Entrevista

Lizete Dias de Oliveira — Através de diversas lentes

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Lizete Dias de Oliveira — Através de diversas lentes Lizete Dias de Oliveira no Projeto de pesquisa Paleotocas (Foto de Thiago Araújo)

“…para os historiadores eu era arqueóloga, para os arqueólogos eu era fotógrafa e para os fotógrafos eu era historiadora. Agora, entre os museólogos eu sou arqueóloga, entre os bibliotecários sou historiadora, entre os arquivistas sou lógica…”

A leitura desta entrevista é um passeio intenso pela vida. Lizete Dias de Oliveira nos apresenta as diversas escolhas que ajudaram a construir sua trajetória. Ela que nos leva junto para muitos momentos da infância até os dias de hoje e nos faz passear por inúmeros lugares.

Serenidade e perseverança que ajudam a sentir e refletir cada instante. Uma entrevista, sim, mas com um aspecto de travessia. A gente se deixa levar pela primeira frase e o fluxo contínuo nos faz desaguar por um rio de experiências. A Lizete conta sobre a universidade, sobre as saídas a campo, fala das visitas às aldeias Guarani. Também lemos sobre a luta por um visto, as idas, as vindas, o cello, o hospital, a leucemia, os amigos. 

Um mundo que se conjuga no aprendizado em que os estudos e a pesquisa vão abrindo mais e mais revelações. As respostas que a Lizete encontra no percurso são dadas, a seguir, às perguntas feitas por Luís Augusto Fischer. 

E nós, ao lermos, conseguimos nos deparar com a Lizete e os livros. Eles que acompanham os momentos vividos e permitem a ela, e a quem lê suas respostas, conexões e sentidos dados pelas palavras. Seus autores entram em um diálogo amigo com a entrevistada por onde quer que ela vá. 

“Ouse saber”, leitor, como essa pesquisadora trava suas “conversas vertiginosas” e com quem. 

Por Ângelo Chemello Pereira 

(Entrevista realizada por e-mail) 

Parêntese – Numa das últimas vezes em que estivemos perto ao vivo, tu me falaste do teu entusiasmo com a Arqueologia Subaquática, não foi? Isso evoluiu?

Lizete Dias de Oliveira – A Arqueologia Subaquática é um projeto de muito tempo. Quando estava acabando o Doutorado na Université de Paris I, havia uma possibilidade de trabalhar no projeto do Farol de Alexandria com uma equipe da universidade. Tirei um brevê de mergulho e fiz um curso de salva-vidas, mas em um acidente na piscina, machuquei uma vértebra da cervical e precisei fazer algum tempo de repouso. Tive que optar entre me engajar na equipe ou acabar o doutorado no prazo. Para mim era uma questão de honra defender minha tese no tempo, sem pedir prorrogação de bolsa. Eu tinha a consciência de que havia recebido um bolsa de estudos de um país tão pobre como Brasil. E assim eu decidi, saí daqui em dezembro de 1993 e voltei em dezembro de 1997, com a tese defendida.

Expedição de Arqueologia Subaquática do Projeto Mapeamento e Registro do Sítio de Naufrágios do Combate Naval de Itaparica, BA, 2012 (Foto: Lizete Dias de Oliveira)

Não desisti. De Paris fiz um projeto para estudar os naufrágios na costa de Santa Catarina, mas acabei voltando para Porto Alegre. Anos depois eu fiz uma Especialização em Arqueologia Subaquática pelo Instituto Tomar, de Portugal, e me dediquei às águas interiores: estudei o Guaíba. Normalmente, quando se pensa em Arqueologia Subaquática, pensa-se em águas límpidas e transparentes, como no Mediterrâneo ou o Caribe. As águas interiores são muito pouco pesquisadas, são o Patinho Feio da Arqueologia Subaquática. Mas é impressionante a quantidade de águas que existe no Rio Grande do Sul e a riqueza de informações que elas guardam é impressionante.

Na Arqueologia em contextos de águas turvas, como o Guaíba, não se escava mergulhando, como se faz nas águas claras. Estuda-se através da cartografia, de imagens ou de sinais geofísicos, como radares ou sonares, ou de imagens de satélite. Todas essas informações são incorporadas em um Sistema de Informação Geográfica, uma ferramenta bem avançada para a época em que comecei a usá-la, já no meu doutorado. O Guaíba é fascinante porque havia inúmeras aldeias nas suas margens. Quando voltei para Porto Alegre, trabalhei com uma equipe que escavou na ilha Francisco Manuel, na saída da lagoa dos Patos. Foi um trabalho muito bonito, buscando, prospectando, como se diz em Arqueologia, vários sítios nas margens do Guaíba. No momento meu projeto está suspenso porque eu já não posso mais frequentar lugares insalubres, como arquivos, bibliotecas ou museus, porque estou em remissão de uma leucemia.

Conhecendo o Guaíba, fico horrorizada com a possibilidade de instalarem essa mina de carvão tão próxima, que vai botar em risco nossa vida de uma forma irremediável. Assim como a própria instalação de um polo petroquímico rio acima. Lembro de uma vez que perguntei, numa aula da Engenharia Química, se o Polo Petroquímico não traria um risco para Porto Alegre. Lembro também do silêncio que se instalou na sala de aula, antes do professor lembrar a quantidade de empregos que geraria e de que nós, futuros engenheiros químicos, trabalharíamos lá. Hoje, a quantidade de metais pesados que tem no leito do Guaíba é assustadora.

