Entrevista

Luciano Alabarse – Para além dos boleros da vida

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Luciano Alabarse – Para além dos boleros da vida

Para talvez a totalidade da comunidade cultural de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, assim como para a maioria do mundo teatral brasileiro, o entrevistado de hoje não requer apresentação. Luciano Alabarse é uma figura central no que se tem feito na cidade e no estado desde uns talvez 30 anos, como diretor teatral, seu metiê, como gestor cultural (atuou em governos petistas nos anos 1990, assim como foi secretário de cultura de Nelson Marchezan Júnior, do PSDB – para dar dois exemplos de certa forma extremos), como figura pública que se manifesta em livros e artigos. 

Conheci pessoalmente o Luciano no bastidor de um programa de entrevista da TVE, na virada dos anos 80 para os 90. Era um tempo efervescente na produção cultural do país como um todo – estávamos tirando o atraso do tempo da ditadura, que impediu tanta coisa, direta e indiretamente. Eu estava aguardando para entrar no cenário quando ele se apresentou pra mim, que já o conhecia de fama e de ver montagens suas. E sua primeira palavra foi de elogio: ele disse que adorava meus textos críticos, que eu fugia do óbvio e sei lá mais o quê. Fiquei numa grande felicidade, pelo elogio, naturalmente, mas também porque não é exatamente comum haver elogios de peito aberto. 

O Luciano tem alguns anos de vida mais do que eu, mas somos basicamente da geração cultural e histórica (e de classe), com interesse em entender o que se passa e intervir no debate público. Por isso e por uma amizade que nasceu lá naquele bastidor da TVE e me orgulha muito até hoje, propus essa conversa, que rolou por escrito. (Não disse acima, mas naquele momento o Luciano me sondou para pensar num projeto que ele tinha em mente. Uns meses depois, estava eu ao lado do Coca Barbosa no palco do Porto de Elis, um lugar que marcou época na cidade, o Coca cantando daquele modo forte e sempre significativo, eu lendo umas coisas – uma espécie de embrião do Sarau Elétrico, que aliás se inspirou diretamente em leituras que o Luciano dirigiu na Usina.)

Ia esquecendo de acrescentar que em 1995 o Luciano praticamente me intimou a publicar uns contos que eu tinha – e resultou um livro raro, não sei se único, um autêntico dois-em-um: pegando o volume de um lado, o leitor vai ler Sal na pedra, um livro de poesias dele; pegando pelo outro lado, com outra capa, vai ler meu primeiro livro de contos, O edifício do lado da sombra (editora Artes & Ofícios). Tudo porque o Luciano é um entusiasmado com a arte. 

Com vocês, então, um pedaço da história, da cabeça e do coração do Luciano. 

Luís Augusto Fischer

Parêntese – Começando pelo presente: por que montar um Shakespeare agora, no começo deste novo ano e retomada da direção de teatro? Como te ocorreu essa ideia? 

Luciano – Anos atrás, a convite do Instituto Goethe, fui a Berlim acompanhar um festival de teatro. Na programação, nada menos do que seis peças de Anton Tchekov. Fiquei impressionado e o assunto, inclusive, foi tema de uma entrevista da diretora do festival. Ela disse uma coisa que nunca me saiu da cabeça: quando você está confuso em relação aos rumos do mundo e do teatro, quando não sabe exatamente o que encenar, volte sua atenção aos clássicos, pois está tudo ali. Concordo em gênero, número e grau com esse pensamento. E, na minha carreira, tenho visitado os grandes autores, as peças que são o acervo da dramaturgia ocidental. O primeiro texto que dirigi era do… Tchecov. Os gregos, Shakespeare, sempre são uma surpresa, por mais que se conheça a obra. Nesse contexto, o Brasil tem uma afinidade especial com o bardo inglês. Há sempre alguma obra de Shakespeare em cartaz em alguma cidade brasileira.

No caso da montagem atual, baseada em Ricardo III, as razões são explícitas. O personagem é um dos maiores vilões da lista shakespeariana de vilões. Real, fez o possível e o impossível para chegar ao Poder e lá se perpetuar. É um personagem extraordinário: aleijado, horrivelmente feio, deformado, se presta com perfeição para retratar os ridículos tiranos que, ao longo dos séculos, mancharam de sangue e lágrimas a História humana. A vontade de falar sobre o fascínio desgovernado que o Poder exerce sobre notórios ditadores, de direita e de esquerda, a aproximação com a realidade brasileira e sua classe política atroz, foram determinantes para a escolha do texto. A pandemia ajudou. Eu e o Teatro ao Quadrado (Marcelo Ádams e Margarida Peixoto) tivemos bastante tempo para conversar, discutir e construir, ou desconstruir, a dramaturgia que nos interessava alcançar.


