencontramos amiudadamente num curso de pós-graduação, quando ela preparava seu romance O amante alemão. Não chegamos a levar a termo tudo que o curso prometia, mas mais uma vez estávamos perto para não só falar, mas também viver intensamente esse estranho e fascinante mundo da criação literária.

Conto esses dois episódios não por mim, para dar uma ideia da nossa entrevistada. Uma mulher admirável, que, como se vai ver, teve umas quantas encarnações, várias idas e vindas entre a vida e a morte, todas elas nesta vida aqui, debaixo deste mesmo sol real. E em todas a Lélia mostra a virtude da intensidade, um engajamento que só posso qualificar como vital.

Com vocês, Lélia Almeida, a vital.

– Luís Augusto Fischer (entrevista feita por escrito, com revisão da Lolita Beretta)

Parêntese – Guria, a tua vida daria não um filme, mas uma série, né? Começando pelo começo: nascimento, primeiros anos, família, conta aí. Tu é de Santa Maria mas te apresenta como de Santana do Livramento? Ou é o contrário?

Lélia Almeida – Sou nascida em Santa Maria, onde o meu pai terminava a Faculdade de Medicina e jogava basquete no Corinthians, e fui criada em Sant’Ana do Livramento, onde vivi até os 17 anos, quando vim para Porto Alegre para estudar. Este primeiro pedaço da vida na fronteira foi fundamental porque determinou a maioria das minhas escolhas de vida, incluídas aí o estudo do espanhol e tudo o que a literatura latino-americana de língua espanhola foi e continua sendo na minha vida, uma fonte de aprendizado, conhecimento e influência. Vivíamos o auge da censura no Brasil mas não no Uruguai, vinham ônibus de cidades brasileiras, excursões, para ver “Teorema”, do Pasolini, por exemplo. E eu tive acesso ao Borges, Cortázar, Sabato e outros, muito cedo, lendo em espanhol. Tudo graças àqueles primos que resolveram me desencaminhar para o lado da literatura e a quem agradeço até hoje. Para muitas lideranças de esquerda do Movimento Estudantil ter vivido aqueles anos na fronteira – entre os golpes – foi formativo e determinante em função do que podíamos ler e da convivência com os próprios uruguaios. Tenho certeza de que minha vida teria sido muito diferente se tivesse sido criada em outro lugar. Minha mãe, que é bióloga, sempre foi uma leitora comum e uma grande contadora de histórias, e o meu pai, que era atleta e não era leitor, também é um grande contador de causos. Eu esperava a minha mãe chegar do cinema pra ela me contar o filme depois. É até hoje uma família onde todo mundo gosta de contar histórias, e inventar bastante também. Deste tempo tem um dado meio realismo mágico: foi o fato do meu pai ter sido médico por muitos anos do sindicato do Frigorífico Swift Armour, e eles fundaram o primeiro clube de golfe no Brasil, em Sant’Ana, onde frequentávamos a piscina nos fins de semana. Só muito mais tarde pude nomear pra mim mesma o estranhamento que eu sentia de ver aquela gente de campo, simples, muitos sem sofisticação nenhuma, vestidos de ingleses e jogando golfe, enquanto suas esposas e filhos tomavam o chá das cinco numa construção inglesa que parecia fora do tempo. Olho para aquele cenário até hoje como algo meio surreal, fake, e como isso se desdobrava em termos culturais. Assim como o momento da noite nos bailes de Réveillon ou Carnaval em que todos sabíamos que ia dar briga entre os uruguaios e brasileiros, a tensão nas Copas de Futebol, o portunhol, enfim. A fronteira é sempre um lugar meio infernal, onde há uma tensão entre se parecer e se diferenciar e de muito contrabando que, na época, podia ser de muitas coisas, mas que era também de presos políticos e drogas.

Na infância, em Sant’Ana do Livramento, onde viveu até os dezessete anos

P – Como e quando foi a vinda a Porto Alegre? Foi pra fazer a faculdade? Letras, na PUC? Colega da Denise Baptista e de quem mais? Como foi essa experiência? Que Porto Alegre era aquela?