P – Voltando ao começo: conta a tua formação, origem familiar, até chegar na universidade. Quais foram as condições? Tua escolha de curso superior foi tranquila, pra ti e para a família?

LDO – Minha relação com a água vem desde pequena. Durante minha infância e parte da adolescência eu nadava, era fundista. Passei indo e voltando na piscina, enquanto as pessoas da minha idade socializavam, faziam festas. Penso que o tanto nadar desenvolveu em mim um costume de solidão que eu levei pela vida. Os nadadores entendem o que eu falo. Aquele passar dos azulejos da piscina e todos os pensamentos que desfilam pela nossa cabeça num treino de três mil, quatro mil metros por dia.

Sou a terceira de quatro irmãs, meu pai era militar, minha mãe professora, que tricotava muito bem, minha vó materna era costureira e crocheteira, morava conosco desde que enviuvou. Uma família “padrão militar”. Moramos em algumas cidades, e nem lembro para quantas casas diferentes nos mudamos. E segui pela vida me mudando até que, agora, tenho minha casa e, aqui onde moro, criei raízes.

Moramos em Carazinho e era obrigatório, segundo meu pai, fazer faculdade em Passo Fundo, que é a cidade mais próxima. Mas eu estava “convencida” que a vocação da minha vida era Engenharia Química, casualmente um dos poucos cursos que não tinha em Passo Fundo (risos). Meu pai me deixou fazer o vestibular em Porto Alegre porque ninguém acreditava que eu passaria numa Engenharia. Na época do vestibular eu era muito novinha, havia entrado na escola com cinco anos, sempre tinha estudado em colégios públicos, não era nenhum gênio, pelo contrário, comecei a falar muito tarde. Minha mãe achava que eu tinha problemas, porque quase aprendi a falar ao mesmo tempo que aprendi a ler. Eu não estudava muito, o suficiente para passar de ano. Eu nadava. 

Mas para surpresa de todos, passei no vestibular, em 82, e vim morar no Pensionato Santa Terezinha, na frente da Redenção. Um pensionato de freiras, que na época, lembro bem, tinha 96 meninas do interior morando lá. Aqui conheci a Esquina Maldita, os bares do Bom Fim. A noite de Porto Alegre se misturava com os dias da Engenharia, com cálculo integral, a programação em FORTRAN [linguagem de programação]. Parece incrível, mas fazíamos rodar os programas com fichas de papel que eram perfuradas em uma máquina, parecida com máquina de escrever. As fichas eram colocadas rigorosamente em ordem, dentro de caixas de sapato. Depois tínhamos que entrar numa fila para rodar o programa em computadores tão grandes que ocupavam uma sala inteira. 

Mas aconteceu que na Engenharia eu tive uma disciplina sobre a história da Química, que me encantou. E eu estava entrando em um processo bem perigoso, de sair na rua e começar a calcular as combinações possíveis das placas dos carros, tentando descobrir seus padrões matemáticos. E as pessoas estavam se transformando em agregados de moléculas, enquanto eu demonstrava teoremas. Os conceitos de infinito, os limites e as derivadas, tudo se misturava na minha cabeça psicodélica pelas noites no Bom Fim. Acabei fazendo vestibular para História e durante algum tempo cursei os dois juntos. Depois, para o desespero do meu pai, me apaixonei, saí de casa, deixei a Engenharia e só fiquei com a História. Como ele dizia: tu vai deixar de ser doutora pra ser professorinha? Eu acabei por ser uma professorinha doutora.

P – Na tua época de graduação, o que era estudar História? 

LDO – Quando entrei para a História na UFRGS a teoria hegemônica era o Marxismo. E eu, quando não estava estudando, trabalhava num laboratório revelando fotografias, depois passei a fazer vídeos numa das primeiras produtoras de vídeo aqui de Porto Alegre, chamada TelaViva. Assim que consegui, comprei minha própria câmera fotográfica por um conselho da minha avó, que na sua sabedoria me contou que, com o primeiro dinheiro que recebeu na vida, ela comprou sua máquina de costura. Ela me disse, em outras palavras, a importância de ser dona dos meios de produção. Então, durante a faculdade eu ganhei a vida e sustentei meu filho (nascido em 1985) com a fotografia. Uma atividade considerada pequeno-burguesa para os padrões de alguns dos meus colegas do curso de História.

Na História tive professores maravilhosos, como a professora Jane Aita, professora de História da América, que, quando soube que eu não tinha dinheiro para fazer as cópias da pasta, deixou pagos todos os textos do semestre. Depois, quando fiz o Mestrado em História Ibero-americana, lembrei com muita gratidão de sua generosidade mas não pude agradecer-lhe porque ela havia falecido. Mas não esqueço da sua frase: “A América Latina é a unidade na diversidade”!