LUCIANO ALABARSE com MARCELO ÁDAMS durante os ensaios de Medéia © Flávio Wild, 2007.jpg

Fizemos quatro apresentações no “Porto Verão Alegre”, e foi emocionante. Mesmo. Reações solidárias do pessoal do teatro, o público vencendo o medo de sair de casa, algumas reações indignadas de bolsonaristas irados com o texto, tudo contribuiu para o clima mágico da primeira temporada.

Importante frisar que Shakespeare é o começo, a inspiração, e que o arcabouço cênico das cenas da tragédia está todo no espetáculo, mas o texto final agrega nossas observações sobre o país em que vivemos. Espero que a montagem continue em cartaz e mobilize o público.

P – Tua carreira se conta em décadas, já. Como começou? Tu ias ao teatro em Porto Alegre antes de ingressar na faculdade? A televisão tinha força já na tua adolescência? E o cinema? 

L – Esses dias, do nada, lembrei que a primeira peça que dirigi, “O Canto do Cisne”, do Tchecov, estreou no longínguo ano de 1974. Ou seja, daqui a dois anos completo 50 anos do ofício. Sou um diretor teatral. Nas fichas de hotel, nos créditos de entrevistas e artigos, é assim que gosto de ser apresentado: diretor de teatro. Nunca me interessei em ser ator, por exemplo, ou exercer alguma atividade técnica ligada à formalização dos espetáculos. Sempre me interessei pela arte da encenação. Admiro a expressão célebre do Peter Brook, aquela que fala do “espaço vazio”. Ser diretor é preencher esse espaço, criar um mundo, uma linguagem, experimentar texturas e densidades criativas. Isso ainda me encanta e mobiliza como lá no início.

A primeira peça a que assisti como público, sozinho, foi Prometeu acorrentado, no Teatro de Arena. Tudo era novo e misterioso pra mim. Depois do terceiro sinal, tudo escuro, uma voz anunciava “um minuto em homenagem à dor humana” e, no breu do teatro, o elenco a urrar e chorar em altíssimo volume. Foi um impacto do qual nunca me recuperei… mas não tinha o hábito de ir regularmente ao teatro, não.

Minha relação com a cultura acontecia prioritariamente através da música brasileira, os festivais, os programas em preto e branco da TV Record original – O Fino da Bossa, Bossaudade, Esta Noite se Improvisa. Para o adolescente da vila Bom Jesus, era uma epifania atrás da outra. O tropicalismo me atravessou e abriu minha cabeça para sempre. Tinha as novelas também. Sempre gostei de novelas, acompanhar o desempenho dos atores, a dramaturgia. E as coleções que minha mãe me presenteava religiosamente. Lembro que eu li grandes clássicos universais muito jovem, sem preparo nenhum. E eu gostava de ir ao cinema, as matinês do Rio Branco aos domingos, programa duplo, troca de gibis, tudo o que marcava infância e adolescência da época. Tinha uma imaginação delirante, brincava de rádio, dava aulas imaginárias para classes imaginárias. Esse período me formou e me acompanha sempre, cada vez percebo isso com mais clareza.

P – Tu já contaste mais de uma vez que tua inscrição para o vestibular sofreu um pequeno desvio, não foi? Conta essa.

L – Já contei algumas vezes, sim. Essa história definiu o rumo da minha vida profissional de forma irreversível. Sempre, desde menino, tinha como meta ser professor de línguas. Português, mais especificamente. O português me fascinava desde muito pequeno. Contam, na família, que eu queria falar as palavras corretamente, a ponto de fechar as mãozinhas com força, ficar vermelho diante dessa tarefa. Eu empacava nas palavras e ficava ali até resolver a questão. Ser professor de português era, assim, o meu destino natural quando ficasse adulto. Sempre fui um excelente aluno, gostava de estudar, tinha os conteúdos das aulas devidamente decorados. Todo mundo, eu incluído, tinha certeza que passaria fácil no vestibular. E, no ano que me coube a prova, houve mudanças significativas em relação ao ingresso na universidade. O vestibular unificado deixou muita gente na dúvida. Havia formulários a serem preenchidos. No meu caso, preenchi o meu e cravei um xis uma linha abaixo do curso de Letras. Por minhas próprias mãos, como vi depois ao questionar minha escolha junto à faculdade, escolhi a licenciatura em Artes Cênicas. Passei direto.

Foi um tsunami na família, meu pai não aceitou, disse que não me daria mais um centavo se eu insistisse nessa loucura. Eu só queria fazer o curso pra não ficar parado um ano inteiro. Pra me sustentar, me inscrevi no concurso da Justiça Federal que estava aberto. Passei também. Fiquei 37 anos como servidor concursado do Judiciário, onde me aposentei há mais de 10 anos já.

Hoje, tenho certeza de que fios invisíveis comandaram essa história meio absurda. E lembro até hoje do impacto da voz do Luiz Paulo Vasconcellos na primeira aula do curso. Ali, tive certeza de que minha vida mudaria completamente. Gosto da ideia de que, assim como os heróis da tragédia grega, cheguei ao meu destino através da hybris, do erro, da decisão dos deuses do teatro, e que minha vontade foi conduzida sem pedir minha opinião. Havia uma vida a ser cumprida, e fios imponderáveis me guiaram até ela. Não estou inventando nem ampliando a história. Foi assim mesmo. Sou um herói trágico (risos).