LA – Depois da separação dos meus pais, no final dos anos 70, viemos eu e meus irmãos com a minha mãe para Porto Alegre para estudar, fazer cursinho e prestar vestibular. O meu encontro com a Deni Baptista foi mais tarde, mas andávamos juntas no movimento estudantil. Entrei na Letras da PUCRS em 1979, no ano da Lei da Anistia, então é claro que tudo o que acontecia politicamente no país foi fundamental para que depois fôssemos todos meio ripongas, de esquerda, etc. Eu amava a biblioteca da PUCRS, toda a parte do espanhol, e tinha o irmão Mainar Longhi que viu em mim uma leitora desde cedo e com quem troquei coisas maravilhosas entremeadas com grandes discussões e brigas políticas. Acho que a melhor coisa do Curso de Letras era o fato de estar no mesmo prédio da Famecos. As moças comportadas namoravam os caras da Engenharia, no prédio 8, e nós, que não éramos comportadas, andávamos misturadas com o povo da Famecos. Muita gente desta época encontrei para o resto da minha vida, o Celso Schoeder, o Jimi Joe, o Horácio Duarte, enfim, muita gente que se encaminhou para direções semelhantes. Mas eu adorava a militância, fui presidente do diretório acadêmico, e adorava fazer festa e namorar, é claro. Fui uma aluna muito regular mas sempre uma grande leitora. Para mim era uma Porto Alegre maravilhosa, tudo me encantava, a cidade grande, andar de ônibus, conhecer gente, ir aos cinemas e livrarias, e o começo de uma experiência política que terminou com a fundação do PT e de tudo o que isto significou para os adolescentes daquela geração. Muita interação literária e musical com a América Latina, com los hermanos, uma cidade muito menos violenta que nos fazia amanhecer na Oswaldo Aranha, na Esquina Maldita, sem maiores sustos. Era um momento muito rico, e o começo, dentro do Movimento Estudantil, da construção do Movimento Feminista com especificidades daquele momento. Naquele início dos anos 80 começaram a ser publicadas autoras como Lya Luft, Isabel Allende e uma autora que me foi indicada pelo Irmão Mainar, que era a mineira Rachel Jardim. Só ali, naquele momento e a partir daquela leitura, eu comecei a entender que queria escrever. E escrever estava misturado com ser feminista, e ser feminista tinha a ver com o entendimento de uma identidade de mulher em tempos de muitas mudanças. Tudo isto era muito excitante e desafiador para quem tinha vindo do interior, mas acho que foram anos férteis sim, em meio a todo o processo de crescer, sair de casa, num país em plena anistia política e com uma fé absoluta na construção de um projeto democrático.

P – A tua ida para a Espanha acontece neste contexto? Pra onde tu foi? Isso durou uma temporada grande? Conta, conta…

LA – Eu me formei e fui para a Espanha, para conhecer o país, a cultura e a língua, fui com a minha amiga querida Isabel Melgaré, mas fomos para Barcelona, que, naquele momento, dez anos depois da morte do Franco, tinha uma política muito forte para o resgate do catalão, havia aulas de graça e os métodos eram supermodernos, então a nossa questão com o castelhano ficou meio comprometida. Ali foi o meu primeiro contato com autoras como Carmen Martín Gaite, Ana Maria Matute, Rosalía de Castro, Emilia Pardo Bazán, entre muitas outras, e o contato com muitos autores que eu não conhecia traduzidos de outros idiomas. Depois fui para Londres com a Nícia Nogara e lá pude ler muito as autoras portuguesas que achei numa biblioteca do bairro, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno, Agustina Bessa-Luís, Florbela Espanca, Teolinda Gersão, Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outras. Foram tempos de muita leitura de autoras mulheres que começavam a ser muito publicadas e divulgadas. Acho que esta “escola” de leitura me autorizou a escrever Antonia, o meu primeiro livro, em Londres. Ler as mulheres e escrever e revisitar a história das mulheres da minha família, naquele momento, significou a procura de um norte para o que eu queria fazer, e eu queria escrever como aquelas autoras.

P – O teu primeiro livro, Antonia, sai em Porto Alegre, na tua volta, é isso? Tu trabalhou no “Porto de Elis”? Ou eu estou confundindo tudo?