Meu TCC foi sobre a história da Redenção e seus monumentos, uma proposta ousada para aquele momento porque não se falava em patrimônio, não era um tema para historiadores. Como eu trabalhava com fotografia, fui para São Paulo fazer dois cursos na antiga Oficina Três Rios: um sobre Walter Benjamin e a fotografia e outro sobre conservação de material fotográfico. Mas lá eu soube de uma oficina, que não tinha mais vagas, sobre Museu de Rua. Pedi para o professor, Julio Abe Wakahara, que me deixasse assistir como ouvinte. Ele foi, a partir desse dia, meu grande mestre, quem me ensinou a fazer Museus de Rua e a pensar a vida. 

Depois que me formei, junto com três amigas queridas e colegas da História montamos o projeto do Museu de Rua da rua da Praia, que foi o primeiro de três museus de rua que fizemos. Conseguimos vender o projeto para a Prefeitura, mas nos foi imposta a coordenação de uma professora da UFRGS. Nós aceitamos porque éramos idealistas, e seguimos sendo pela vida. O que nos interessava era poder produzir os Museu da Rua da Praia e do Bom Fim. 

Os Museus de Rua, apesar de parecerem apenas exposições fotográficas com textos, têm uma proposta teórica e uma metodologia específicas, que nós desenvolvemos aqui em Porto Alegre. Entre o Museu da Rua da Praia e o Museu do Bom Fim, nós fizemos, independente da prefeitura, o Museu de Rua do Hospital São Pedro a pedido de um movimento que se chamava Sociedade Sem Manicômio. Para esse museu, eu mesma fiz as fotos. Foi uma experiência muito marcante porque permitiram meu acesso a qualquer lugar que eu quisesse no hospital São Pedro. Conheci uma realidade dura, que marcou minha vida. As fotografias são muito impactantes. Um dia farei uma exposição sobre esse trabalho. 

Museu de Rua do Hospital São Pedro, 1990 (Foto: Lizete Dias de Oliveira)
Museu de Rua do Hospital São Pedro, 1990 (Foto: Lizete Dias de Oliveira)

Naquela época, começo dos anos 80, eu participava das passeatas e manifestações que pediam o final da ditadura militar. Quando chegava em casa e via meu pai, militar já da reserva, com quem eu tinha uma relação de cumplicidade amorosa e muito carinhosa, sentia um nó emocional. Sou filha de um pai militar. O pai de meu filho era um exilado político que não quis conhecer o seu filho. Sou mãe solteira e bissexual, e quando engravidei provoquei revolta por dois lados: o dos héteros (por óbvio) e o dos homos (surpreendentemente). Então, essas situações da vida me ensinaram a relativizar e a não generalizar.

Eu morava sozinha com meu filho e, enquanto eu passava as fraldas do dia anterior e fervia as sujas do dia, Katia Sumam me fazia companhia. Ela foi uma amiga que nunca nem me viu, nem sabe que eu existo.  Eu nunca a vi pessoalmente, mas agora com as lives do Sarau Elétrico sei que ela tem cabelos compridos e crespos e sei seu modo de caminhar por um vídeo sobre o Centro Histórico. Antes eu só conhecia sua voz, mas os rostos não me fazem falta. Tenho dificuldade em reconhecer rostos, condição que se conhece como prosopagnosia, o que me deixa socialmente numa grande desvantagem e insegurança porque não sei se quem estou vendo é alguém conhecido ou não. 

Foi interessante pensar nessas tecnologias quando lecionei uma disciplina chamada História dos Registros Humanos, no que elas nos proporcionam, como o rádio, a TV, a Internet, ou o livro. Eu amo a tecnologia pela possibilidade de trazer o distante para perto, tanto no espaço como no tempo. A presença de Katia Sumam nas minhas noites, assim como todos os livros que me trazem pensamentos de gente de outros tempos, ou a presença ao vivo na Internet que tem aliviado a solidão da pandemia. Durante nove anos fui casada com alguém que mora no México e tínhamos uma vida normal, de qualquer casal, nos acompanhando diariamente. Brincávamos que tínhamos uma casa no México, uma casa no Brasil e uma casa nos satélites. E essa foi a mais habitada durante esses nove anos, apesar das diferenças de fusos horários, diferenças de vida e de profissões. Claro que com as tecnologias perdemos contatos importantes, como o olhar nos olhos ou o toque na pele. Mas por enquanto é o que a tecnologia permite. 

P – E depois, Mestrado, onde e como foi? Sobre que tema? 

LDO – Foi pelas imagens que eu entrei na Arqueologia. Fazia os registros em fotos e em vídeo dos trabalhos de campo durante a graduação. Naquela época o material fotográfico era caríssimo e o projetos de pesquisa tinham muito pouco dinheiro. Então comecei a gravar as fotos em vídeo para proteger o suporte das fotos, que eram basicamente em diapositivos, conhecidos como slides. Já nessa época, por pura intuição, eu me dediquei a preservar esses suportes de informação, com o que mais tarde eu viria a trabalhar quando passei num concurso e entrei para a Fabico, no Departamento de Ciências da Informação, da UFRGS, em 2005. Esse tema, sobre informação, eu desenvolvi em um pós-doutorado na Universidade do Porto, um trabalho bem interessante quando eu estudei ontologicamente a informação na Biblioteconomia, na Arquivologia e na Museologia, a partir de uma leitura da Semiótica. 