P – Aquele teu livro experimental Sem essa, aranha!, é de 1982, certo? Ali já estava configurada toda uma relação tua com o vasto campo da canção brasileira, essa riqueza inesgotável. Conta como foi a concepção, a produção e a circulação dele.

L – Sem essa, aranha! foi o meu segundo livro independente. O primeiro foi o Aquele Um. Ambos sinalizam minha relação de maravilhamento com a música brasileira, seus poetas, seus versos, suas canções epifânicas. Era uma época propícia para lançamentos de produção coletiva. Muito antes desses mecanismos atuais de arrecadação, uma galera conseguia viabilizar seus projetos literários vendendo bônus que antecipavam a arrecadação necessária à publicação. Lembro de Ana Maria Taborda e Suzana Kilpp publicando prosa e poesia com esse tipo de financiamento. Eu também. A Proletra era nossa gráfica e editora, e até hoje o Schmitt mantém seu negócio em pé.

As letras tropicalistas fizeram minha visão de mundo crescer. Caetano sempre foi a voz que apontava os meus futuros possíveis. Mas não só. Torquato Neto ainda é referência forte e viva pra mim. Gil, Chico, Milton, Edu, todos bambas, todos músicos incríveis, todos referências reais. A poesia marginal me encantava. Roberto Piva, Glauco Mattoso, Capinam, Waly Salomão, Antônio Cícero. Ainda são as vozes que me mobilizam, que paro pra ouvir. Sem saudosismo, sem nostalgias paralisantes. São forças da natureza, irmãos, mestres. Devo a eles meu jeito de pensar e agir.

Lembro que o Paulo Hecker Filho falava maravilhas sobre o Sem Essa, Aranha!, escreveu algumas resenhas muito elogiosas, disse que eu era um gênio e exageros desse nível. Mas, tanto naquela época quanto hoje, o que me interessa é o processo de criação, o projeto da hora, o trabalho exigindo resultado. Depois, com a coisa pronta (teatro, literatura, eventos) já estou ligado no próximo lance, no que virá, no que vai me desafiar para a frente. Meu ascendente em Aquário explica esse meu traço. Parece clichê, mas pra mim não é: a palavra é sagrada, um portal de acesso ao desconhecido. Por isso, leio tanto, porque quero acompanhar aqueles que escolheram esse árduo ofício. Ainda gosto muito de escrever e escolhi um teatro onde a palavra é o eixo da criação cênica. Palavras, palavras, palavras, como já disse um Hamlet desassossegado. Assino embaixo.

P – Tu tiveste relações de grande valor, intelectual e existencial, com figuras que ao longo do tempo se destacaram na cena cultural do sul. Para lembrar dois casos, o Caio Fernando Abreu e a Adriana Calcanhoto. Conta um pouco da tua amizade e da tua parceria com eles.

L – Caio e Adriana são pessoas extraordinárias, artistas de primeira, companheiros de viagem muito amados, irmãos muito amados. Guardo ambos em um lugar especial do meu coração. Acompanhei Caio vida afora, em sua aventura humana, às vezes errática, às vezes luminosa. Tinha a impressão que ele nunca estava satisfeito onde estava. Se estava em Porto Alegre, queria estar em São Paulo. Em São Paulo, sonhava com Londres. Em Londres, queria a Holanda. Assim, insatisfeito e circular, em permanente deslocamento. Prosa e poesia afiadas, sua palavra era uma arma que ele usou com destreza e disciplina, logo ele, um rebelde de carteirinha. Quase um monge zen em relação à sua obra.

Nunca perdemos o contato, nunca deixamos de nos escrever e estive com ele até sua morte, noites adentro molhando sua boca ressecada pela morfina. Caio era leal, temperamental, divertido, depressivo, genial, um escritor de primeira. Sua obra era seu espelho. Em Recife, um jovem ator se parou a tremer na minha frente quando descobriu que eu era o “o Luciano do Caio”.

Tantas histórias partilhadas com ele, reparto aqui uma das últimas, muito comovente.

Fomos, eu e ele, assistir a um show de Leila Pinheiro na Reitoria. Sábado, noite quente, nenhum vento no pedaço. Leila, impecável, dedicou o show a ele, disse-lhe palavras amáveis e ele ao meu lado sem esboçar nenhuma reação. Não curtiu o show, cujo repertório bossa-novista não o empolgara. Saímos e atravessamos a Redenção, noite silenciosa e apaziguadora. Quando vi, Caio estava com lágrimas nos olhos, cantando “Noite de Paz”, uma canção-oração da Dolores Duran. Não dissemos nada, eu comecei a chorar junto e foi desses momentos redentores de uma vida inteira. Inesquecível. Tenho alguns cadernos dele, com sua letra miúda, originais preciosos. Sempre lembro dele. Caio era uma luz na minha vida, luz que às vezes cegava, mas luz intensa e pura. Era o meu irmão escolhido, e ainda é. Sempre será.