LA – Sim. Antonia, antes de ser publicada pela editora Tchê, do Airton Ortiz, foi adaptada para o teatro pelo Claudio Cruz, a crítica acabou com a peça, quase morri de constrangimento, e depois foi publicada como novela e aí a crítica foi mais acolhedora. Em Londres trabalhei como camareira e como babá. Depois de Londres voltei para Porto Alegre e sem saber muito o que fazer da minha vida fui trabalhar no Porto de Elis, a convite da Cleide, minha vizinha, que era uma das donas do bar. Foi uma experiência única, intensa, eu diria, um auge cultural, na música, no teatro. Muita gente boa começou sua carreira artística ali, naquele lugar e naquele momento. Eu trabalhava de noite como caixa e nos fins de semana no Teatro Merendinha, vestida de naipe de baralho, vendendo ingressos para as crianças. Lembro de momentos maravilhosos com as apresentações do Nestor Monastério, Lolô Palaoro, Guto Greco, entre tantos outros. O Porto de Elis foi um lugar único e acho que merece ser devidamente relembrado. Além da qualidade dos espetáculos e das diversas produções foi o cenário de uma verdadeira revolução comportamental, no auge da AIDS, muita droga e todos os exageros possíveis. Perdemos muitos amigos jovens, talentosos e queridos naquele tempo. Foi ali que conheci o André, o pai do Pedro, que era iluminador e DJ do bar, e acho que éramos os únicos heterossexuais ali dentro. Deu no que deu.

A autora com seu primeiro livro, Antonia. Acervo pessoal.

P – Como foi tua relação com o feminismo, como movimento organizado ou como filosofia e proposta, por esses anos?

LA – A literatura escrita pelas mulheres me levou ao feminismo. Eu nunca fiz parte de nenhum coletivo feminista, formalmente, na época, mas a consciência feminista fazia parte da luta pela democracia. Sempre fui independente, e as feministas não gostavam de mim porque eu era desobediente. Nossa, como eu apanhei daquela Dinah Lemos naquela época! Foi o momento em que muitas brasileiras voltavam do exílio no exterior e criavam os grupos de conscientização feminista e o começo de publicações de feministas brasileiras e internacionais. Acho que vivi o que acontecia naquele momento, de figuras importantes como Rose Marie Muraro, Danda Prado, Jacqueline Pitanguy, Moema Viezzer, Rosiska Darcy de Oliveira, Marina Colasanti, entre muitas outras, que além da militância política produziam ensaios e ficção que foram muito importantes para a minha geração. Eu sempre gosto de lembrar também das mulheres da esquerda católica e dos momentos quando a discussão tensionava, como na discussão sobre o aborto. Acho que foram tempos muito animados para as mulheres, que viveram, com todas as contradições e angústias possíveis, uma verdadeira revolução comportamental. Da minha modesta experiência como palestrante para as jovens feministas, o que mais lamento é a absoluta negligência e descaso delas com estas grandes matriarcas, que, aliás, aqui no Brasil estão todas sendo revisitadas, traduzidas e publicadas. Eu continuo estudando e ensinando literatura de mulheres e sou fã incondicional destas primeiras figuras, em especial da literatura produzida nos anos 50, não só no Brasil, mas em todo mundo, que vejo como uma espécie de pré-feminismo.

P – Aí vem teu mestrado, certo? Conta dele, por favor, e do teu trabalho, que foi e me parece que é ainda marcante.

LA – Ali entre a minha saída do Porto de Elis e de não saber o que fazer com a minha vida, comecei o Mestrado na Literatura Brasileira na UFRGS e voltei ao meu mundo preferido, das letras. Era o início, no Brasil, dos estudos de gênero na literatura, toda e qualquer bibliografia sobre crítica literária feminista só era encontrada em artigos dos simpósios que começavam a acontecer em todo o país. A Marcia Navarro e a Rita Terezinha Beck foram as nossas professoras precursoras aqui no RS e muitas gerações devemos à coragem delas o encaminhamento destes estudos. Eu fiz a minha tese de mestrado com o Flavio Loureiro Chaves sobre as personagens femininas de O tempo e o vento, do Erico Verissimo, e teve, sim, uma repercussão que me surpreendeu muito. Naquele momento analisava-se as personagens femininas do Machado e do Alencar, mas somente mais tarde a crítica feminista passou a analisar o texto das autoras mulheres. Foi muito prazerosa para mim a pesquisa sobre o Erico, sobre gênero e as discussões com o Flavio, cujo trabalho eu contestava do começo ao fim. Um dia em sala de aula eu perguntei a ele: “Professor Flavio, quem passa as suas camisas?” Ele ficou furioso e disse que era a mulher dele, e eu disse que a perspectiva de vida de quem usa as camisas e de quem passa as camisas dos homens não tinha como ser igual, e que isto determinava a importância das perguntas trazidas pelos estudos de gênero. Ele saiu furioso da aula e eu fui aplaudida por toda a mulherada. Eu e o Flávio continuamos grandes amigos e interlocutores por toda vida.