Meu mestrado em História Ibero-americana na PUCRS foi sobre a iconografia das Missões jesuíticas. Trabalhei com a iconografia porque eu penso por imagens. Considerei a iconografia num sentido amplo, um gradiente de imagens das e sobre as Missões. Eu estudei os Exercícios Espirituais, o método de meditação dos jesuítas, e as artes plásticas, música, teatro e imagens que os missionários usaram para cristianizar os índios das Américas.

Foi no Mestrado que comecei a usar as lentes da Semiótica americana para ver as missões. E foi quando me aproximei de outro companheiro, Charles Peirce, com quem há décadas tenho conversas vertiginosas. Eu o entendo bem porque temos um passado comum na Química, na Lógica, nos signos. Ele é um maldito, teve uma vida socialmente bem difícil e depois de algum tempo retirou-se pra sua casa e lá passou a escrever, escrever, escrever. Impressionante a sua obra. Digo uma amizade vertiginosa porque é bem essa a sensação que tenho quando ando muito na sua companhia, quando vejo o mundo através das suas lentes. 

Aliás, falar em lentes é interessante porque Baruch Spinoza, outro amigo, era ganhava a vida polindo lentes. É bonito pensar que um dos maiores filósofos polia lentes para que os outros pudessem enxergar através delas, literal e metaforicamente. Eu admiro esse outro grande amigo, que foi batizado como Bento Espinoza. Com ele eu mergulho num mundo tão lúcido, tão alegre! Ele é um filósofo da alegria, apesar de ter tido uma vida muito difícil. Imagina que aos 24 anos ele foi expulso da sua comunidade judaica. Quando se é excomungado, os outros são proibidos de falar contigo, de pisar na mesma calçada, de ficar sob o mesmo teto, de te ouvir, de ler qualquer coisa que escrevas. Li que no seu túmulo, em Amsterdam, apesar de seu corpo ter sido roubado, está um aviso: “Cuidado!” 

Eu, de alguma forma, já me senti excluída, por causa as minhas ideias não muito convencionais. No meu túmulo, se eu fosse enterrada algum dia, iria querer que gravassem a frase: “Ouse saber”. Imagina que eu fiz uma tese na França usando a Semiótica americana e não a Semiologia francesa. Imagina que eu fiz uma tese sobre as Missões jesuíticas e não fui e não sou chamada para falar sobre as Missões. Imagina que eu fiz um concurso para professor titular em Ciências da Informação, no tema que fiz um pós-doutorado, e que, mesmo sendo a única candidata, não fui aceita. E olha que minha conferência sobre a Escrita eu considero um dos melhores textos que já produzi. Por quê? Por questões puramente feudais. O feudalismo acadêmico. E assim, a lista das minhas “pequenas excomunhões” é grande, mas eu sigo. 

Vou pela vida passeando por feudos sem pagar pedágio e sem reconhecer fronteiras. Tenho um lado maldito que sempre me acompanhou. Eu consegui ser maldita até no [grupo teatral] Ói Nóis Aqui Traveis, quando era o mais maldito dos grupos teatrais de Porto Alegre. Em uma época em que o Oi Nóis estava muito fraco, o Airton Luiz Jungblut e eu fazíamos laboratórios lá, e depois dos ensaios saíamos para vender uma publicação chamada “Carta ao Generalíssimo” para manter o grupo. Imagina, em plena Ditadura Militar, vender nos bares da noite o livro Carta ao Generalíssimo, que perigo! Mas esse “heroísmo” não entrou na história do Ói Nóis. Lembrei disso e falo no Tom (que foi professor na PUC) porque ele faleceu recentemente e queira lhe fazer uma homenagem, pela nossa amizade psicodélica, naqueles tempos de ditadura.

Então eu não tinha uma turma, para os historiadores eu era arqueóloga, para os arqueólogos eu era fotógrafa e para os fotógrafos eu era historiadora. Agora, entre os museólogos eu sou arqueóloga, entre os bibliotecários sou historiadora, entre os arquivistas sou lógica…

P – E o doutorado? Como rolou a ida para a França? Era um desejo antigo? Tu já conhecias a Europa?

LDO – Eu não conhecia a Europa e nem tinha pensado em morar lá. Mas fiz um projeto de pesquisa para um doutorado sobre visualização de dados em Arqueologia e ele foi aprovado na Paris I (Panthéon-Sorbonne). Mais ou menos no estilo do vestibular de Engenharia Química, tentei e deu certo. Fomos morar em Paris, meu filho e eu. Ganhei uma bolsa balcão, como chamam as bolsas para quem não tem vínculo empregatício no Brasil. Vivíamos com muito pouco dinheiro, pouco mesmo. Na França as escolas são atribuídas pelo bairro em que se mora, e fomos morar no 13ème [o distrito de número 13], na rue de Gobelins, um lugar bom porque eu queria que meu filho estudasse em uma boa escola.

Mas não foi simples, claro. O consulado francês em São Paulo era conhecido por ser chatíssimo para conceder vistos, ainda mais para uma mãe solteira. Não deram o visto para meu filho e, nos três primeiros meses, ele não pode viajar. Até que ele conseguiu um visto de turista e, de Paris, nós lutamos por seu visto de permanência; essa história daria uma novela. 