Adriana é uma das artistas mais inteligentes da música brasileira. Acompanhei de perto o início de sua carreira, seus primeiros passos. Sempre, desde o começo, a admirei profundamente. Lembro a primeira vez que conversamos, no mezanino do Clube de Cultura, ela me esperando pra gente conversar. Aí me convidou pra dirigir seu primeiro show no Porto de Elis. A gente não se largou mais. Dirigi seus shows, em uma sequência crescente de sucesso afirmativo. A voz, a afinação, suas canções sempre me emocionaram e emocionam. E ela tem uma visão determinada de administração de carreira que a levou a chegar a esse lugar especial que hoje ocupa. Merece. Merece tudo o que conquistou. Somos amigos até hoje, mantemos contato, rimos juntos, falamos muito sobre música. Adrix, como eu carinhosamente a chamo, é merecedora de todos os carinhos e elogios. Adoro ela.

P – De repente, depois de uns vinte anos do começo da tua carreira teatral, tu ingressaste na vida da política cultural, em 1993, momento que eu lembro bem porque estava por perto. Teve alguma particularidade, da tua parte, do teu sentimento, da tua percepção das coisas, nessa virada em direção à arena pública? Tu tinhas algum projeto claro?

L – Nada na minha vida, pessoal ou profissional, foi planejado cartesianamente. Deixei, e deixo, a vida me levar, e tem sido bom assim, tem dado certo. Trabalhei desde os dezoito anos no Poder Judiciário, e gostei de tudo que aprendi ali, dos horários, das metas e responsabilidades do meu setor de Recursos Humanos. 37 anos. Passaram voando.

Trabalhei 37 anos ali, paralelo às minhas atividades artísticas, à minha carreira teatral. Geminiano com ascendente em Aquário, tirei de letra. Não sofri, não me vitimizei, não deixei de fazer nenhuma peça, viajar, viver. Escolhi esse trabalho, muitos dos meus amigos de profissão escolheram ser professores universitários. A maioria. Nunca pedi financiamento público para fazer o teatro que me interessava. Assim como nunca quis me filiar a partido nenhum, não quis receber dinheiro público pra desenvolver minha arte. Decisão pessoal e intransferível, válida somente para mim mesmo. Sou a favor que existam leis regulamentadas e de apoio ao financiamento cultural. Para todos os outros. No que me diz respeito, minha escolha foi a de não depender da verba pública para os meus projetos. E, mesmo assim, consegui levar adiante os meus sonhos teatrais, os meus desejos de artista. A necessidade, tem isso também, me levou a abraçar a produção dos meus espetáculos, e a verdade é que gostei muito de ter a rédea administrativa do meu trabalho. Ter em suas mãos as decisões artísticas e financeiras foi sempre a meta a ser implantada na minha vida profissional.

Assim, quando surgiu a oportunidade de colaborar com a administração municipal, me senti tranquilo e preparado. Não era nenhum principiante, entendia os dois lados do balcão e levei toda a experiência amealhada nos anos anteriores para o novo desafio. Na fase inicial desse período, sob a administração petista, encontrei grandes figuras, homens públicos cheios de dignidade, alguns que têm meu respeito até hoje e com os quais aprendi muito. O (Carlos) Branco, o (Fernando) Schuller e tu, Fischer, companheiros dessa fase, foram e são modelos pra mim. Como tudo que abraço participar, entrei de cabeça. Mas não havia um projeto anterior, a vontade de virar um agente público, um agente político. Isso nunca passou previamente na minha cabeça, nunca foi planejado. Aconteceu, e foi bom. Me abriu muitas portas, me deu experiência e maturidade, me afastou de leituras simplistas da ação política. 

Agora, o principal pra mim: nunca me filiei a partido nenhum. Nunca quis. Nunca passou por aí minha contribuição como agente público. Me sinto mais confortável assim, mais livre pra concordar ou discordar de discursos partidários. Hoje em dia, dou graças a Deus, por não ter filiação partidária. Vejo os partidos muito parecidos uns com os outros, mesmas práticas. São adversários, são antagônicos e, ao mesmo tempo, me parecem tão iguais nas suas práticas e metodologias. Não ter que passar o cheque em branco para partido algum é um alívio pra mim, sempre foi. Mas respeito quem escolhe esse caminho, quem sinceramente acredita que essa organização facilitará mudanças e conquistas. O meu caminho, minha escolha, é outro. 