P – Quando tu começou a dar aulas? E a UNISC, como e quando entra na tua vida? Tu trabalhava em que área? Senhora Sant’Ana é desta época?

LA – Eu dei aulas em algumas escolas particulares em POA, mas a minha experiência mais vasta e organizada na docência foi o período de 16 anos em que morei em Santa Cruz, quando as faculdades viraram uma universidade comunitária, e onde pude criar a EDUNISC, a editora da universidade, que foi uma experiência maravilhosa. Além de organizar as revistas acadêmicas dos departamentos, e das demais publicações, gosto de lembrar que as três antologias, um trabalho colossal da Zahidé Muzart e um grupo importante de pesquisadoras, Escritoras brasileiras do século XIX: antologia, foi uma coedição entre a Editora Mulheres de Florianópolis e a EDUNISC. Sou orgulhosa de ter promovido aquela parceria naquele momento. Eu trabalhava na EDUNISC e também dava aulas, e Senhora Sant’Ana, minha segunda novela, que teve um projeto gráfico lindo da Dorothée de Bruchard, da inesquecível editora Paraula, aconteceu. É uma história das mulheres de Livramento, onde fui criada. Naquela época, socialmente a coisa era bem movimentada na cidade de Santa Cruz, e trabalhei como apresentadora de um besteirol que nos divertia muito, se chamava “Paradão do Floriano” e era no Café Floriano, eu era mais conhecida na cidade pela apresentação do show do que como escritora. Mas não dá mais para contar estas coisas porque o mundo tá muito careta, né? Sobre o Floriano e o Porto de Elis convém ser austera nos tempos atuais.

P – Teu filho crescia, tu dava aulas, aí vem o doutorado. Como foi? Por que foi na Argentina? E o que aconteceu por lá?

LA – Sim, por estas épocas casei, fui mãe, descasei e fui morar em Santa Cruz do Sul, uma experiência inimaginável pra mim, vinda da fronteira e sem familiaridade nenhuma com a cultura alemã. Foi como viver em outro país. Aprendi muito com os alemães, muito. E teve um momento em que fui para Mendoza, na Argentina, em função de uma comparatista especializada na escritora espanhola Carmen Martín Gaite, que eu queria estudar. Deu tudo errado, a tal comparatista e eu não tínhamos nenhum alinhamento político, além de outros, e foi lá que encontrei a filósofa Alejandra Ciriza e a Dra. Estela Saint-Andrés, a quem devo todos os meus estudos feministas posteriores. Conheci a obra de mais de 40 autoras latino-americanas e trabalho com referências delas até hoje. Nunca terminei este doutorado. Mas tudo o que ensino nos grupos de pesquisa de mulheres começou naquela experiência bárbara. Meu filho se alfabetizou em Mendoza e, politicamente, eu sempre tinha a sensação de que estávamos, no Brasil, com vinte anos de diferença dos argentinos, que mal falavam dos desaparecidos ou da Guerra das Malvinas. Quando saí da orientadora equivocada e fui falar com a Estela Saint-Andrés, tinha um cartaz na porta do escritório dela: “Estudiá mucho, pasá la vida entera estudiando, años estudiando, y serás um cadáver culto”. Tinha achado a minha turma! Havia um clima de muita censura na Argentina naquele momento. Foi neste período que escrevi Querido Arthur, que foi publicado pelo WS Editor, pelo Walmor Santos.

P – Em algum ponto tu rompe com a UNISC. Como foi isso? É coisa que dá pra falar com serenidade, passado já tanto tempo? Foi por esse tempo a tua ida para Brasília? E o que rolou por lá?