Lizete e o filho Pedro. Início dos anos 90 (Foto: Caco Baptista)

Lembro que eu soube que o Ministro das Relações Exteriores iria na Embaixada do Brasil dar uma entrevista. Era o dia seguinte à morte do Ayrton Senna, e uma fila enorme havia se formado para assinar o livro de condolências. Quando eu entrei, a secretária perguntou se eu vinha para a entrevista. Tremendo, como nunca tremi na vida, eu lhe disse que tinha vindo para denunciar na frente de todos os jornalistas que o governo francês não concedia o visto para o filho de uma bolsista. Então me levaram para uma sala reservada para me convencer que eu deveria ir pra casa, montar um dossiê e depois voltar outro dia, para não tumultuar a coletiva de imprensa. É claro que eu já tinha comigo um dossiê enorme mostrando todas as tentativas e pedidos de visto pro meu filho. Na França logo se aprende o valor de um bom dossiê. 

Depois de algum tempo, graças a um cônsul que se ocupou do nosso caso, recebemos um aviso para buscar o visto em Bruxelas. Era a Copa do Mundo, no dia de um jogo entre a Bélgica e o Marrocos, segundo o que me lembrou meu filho. Foi uma quebradeira geral dos torcedores na praça de Bruxelas. Passamos alguns dias na Embaixada Brasileira esperando o tal do visto, quase como refugiados porque não poderíamos mais entrar na França sem o visto do meu filho e não podíamos ficar na Bélgica. Finalmente, quando o consulado francês concedeu o visto, pegamos o primeiro trem e quando passamos pela fronteira estávamos tão felizes… Era o dia da Fête de la Musique, uma festa para comemorar a chegada da primavera. Quando descemos do metrô Gobelins, ao longo da avenue d´Italie, dezenas de pianos de cauda enfileirados tocavam para nossa chegada. Foi maravilhoso comemorarmos a nossa vitória naquela festa, com toda Paris nas ruas, tocando e cantando pela chegada da Primavera e pela nossa permanência.

Em Paris eu me sentia tão sozinha que resolvi realizar um sonho: aluguei um violino e comecei a fazer aulas num atelier da Maire [prefeitura] de Paris. O violino foi um grande amigo durante os quatro anos que ficamos por lá. Um dos melhores, mas também superexigente. Olha só, outro amigo inusitado que fiz pela vida. Depois que entrei pra família das cordas, me apaixonei pelo cello. O cello me acompanhou nas minhas internações para a quimioterapia, apesar de eu não poder tocá-lo porque a pele, que estava tão fina, não suportava apertar suas cordas. Com ele divido meu tempo, além da Gaia, minha cachorra, que tem feito companhia durante o meu isolamento.

P – Como foi o processo de te aproximar do mundo indígena? Começou pelo teu gosto pela história das Missões? E a pesquisa lá, como foi? Como foi o teu processo até descobrir aquelas imagens, aqueles mapas/representações das Missões? Eles estavam lá sem ser tocados desde quando?

LDO – Em Paris eu pesquisei por meses na Bibliothèque Nationale, na sede antiga, antes da inauguração dessa nova biblioteca, François Mitterrand. Passava todo o dia ali e tinha que chegar muito cedo porque a fila para entrar era enorme. Quando penso nesse período, ainda sinto o frio nos ossos naqueles corredores gelados. E, às vezes, eu não tinha dinheiro nem para tomar o café de máquina que poderia esquentar um pouquinho o corpo e a alma. Mas quando penso em Paris, também penso em todos os lugares geniais que conheci porque estudava no Instituto de Arte e Arqueologia, o que me dava acesso a qualquer museu da cidade.

Na Bibliothèque Nationale fiz uma varredura nos mapas e encontrei duas preciosidades: um plano da missão de São João Batista, aquela que fica no município de Entre-Ijuís, entre Santo Ângelo e São Miguel, e um plano da Batalha de Cayboaté, uma das batalhas da Guerra Guaranítica.

É impressionante descobrir esses documentos que estavam perdidos. A mesma sensação que se tem de escavar e encontrar algo precioso. Nessa época eu escavei no Collège de France, onde iriam fazer dois auditórios subterrâneos. Era um sítio lindo, cada dia descobriam-se fíbulas romanas, sacos de moedas, ou cerâmicas muito bonitas. Paris é uma cidade incrível de se escavar. Onde morávamos, em Gobelins, era um cemitério. Gobelins quer dizer pequenos espíritos. Quando escavam naquele bairro, sempre encontram alguma sepultura.

Esse plano de São João, em especial, é uma joia rara, tem tantos detalhes importantes! Com base nele e em imagens de satélite, fotografias aéreas e os documentos escritos, eu desenvolvi um Sistema de Informação Geográfica (que na França chamavam Informação Espacial) para estudar as missões na minha pesquisa de doutorado. Trabalhei durante três anos no LISH, Laboratório de Informação Espacial e Histórica, ligado ao CNRS (Centro Nacional de Pesquisas Científicas). Foi um trabalho de fôlego, quase uma maratona que resultou numa tese em dois volumes, o que dificultou traduzi-la para o português. Quando voltei, os arqueólogos continuavam olhando só para sua quadrícula e para sua paróquia. Ninguém teve muito interesse em uma tese baseada em Semiótica, que até hoje pouca gente quer entender, e nem sobre Arqueologia da Paisagem ou Sistemas de Informação Geográfica. Interessante é que hoje em dia, vinte e três anos depois da defesa da minha tese, a Arqueologia está usando essa ferramenta fundamental para entender o espaço e os sítios arqueológicos. Ano passado escrevi um capítulo de um livro sobre o SIG e a Arqueologia e me dei conta de quanto tempo eu já trabalho com essa tecnologia.