O que alguns criticam como oportunismo da minha parte, para mim é a forma como encontrei de poder sair de qualquer circunstância partidária constrangedora. Não vejo nem interesse nem ingenuidade nessa postura. Quero o melhor dos mundos – para mim e pros meus semelhantes. O meu barato intelectual é ficar centrado em ideias tropicalistas, humanistas, modernizantes. Não me vejo defendendo discursos por obrigação, argumentos em que não acredito, bandeiras partidárias. Por isso, não me enquadro nesse papel de militante partidário. Não gosto. Não consigo. Não é pra mim. Mas não me furto, e não me furtei nunca, a discutir e colaborar para tudo que melhorasse o ambiente cultural da cidade. Essa postura tem me trazido amizades e parcerias maravilhosas, independente de cores partidárias. E também tenho recebido críticas raivosas, xingamentos rancorosos de gente que me acha um baita interesseiro. Lamento por esses, não sou.

O poder desses cargos públicos nunca me fascinou. O trabalho e as portas que a gente consegue abrir estando neles, sim. Mas é da vida. A gente não agrada todo mundo, muito menos os fanáticos de carteirinha. Se a gente quiser, encontra muitos em Porto Alegre. Não tenho paciência, não tenho vontade de responder a tudo que querem creditar me acusando. Tenho preguiça, admito. Não levo a sério esse tipo de gente.  Faz parte. Que caia o leite bom sobre os caretas!

P – Já nesse primeiro trabalho político teu, tu foste o protagonista da invenção do Porto Alegre EmCena. Conta um pouco essa passagem: de onde veio a ideia, com quem tu contavas, que propostas circulavam, que problemas aconteceram, etc.

L – Meu primeiro cargo junto à prefeitura municipal foi o de Coordenador de Artes Cênicas. O secretário de Cultura era o Pilla Vares, do PT. Grande Pilla. A equipe era uma espécie de “dream team” da cultura local, quase inacreditável nos dias de hoje: Carlos Branco, Luís Augusto Fischer, Andrea Bonow, Fernando Schuller, entre outros. Aprendi muito com essa turma, nas reuniões de coordenação semanais que eram feitas religiosamente, e onde discutíamos todos os projetos da Secretaria. O prefeito era o Tarso Genro e seu colaborador principal era o José Eduardo Utzig. Utzig veio a ser um dos grandes amigos da minha vida, um político acima da média, culto, inteligente, não dogmático. E, por ser assim, levou pedrada atrás de pedrada de gente que não tinha nível nem biografia pra isso. Tinha uma filha pequena quando teve uma parada cardíaca. Uma perda imensa.

Voltando: em uma reunião na Secretaria, Utzig desafiou a equipe para trazermos grandes e novas ideias para a área da cultura local. Alguns apresentaram. Lembro que o Schuller tinha um outro projeto e o Pilla se viu compelido a escolher um dos dois. Um, do Fernando Schuller. O outro era o que implantaria o “Em Cena”. Nosso argumento principal era que faltava um evento internacional na área, que conectasse Porto Alegre com a vanguarda da criação mundial. Para surpresa de todos, o Secretário escolheu o festival para ser implantado ainda naquele ano. Foi uma correria grande, muitas reuniões, opiniões conflitantes, todo mundo sem saber muito bem como fazer a implantação do projeto. Fazíamos muitas reuniões para discutir o assunto. Uma delas foi feita na casa do Luiz Paulo Vasconcellos e da Sandra Dani, figuras referenciais do teatro gaúcho. Foi ali, naquela noite, que batemos o martelo, com a concordância do Pilla, e o “Porto Alegre Em Cena” nasceu oficialmente.

Daquela noite até hoje, uma trajetória digna de registro. Trouxemos a Porto Alegre nomes reverenciados e, até então, distantes da cidade. Peter Brook, Ariane Mnouchkine, Bob Wilson, uma espécie de trindade divina das artes cênicas internacionais, vieram mostrar seus espetáculos. Mas não só. Pina Bausch, Pátrice Chéreau, Zé Celso… Impossível fazer o inventário completo aqui, mas aconteceu e acontece ainda — quase 30 anos decorridos daquelas trepidantes noites iniciais. O festival, agora sob o comando do Fernando Zugno, continua firme e potente. Fernando está fazendo um trabalho autoral digno de registro. Eu olho e fico feliz por ter construído, junto a uma equipe de gente idealista e qualificada, uma das marcas culturais da cidade. São incontáveis e divertidas as histórias do Em Cena. Que aqueles que estão no comando municipal entendam sua importância e relevância, para muito além de partidarismos vãos, vaidades tolas e afirmações egoicas. O “Em Cena” é maior que tudo isso. Porto Alegre precisa do “Em Cena” e de seus eventos culturais para afirmar a cidade como polo de referência no Brasil. Como sempre, lidamos com gente que defendia outras ideias, outros formatos, outros encaminhamentos para o festival. Sempre pensei que essa turma queria mais auto-benefícios do que realmente melhorar o festival. Sempre existem, em todas as áreas, “os do contra”. Faz parte. É inevitável. Mas, como ensinou Torquato Neto, é preciso não dar de comer aos urubus.

P – Tu também foste o centro da política cultural de integração com o Mercosul, nos anos 1990, com aquelas lindas iniciativas de Porto Alegre em Buenos Aires e em Montevidéu, e vice-versa. Como aquilo pôde acontecer? Que obstáculos, reais e imaginários, tiveram que ser superados?