LA – O meu rompimento com a UNISC foi uma questão administrativa. Pelo menos uma vez ao ano faço atividades na cidade, ou pelo Sesc, ou pela Feira do Livro ou pela própria UNISC, não briguei com a cidade e nem ela comigo. Fui para Brasília porque minha irmã Laura, que é jornalista, morava lá, e minha mãe também. Mas acho que a saída de Santa Cruz e a ida para Brasília demarcavam um ciclo de vida novo e os meus interesses também eram outros. Trabalhei na assessoria do Ministro Fernando Haddad no MEC e depois no Ministério da Justiça com o Ministro Tarso Genro, e criei a primeira e única política de segurança pública para as mulheres dos 82 municípios mais violentos do país. Esta foi uma experiência que mudou a minha vida e meus valores. Assim como muitas intelectuais saíam da base para a universidade, eu fazia o caminho inverso e fui ouvir aquelas mulheres, a quem devo um aprendizado que jamais teria se não as tivesse conhecido. Parte desta experiência está relatada num livro do Clube de autores que se chama As gregas do mangue, e que se compõe de quatro ou cinco esquetes das minhas experiências na periferia e em penitenciárias do Acre, do Espírito Santo, do Pará e de muitos outros lugares. Era um programa para as mães que conviviam com os jovens que eram mortos pela polícia ou pelo tráfico.

Numa ocupação em Vila Velha, as mulheres daquela comunidade contaram que um dia a prefeitura, entendendo que não havia mais o que fazer contra a ocupação, colocaram uma grande lona preta sobre as pessoas. Muitos bebês morreram sufocados naquela noite. Foi a minha última viagem pelo projeto, eu tive herpes nos olhos e entendi que não tinha mais condições físicas de ver tanto sofrimento e me sentir tão impotente. Esta guerra civil que está sendo filmada agora vem de muito tempo neste país. Mas ouvi-la das conversas com estas mulheres me virou do lado do avesso, inclusive politicamente falando. Mas também não vou contar do descompasso absurdo, quase realismo mágico, de que participei com as Mulheres da Paz na estação Leopoldina do Rio de Janeiro, num 8 de março, onde misturaram as mulheres das comunidades e penitenciárias com as madames da zona sul, quando foi interpretado um esquete por um coletivo lésbico que criou um diálogo onde a Simone de Beauvoir espinafrava o Sartre e que ninguém entendia nada porque não tinha microfone. Naquele dia, em 2010, havia uma promessa da candidata Dilma para transformar a Secretaria Especial de Políticas para a Mulher em Ministério, o que não aconteceu, e isto foi um golpe duro para as mulheres da minha geração que tinham lutado tanto pela representatividade feminina na política. Saí meses depois do Projeto Mulheres da Paz, trabalhei um tempo na relatoria do projeto na UNESCO e depois voltei para Porto Alegre.

P – E O amante alemão? Era mesmo um romance para meter o pé na porta? Ele teve boa repercussão, certo?

LA – O amante alemão foi escrito em 35 dias, montado em 6 meses e levou 7 anos para ser publicado. A crítica foi acolhedora e os leitores também, acho que deu certo sim, e o Prêmio Açorianos também deu muita visibilidade. Até hoje falo com leitores que gostam do livro. Pela primeira vez, depois de alguns livros de crônicas e ensaios e novelas, eu estava escrevendo uma história que não tinha a menor ideia do que se tratava, acho que drenei o meu luto pela saída de Santa Cruz através deste romance. Muita gente da cidade gosta do livro, e há os que dizem que eu odiava Santa Cruz, mas ninguém escreve 500 páginas (na versão original) por qualquer assunto que não lhe seja completamente apaixonante. Era um pé na porta para mim como escritora também, de deixar uma heroína de folhetim morrer ali, para sempre com aquela história de amor tão ridícula. No fundo acho que esta mistura de uma história de amor improvável com um pano de fundo político (a questão dos enforcados nas plantações de fumo) foi uma espécie de homenagem minha às escritoras latino-americanas.

P – E agora, como anda a tua produção literária?