P – Houve algum embaraço no processo de divulgação das tuas descobertas, certo? Sem citar nomes, podes contar o que aconteceu? (Se é que dá pra contar…)

LDO – Na minha opinião, não existe nada mais perigoso que consciência pesada, talvez pessoas jurídicas mal-intencionadas se igualem (risos). Como dizem os budistas, nada é totalmente bom e nada é totalmente ruim. Eu tive a honra de ter encontrado aquele plano de São João, mas a situação se transformou porque o mostrei a alguém que se encantou pelo plano e o imprimiu em cartões postais e o publicou antes de eu publicá-lo na minha tese. Esse professor era uma pessoa muito importante, e as portas se fecharam quando eu voltei. Imagina que eu, uma lambe-lambe da Arqueologia, como me chamavam, tinha voltado doutora, em um estado onde só existiam quatro doutores, que foram meus professores. A Arqueologia é um meio muito machista. Eu tinha vivido quatro anos nos séculos XVII e XVIII, e estava vindo da França do século XX, onde havia muito mais mulheres do que homens trabalhando com Arqueologia, e mulheres nos postos de comando, não apenas subordinadas, como era aqui no Brasil.

O resultado é que eu sou doutora sobre as Missões jesuíticas e durante muitos anos não fui chamada para falar sobre minha pesquisa e nem participar de bancas sobre as Missões. Mas o lado bom de te puxarem o tapete é que a sujeita fica à vista e, pra quem é acostumada a voar em vassouras, um tapete voador é bem mais confortável.

P – Em algum ponto desse processo tu te aprofundaste em Antropologia? Teorias antropológicas? Estudaste com quem? Alguma escola te pareceu mais interessante? Por quê?

LDO – Eu não trabalho com Antropologia. Tenho um grande respeito pelos mistérios das populações indígenas. Sou mais como uma neta que senta para ouvir as histórias da avó. Procuro aprender com eles e com sua visão de mundo. Os Guarani são considerados grandes filósofos. Eles são pensadores e contam histórias maravilhosamente bem. 

Eu estudo o idioma guarani num curso de extensão da UFRGS, mas não sou antropóloga, sou aluna e amiga. Visito as aldeias quando sou convidada. Queria mesmo me “desbranquear”, como diz Eliane Brum. Mas essa minha escuta aos mais velhos de alguma forma salvou minha vida porque os índios recomendam que, quando se topa com a morte, não se deve cumprimentá-la e nem responder ao seu chamado. E foi isso que fiz quando estive de cara com ela. Segui os conselhos dos xamãs e segui meu caminho.  

Quando eu trabalhava na ULBRA, lecionei também no curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva, em uma linha de pesquisa com populações indígenas. Foi o mais próximo que cheguei como pesquisadora da população guarani. Mas eu divergia da postura de alguns professores e alunos, principalmente médicos, e me desliguei do Programa. Eu admiro muito uma sociedade em que não existe o conceito de louco ou de desajustado. Hospital, cadeia e cotiguaçu (a casa onde prendiam as mulheres viúvas) são coisas introduzidas pelas Missões jesuíticas. Havia uma cadeia em cada redução, e a gente vê pelos documentos os principais crimes, que eram a feitiçaria, algum furto, recusa à monogamia.

Nos cursos de Biblioteconomia, de Arquivologia e de Museologia eu orientei alguns trabalhos de conclusão sobre os Guarani. Um sobre as bibliotecas em escolas indígenas, outro sobre a documentação civil dos índios. Foram trabalhos interessantes porque nos deslocam do nosso centro de saberes e precisamos repensar nossos conceitos, nossa visão de mundo. Aprendi, e aprendo muito, com os Guarani.  

Estudando os documentos antigos para a minha tese, dos séculos XVII e XVIII, eu entendi que não sabemos muito sobre os Guarani e que sua sobrevivência está ligada justamente aos segredos que eles guardam até hoje. Na minha tese eu tratei sobre os sonhos e sua importância para as populações indígenas. Imagina o atrevimento de falar em sonhos num trabalho de Arqueologia, que se dedica, em princípio, à cultura material.

P – Como foi a tua inserção acadêmica aqui? Era anterior à ida ao doutorado? Foi depois? Como rolou? Como tu conseguiste conciliar teus interesses de pesquisa com as necessidades acadêmicas?

LDO – Eu recebi uma bolsa de doutorado antes de defender o Mestrado em História. Eu não tinha nenhum vínculo com nenhuma instituição. Fui para Paris só com a bolsa de doutorado. O dinheiro era muito apertado. Eu tive que pedir emprestado, para uma amiga que morava na França, o dinheiro para fazer as cópias da tese.

Mas quando se volta de Paris, como doutora em Arqueologia pela Sorbonne, as pessoas imaginam que a gente vai ao supermercado de tailleur Channel, e que não se tira o salto nem pra tomar banho. Eu voltei do doutorado sem nenhum real. Literalmente não tinha o que comer, se não fosse minha família acolher a mim e meu filho.