L – Esse projeto está diretamente ligado à realização do Porto Alegre em Cena. Simbolicamente, na primeira edição, convidamos um espetáculo argentino para sinalizar nossas intenções futuras. Era uma peça do Eduardo Pavlovsky, e o produtor da peça era o Carlos Villalba. O encontro com Carlitos foi fundamental, o elemento que impulsionou sonhos e realizações de intercâmbio. Apaixonado por música brasileira, logo se enturmou com os músicos gaúchos e abriu as portas de Buenos Aires para esse intercâmbio. Até hoje, rimos muito ao lembrar que tudo começou com a quantidade absurda de erros e falhas daquela primeira edição do festival. A participação argentina, por nossa inexperiência, foi um fiasco de logística, a gente aprendeu na raça. Ao me despedir dele, Carlitos se pôs à disposição para qualquer projeto que eu precisasse dele na capital argentina. Depois me confessou que tinha sido meramente polido e educado, mas que nunca mais queria nos ver, os produtores gaúchos, pela frente. Só que eu não me dei conta e acreditei nessa oferta. Meses depois, mandei um email falando de planos que me passavam pela cabeça, de uma mostra significativa do teatro portenho contemporâneo. Ele respondeu e aí começou tudo. Levamos muitos artistas gaúchos lá pela primeira vez. Vitor Ramil, Adriana Calcanhotto. O “Tangos e Tragédias” parou a avenida Corrientes. Peças de teatro, espetáculos de danças, escritores, palestras… foram edições memoráveis. As rotas foram abertas. Estão aí buscando novos formatos, gestores que acreditem nesse ideário.

Em Montevideo, graças ao contato com o casal Jorge e Irene Arias, fizemos o mesmo percurso de intercâmbio. Mais uma vez, foi graças ao Em Cena que ganhamos esses dois amigos e parceiros fundamentais. Jorge e Irene (que recentemente nos deixou) foram essenciais para o intercâmbio teatral entre as duas cidades.

Esses projetos foram ações de governo, referentes à política cultural – hoje sem continuidade, mas que, para além de toda a descrença e desconfiança de alguns, aconteceram. E, para além do evento de intercâmbio, as relações pessoais também geraram e continuam gerando belos frutos artísticos.

P – E por que, na mesma época ou depois, não se criou uma política regular de intercâmbio com cidades brasileiras? Deveria ter acontecido algo assim? O que te parece? 

L – Política regular em relação às atividades culturais, no Brasil, é uma utopia que não se sustenta na vida real, com essa circularidade de Poder onde quem chega quer negar tudo o que foi feito antes de sua chegada. Muito difícil um governante aceitar que governos anteriores acertaram. Estou certo quando digo isso? Acho que sim.

No nosso caso, fizemos uma tentativa de intercâmbio com Santo André, quando o Celso Frateschi era o secretário de Cultura de lá. Saiu o Celso, não houve interesse de seu sucessor em continuar o projeto. Ficou apenas na sua edição inicial. Com Recife, através do Em Cena, durante anos fizemos intercâmbios entre os dois festivais. Recebemos muitos grupos de lá. E levamos grupos daqui para o “Janeiro de Grandes Espetáculos” deles. O Maggiluth, hoje um dos grupos teatrais mais famosos do Brasil, veio ao Em Cena muitas vezes, fruto dessa ideia. O “Janeiro”, por sua vez, mudou muito nos últimos anos. Mas o que fizemos, colocar em contato nossos grupos, ainda está pra ser dimensionado melhor.

Claro que uma política de intercâmbio cultural é desejável e bem-vinda. Isso envolve, além da vontade política, orçamento, previsão financeira, reciprocidade, parceiros e patrocinadores. Aí começam os gargalos que asfixiam muitos desses planos. E não estou falando só do desgoverno Bolsonaro. Com maior ou menor visibilidade, esses gargalos existiram e pedem muita persistência e obstinação para serem resolvidos. Políticos que conheçam e levem a sério a cadeia criativa da cultura brasileira são exceções. Apostemos neles para que esse quadro mude.

P – Tu permaneceste ligado à política cultural por muitos anos, diretamente, em cargos importantes. Depois da secretaria da cultura de Porto Alegre veio uma temporada em Canoas e uma volta à cultura da capital, na gestão do Marchezan. Como pôde ter acontecido tudo isso, por tanto tempo, pensando no jovem Luciano, que era ligado ao mundo da política e da ideologia, como artista, mas acho que não parecia inclinado à gestão cultural?