LA – Publiquei dois livros de crônicas depois do “alemão”, Este outro mundo que esquecemos todos os dias, pela Confraria do Vento, e que está esgotado, e numa estrada sem fim que carrego aqui dentro, editado pela Casa Verde. Tenho um livro infantil pronto, mas ainda sem editora, só com promessas, e um livro de crônicas que se chama A consulente sou eu, onde conto as histórias das consulentes, maravilhosas, ouro em pó, que não poderiam ficar silenciadas. A maioria delas é ficcionalizada e apenas duas contei do jeito que escutei, com a autorização das consulentes, de tão boas que eram. Está no prelo na Confraria do Vento. Escrevo crônicas em alguns periódicos eletrônicos, meu tema preferido ainda são as mulheres, que são muito estranhas e inexplicáveis, e tenho grupos de pesquisa e estudo de mulheres onde só lemos autoras. Tenho pensado muito em escrever esta experiência, que é riquíssima para mim e para as alunas. E estou trabalhando num romance, desde 2016 mais ou menos, que tem elementos góticos. Claro que para escrevê-lo estou lendo gótico feminino desde 2015 (algo completamente desnecessário e neurótico), e já estou atrasada com muita coisa escrita e outras por organizar. Depois que saí de Brasília fui parar em Eldorado do Sul por conta de um casamento que tinha tudo pra dar errado e ser um pesadelo. E deu! Assim foi que voltei para Porto Alegre. Mas claro que nesta história tinha uma casa mal-assombrada, uma suicida, um vilão e tudo num lugar chamado Sans Souci. Era tudo literário demais para não ser escrito. Era tudo fantástico demais para não ser contado. Não sei quando vou terminar. A literatura e ser escritora não tem sido, exatamente, um bom negócio. A minha capacidade de maravilhamento com as histórias vividas e as histórias contadas é o meu fio terra nesta vida que às vezes sabe ser bem difícil.

Capa de um dos livros de crônicas, de 2014.

P – E nisso tudo, como entra o tarô e outras artes & metiês sutis e misteriosos?

LA – Eu sou uma pisciana. Está lá desenhado no meu mapa astral que eu poderia trabalhar com estes metiês, então, só tive de lembrar o ofício que certamente vem de outras vidas. Adoro a astrologia e sou apaixonada pelo Tarot, e a dinâmica da escuta e da troca são imensamente gratificantes para mim. Estudei muito e levei muito tempo para abrir o Tarot publicamente, mas depois que comecei não parei mais, abri muito Tarot para Ministros e figurões em Brasília, e esta parte foi muito divertida também. É um espaço de escuta mágico onde as pessoas contam histórias tristes e inenarráveis, baixam a guarda na frente dos arcanos, confiam no que sentem, no que jamais se atreveriam a expressar. É muito lúdico e muito humano, ao mesmo tempo. Como sou taróloga desde a década de 80, acompanho a história de vida de famílias inteiras. Minha mãe ficava horrorizada que ninguém mais ia me respeitar como escritora se eu fosse taróloga. Minha rica mãe! É claro que a escritora e a taróloga se misturam num jogo ficcional que trouxe muitas pessoas maravilhosas e histórias incríveis para a minha vida. Só foi bom. Esta é a história oficial. A história verdadeira é que na Argentina eu participava de um programa de rádio classe C, de madrugada, o programa se chamava “Atrévete” e a rádio se chamava “Enterprise”. Eu conheci um argentino que tinha uma boutique esotérica e inventamos o programa que era abrir o Tarot ao vivo, com perguntas dos ouvintes. O meu nome de guerra era Alma Luz, de Bahia, porque se eu dissesse que era gaúcha não ia render muito. E é claro que foi uma farra. Quando voltei pro Brasil anunciaram que eu tinha ido catar yuyos na Amazônia e tinha me perdido e que não voltava mais.

Com cartas do Tarot. Segundo ela, a escritora e a taróloga se misturam num jogo ficcional.

P – Como anda a tua visão sobre o feminino neste estranho tempo em que vivemos?

LA – Bom, esta resposta merece um ensaio, ela não é simples. De alguma maneira, como cronista escrevo incessantemente sobre as minhas impressões sobre o feminismo e o feminino nestes tempos tão estranhos. Tenho uma convicção bem simples: o mundo será feminino ou não haverá mais mundo.


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