Então eu fui trabalhar num projeto da implantação da hidrelétrica de Machadinho. Fui morar em um hotel em Maximiliano de Almeida junto à equipe de Arqueologia da PUCRS, que me acolheu muito carinhosamente. Em dois meses eu troquei a Champs-Elysées das vitrines piscantes de Natal pelos vales escarpados do rio Uruguai, embevecida pelo verde, encontrando com cobras coloridas e urnas funerárias.

Naquele momento não tinha concurso para as universidades federais. Mas recebi uma bolsa de recém-doutor e fui trabalhar na UFRGS com um projeto de arqueologia para os Campos de Cima da Serra. 

Quando acabou a bolsa, abri uma empresa de pesquisa com um amigo arquiteto e historiador. Com ele viajei para cantos os mais remotos, fazendo pesquisas sobre bens culturais e patrimônio. Foi um momento muito feliz para mim, quando conhecemos o Rio Grande do Sul profundo e uma realidade muito diferente da de Porto Alegre.

Nesse período também dava aulas na ULBRA, num programa chamado Brasil 500, que formava professores. Trabalhava durante as noites e nos finais de semana dava aulas na sexta de noite e sábado de manhã e de tarde. Foi muito bonito o contato com essas professoras do interior que vinham até Canoas para estudar História. Era gente de vários lugares do interior, todos sedentos de aprender. Eu olhava para eles e pensava que cada um tinha no mínimo 30 alunos por ano a quem transmitiram o que eu estava ensinando. Sentia a responsabilidade de lhes contar que em uma época que conviveram no planeta três humanos diferentes e que agora só estamos entre nós, os sapiens sapiens, e com que intolerância nos tratamos uns aos outros. Falar sobre os gregos, romanos ou macedônicos. Apontar para o silêncio criminoso que esconde os trezentos primeiros anos da história Rio Grande do Sul. 

Quando abriram os concursos para universidades federais, entrei na UFRGS, em 2005, no Departamento de Ciências da Informação, para lecionar nos cursos de Biblioteconomia e Arquivologia. Lá ajudei a criar o curso de Museologia, no qual trabalhei até me aposentar. Como dizem os Guarani, a gente faz o caminho andando. 

Tive muito bons parceiros na vida. As parcerias mais inusitadas, com Cientistas da Computação, Geólogos, Geógrafos, Arquivistas, Médicos, Fotógrafos, Arquitetos. Ando por caminhos tortuosos, adoro dar aula mas não posso mais lecionar, fui aposentada por invalidez….

P – Como foi o processo da tua doença? Podes contar algo do processo? Como se conta algo desse tipo? Como é viver essa dureza?

LDO – O diagnóstico definitivo de Leucemia Linfoblástica Aguda demorou uns dois meses e foi dado por um laboratório do México porque aqui não era conclusivo. O primeiro médico que me tratou não acreditava que eu estivesse com leucemia porque eu estava muito bem e cheia de energia. Na verdade eu estava num momento feliz da vida. Minha sorte foi estar muito saudável quando tive o diagnóstico. Minha última saída a campo com os alunos foi numa disciplina de Geoarqueologia, que ministrava em parceria de um grande amigo geólogo. Estávamos em campo quando comemos uma frutinha vermelha que me fez muito mal. Chegando em Porto Alegre, fiz um exame de sangue e as taxas estavam inacreditáveis. 

Quando finalmente recebi o aviso do Hospital de Clínicas de que minha internação estava liberada, preparei uma mala com livros, uma mala com algumas roupas e fui para o hospital. E entrei por aquela porta automática, em setembro de 2016, de mãos dadas com meu filho e minha companheira, e com Spinoza embaixo do braço. Nunca me perguntei o porquê de uma leucemia, nem por que comigo. Spinoza sempre me lembra que a vida é inédita. É o que é, é porque é. 

Existe poesia no tratamento da Leucemia (Foto: Pedro Dias de Oliveira) 

Depois de esperar tanto um diagnóstico, foi um alívio poder começar o tratamento. Quando cheguei na ala norte do quinto andar, um centro especializado para tratar leucemias, deixei minha mala de livros, minhas roupas e a vida que eu tinha antes. Foi muito estranha a experiência de parar tudo que fiz durante a vida. Lembro da qualificação de mestrado de um ex-orientando que estava marcada para alguns dias. Primeiro, eu não podia receber o trabalho em papel, então eu tentei fazer o parecer por escrito e o enviaria pela internet. Mas com a quimioterapia eu fui perdendo a visão, a possibilidade de concentração. Não consegui nem ler o trabalho, muito menos redigir o parecer. 

Na primeira internação tudo deu muito errado, entrei com saúde e sai muito fraca por causa de uma infecção que desfigurou meu rosto por algum tempo. E assim começou meu tratamento, que durou um ano de internações com intervalos em casa para me fortalecer para a próxima sessão de quimioterapia. No Quinto Norte os quartos são duplos e o paciente não pode ficar sozinho. O acompanhante tem que dormir e passar o dia numa poltrona. Esse período foi muito duro, pelo tratamento, mas também pela culpa de submeter as pessoas que a gente ama a uma vida dificílima, sem conforto algum. Eu fiquei quase dois meses ali, e minha companheira e meu filho se revezaram nas noites, e nos dias ficavam minha sobrinha e duas amigas porque as entradas eram muito restritas.