L – A vida não é um fato consumado, previamente determinado lá atrás, sem evoluções e mudanças. Comigo, em mim, a vida sempre traz desafios e escolhas novas. Mesmo no teatro, essa atualização é necessária e bem-vinda. Para o menino que eu fui, da vila Bom Jesus, tudo era e continua sendo mágico, misterioso e real ao mesmo tempo. Não perdi o encantamento pela vida, pelo ofício teatral, pelas oportunidades inesperadas que bateram à minha porta. Aquele menino habita o adulto que eu sou, e isso não é uma fantasia piegas. Estou sempre procurando a mudança, o novo, o desafio. Isso não é planejado, vai acontecendo, simples assim. Isso se aplica, naturalmente, às colaborações que aceitei fazer, em diferentes cargos, na realidade cultural que me circundava e circunda. Nunca me filiei a nenhum partido, resisti a todas as ofertas e pressões para que isso acontecesse. Tenho hoje um histórico de mais de vinte anos de colaborações com governos de partidos diferentes. Não mudei meu jeito de ser e pensar, levei comigo minhas ideias, utopias, desafios. Peito aberto, coração leve, muita vontade de trabalhar. Enfrentar a realidade pública em relação à cultura requer preparo, pé-no-chão, resiliência. Foi e é um período de grande aprendizado. Para qualquer um que aceite a tarefa, o encargo. Houve frustrações, sem dúvida. Mas alegrias também: convivi com o Tarso e o Raul assim como convivi com o Jairo Jorge e o Marchezan. Com todos, procurei fazer o melhor ao meu alcance. Não me coloquei numa posição de subserviência, mas de colaborador. Funcionou, na minha avaliação. E essa convivência me amadureceu muito, cada um contribuindo para que eu fortalecesse meus conceitos e critérios. São homens de bem, todos eles, com suas características específicas.

Mas vamos reconhecer: há um tipo de militante partidário que não aceita que participemos de governos adversários, jogam pesado em relação à tua honra, te tratam como “traidores”, fazem questão de falar mal e sem freios. Estabelecem verdades antes de olhar os fatos. São verdadeiras máquinas de triturar reputações. Vivi isso tudo, aqui, em maior ou menor escala, resguardadas as características de Porto Alegre, em relação à minha participação no governo Fogaça, no governo Marchezan. Mas continuo achando que é fundamental aprendermos a conviver com políticos que pensem diferente e que cumpram as regras básicas do bom-senso democrático. Eles não são golpistas, chegaram ao cargo através de eleição, não via e não vejo por que rejeitar dialogar com ambos, colaborar com mão-de-obra especializada. Nunca aceitaria colaborar com o governo Bolsonaro, por exemplo, aí não dá. Mas colaborar com o governo Marchezan, pra ir a um ponto polêmico das minhas decisões vida afora, não é a mesma coisa. Pra mim, não é. Marchezan não é Bolsonaro. Nunca foi. Não é corrupto, não é ladrão. Tem lá suas convicções controversas na área cultural, e algumas não batem mesmo com a minha percepção da realidade vivida pela comunidade cultural. Tentei mostrar a ele o que eu pensava. Muitas vezes o prefeito ficou nervoso com minha postura, mas, quando discordou, sempre teve um respeito democrático e chegava a me apresentar aos outros como “o representante de esquerda do meu governo”. Tivemos uma relação cordial, vi suas encruzilhadas. Ele perdeu a reeleição para ele mesmo, na minha opinião. Gosto dele, é um homem de bem. Não posso falar o contrário.

Fatos marcantes do início da gestão, vale registrar, tiveram em mim uma postura firme. No caso da exposição do Santander, não deixei a Prefeitura apoiar nenhum gesto de censura ou solidariedade ao cancelamento do evento. Também bati pé para que a peça do Jesus travesti, no “Em Cena”, não fosse cancelada. O prefeito ouviu e aceitou meus argumentos. Não sei se ele concordou comigo. Mas aceitou e fez prevalecer no governo a posição do secretário de Cultura, isso é fato. Trabalhamos, eu e a minha competente equipe, com restrições orçamentárias severas. Tudo me parecia difícil e precário. Tudo o que fizemos e tentamos fazer foi uma luta. Mas fiquei até o fim, um dos únicos dois colaboradores que chegaram ao final do mandato do prefeito. Aprendi no osso.

Muitos torceram o nariz para minha participação nesse governo, eu não. Cumpri um papel ali, de zelar pelo que era possível manter de pé. Conheci gente legal e valorosa. Não me deixei seduzir pelo canto da sereia conservador e reacionário. Agora, minha experiência mostra que esses embates fortalecem. Lidar com gente que carrega muitos decibéis acima no tom crítico, que te fazem acusações grosseiras e te colocam num pedestal de direita, de forma leviana e maldosa, em mim aprofundou meu destemor em pensar pela minha cabeça e não pela dos outros, vou trabalhar sempre para não deixar a cidade ser comandada por fundamentalistas com sangue nos olhos. Não se deve dar de comer aos urubus, como escreveu o poeta.

Saí exausto, decidido a ter um ano apenas voltado às atividades culturais. Fiz a Feira do Livro de Canoas, dirigi uma peça que estreou muito bem, capitaneei as homenagens merecidíssimas aos 80 anos do Luiz Paulo Vasconcellos. O álbum sobre ele está prestes a sair do forno. Já vi as provas. O livro tá lindo. Vem mais coisa por aí. Como diz o Caetano em uma canção recente: superaremos câimbras, furúnculos, ínguas.