Naquele momento eu estava casada e fizemos um acordo tácito. Ela buscava informações sobre leucemia, sobre câncer, sobre a doença, sobre dietas. Eu, da minha parte, me concentrei em viver um dia depois do outro. Me manter respirando, numa rotina bem simples: acordar, tomar café, levantar para tomar banho e sentar na poltrona alguns minutos e deitar. Eu tenho facilidade para dormir, e isso me ajudou muito. Sonhei, tomei muita morfina, muita transfusão de sangue e de plaquetas.

O tratamento da leucemia consiste em desligar o sistema imunológico, como quando reiniciamos o computador. Esse estado, essa condição de não ter imunidade, os médicos chamam de Nadir. Nadir, na mitologia árabe, é centro do mundo, o lugar mais profundo a que se chega na Terra. Entrar nesse estado nos leva a um nada. Uma falta de energia em que não se tem força para um gesto, e não se tem força nem para pensar em fazer um gesto. É como se fosse um pensamento fraco. Fica-se com o conactus, que é essa força de vida que Spinoza fala nos seus escritos. Depois desse estado de nada, a medula volta a funcionar lentamente, e os ossos grandes, os que produzem os glóbulos brancos, doem, doem muito. Minhas médicas diziam que era dor boa. A dor de “pegar no tranco”, no sentido de ligar o motor empurrando. Fica-se com o conactus, que é essa força de vida que Spinoza fala nos seus escritos.

A partir da segunda internação eu fiquei no Terceiro Norte, nome de um livro que estou escrevendo sobre minha experiência nessa batalha. Foram oito ou nove ao longo de um ano, e o Terceiro Norte é uma ala onde pode ter outros acompanhantes. Montamos uma tabela de cuidados, com amigas e amigos que se revezavam manhã, tarde e noite. Era um desfile de arquitetos, arqueólogos, bibliotecários, museólogos, empresários, assistente social, paleontólogos, astrofísicos, astrólogos, cada um com seus assuntos, seus interesses, suas vidas. E eu ficava ali, ouvindo e sonhando com suas histórias. Gente que chegava do México, de Brasília, de Pelotas, de longe, pra passar alguns dias comigo por pura generosidade.

Eu perdi a visão, perdi as forças, perdi peso, perdi o cabelo, todos os pelos do corpo, menos a sobrancelha. Nessas situações a gente entende que é dona do corpo, mas não é dona dos nossos átomos, os mesmos que vieram do espaço. Recebi tanto carinho da equipe do hospital, tanto amor de amigos, tanta mensagem de alunos. Meu filho lia as mensagens de carinho que escreviam pelas redes sociais e eu me derretia em gratidão.

Ali aprendi sobre a fragilidade da vida e o poder do amor. Formou-se uma corrente para me cuidar, aprendi a ser cuidada, aprendi a pedir a mão para aguentar quimioterapia na medula, aprendi a pedir ajuda e agradeço por tudo. Parece meio lugar-comum mas o amor nos localiza nessa longa corrente da evolução humana que é sustentada pela generosidade dos grupos humanos, e pelos nossos filhos e netos, que garantem o futuro.

P – Hoje, quais são teus projetos? Quando teremos teu doutorado e outras maravilhas para ler?

LDO – Quando voltei para o Brasil tentei traduzir meu doutorado, mas ele é muito extenso, são dois volumes. Na França ele foi publicado em livro, em um volume apenas. Mas editorialmente seria inviável sua edição, além de que traduzir é difícil, como se tivesse que reescrever o já escrito. 

Hoje estou me preparando para escrevê-lo em ficção, o que é muito difícil para quem tem o hábito do pé-de-página e de recorrer às fontes, sem poder sair delas. Personagens são dificílimos de criar. Continuo escrevendo aquele romance, de que tu já leste os três primeiros capítulos. 

Estou fazendo um Atlas Histórico com um colega geógrafo, que já está bem adiantado e logo poderemos publicá-lo.

Hoje eu não tenho fôlego para trabalhar como trabalhava antes da leucemia. E nem vejo mais razão para isso. Pretendo continuar minhas viagens para conhecer sítios de arte rupestre, minha paixão. Antes da leucemia eu viajava aos lugares mais remotos para ver pinturas e gravuras feitas há milhares de anos. Há pouco tempo concluímos um trabalho sobre a pintura de um sítio de arte rupestre na Colômbia, o que reúne meu passado na Química. Sinal que o passado está sempre presente no nosso presente. Poder saber de que é feito o vermelho daquelas pinturas, como é a paisagem onde eles pintavam ou gravaram é uma maravilha da ciência. E ao mesmo tempo, aceitar que suas intenções para deixar esses registros continuará a ser um grande e fascinante mistério. 

Mas meus planos mais imediatos giram em torno dos cuidados que tenho com meus canteiros de alfaces, girassóis e cúrcuma. À espera do dia para comer minha própria salada. Cultivo amores-perfeitos, de todas as cores e tamanhos, na esperança de que quando algum monstro, de dentro ou de fora, chegar à minha casa, minhas flores possam abrandar a sua fúria. 

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