P – Dessa longa trajetória na política cultural, qual o saldo? Tu te arrependes muito fortemente de alguma coisa, alguma ideia, alguma ilusão? Tu cogitas voltar a essa berlinda, que é tão sugadora de energia mas permite, no fim das contas, fazer coisas bacanas?

L – Não sou um homem de ficar olhando pra trás, pensando no passado, no que foi feito. Simplesmente gosto mais de olhar para a frente, viver o presente. Como o verso da música do Milton: se muito vale o já feito, mais vale o que virá.

Tentando responder objetivamente: não tenho nenhum arrependimento, nunca me aproveitei pessoalmente de algum cargo em benefício próprio, sempre pensei no coletivo. Sou do teatro, do trabalho em grupo, sei que quando aprendemos a trabalhar em conjunto as coisas acontecem melhor. O saldo é positivo, muito positivo, mas insuficiente. Estou vivo, me sinto capacitado para viver o presente, projetar planos futuros, provocar a caretice persistente desses tempos difíceis através do teatro. Não estou fechado para nada, não estou planejando nada. Como disse, estou envolvido em projetos culturais aos quais atribuo relevância. Sempre quis isso, participar ativamente da vida da cidade, na minha área, na minha esfera de realizações. Cargos políticos não me interessam enquanto profissão. Não me vejo vereador, deputado, essas coisas. Nunca. E o time piora a cada ano, me parece. Com exceções dignas de registro, há muita truculência e despreparo nessa turma.

Não me iludo: há muita impaciência e despreparo ao redor da coisa pública. Muita gente se achando a última bolacha do pacote, sem ser. Pessoas com sangue nos olhos que não admitem mansidão, tolerância e diversidade. Não estou falando genericamente, falo da nossa aldeia mesmo. Mas não quero citar nomes, personalizar rancores, dar cartaz pra quem não merece. Não gosto de peso, inveja, falsidade. E a vida me trouxe amigos extraordinários. Por esses sim, me multiplico, me arrebato, me supero. Na tua pergunta está a melhor resposta para a questão: essa berlinda, sugadora de energia, permite, sim, fazer coisas bacanas. Acredito nisso e não ligo pra cara feia. Sigamos todos.

P – Da tua imensa trajetória como diretor, tu terias como destacar cinco passagens, cinco montagens, cinco direções que, olhando de hoje, te parecem mais luminosas que as demais?

L – Na minha já longa carreira de diretor, tenho muitas peças que me orgulho de ter colocado em cartaz. Mas vou tentar, sem pensar muito, lembrar de cinco montagens que me deixaram com a sensação de criação teatral importante.

“Pode ser que seja só o leiteiro lá fora”, do Caio Fernando Abreu, por todas as razões. Tinha um cenário impactante, a trilha da Meredith Monk que fez furor, a estreia do Gilberto Gawronski nos palcos e duas canções inéditas do Carlinhos Hartlieb – que ele fez a meu pedido.

“Almoço na Casa do Senhor Ludwig”, primeira peça da Trilogia Bernhard, apresentando a obra do austríaco ao Brasil, texto nunca antes montado no país. Luiz Paulo Vasconcellos estava sublime na criação do personagem que lembrava ficcionalmente o filósofo Wittgenstein. Viajamos o Brasil inteiro com a peça, sempre com críticas muito favoráveis.

“Bodas de Sangue” marcou meu encontro com a obra genial de Federico Garcia Lorca. As danças ibéricas, o flamenco, a poesia do autor, tudo era mágico ali. Eu adorava.


ANTÍGONA, direção de LUCIANO ALABARSE, com José Baldissera © Flávio Wild, 2004

“Antígona”, uma parceria com a Kathrin Rosenfield e Lawrence Pereira, tinha uma produção grandiosa, trilha inédita do Arthur de Faria, figurinos deslumbrantes. Foi solenemente ignorada pela crítica, mas encheu o teatro em todas as suas apresentações. Muita gente torceu o nariz pra concepção do espetáculo, bem coisa de Porto Alegre. Quanto mais passa o tempo, mais valorizo as escolhas daquela direção.

“Heldenplatz”, também do Thomas Bernhard. Não quis usar o nome português, “Praça de Heróis”. Quis o nome original. Cheguei a ir a Viena, conhecer a Praça, me sentei em um banco de frente ao púlpito onde Hitler declarou a anexação da Áustria ao regime nazista, fiz o circuito dos bares e teatros frequentados pelo autor, foi uma viagem inesquecível. Na primeira noite, assisti uma montagem de Bernhard, em cartaz apenas naquele dia. Não entendi uma palavra, mas estava emocionado ali, no teatro onde ele criara muitos textos e personagens. A montagem trazia a magia do teatro em toda plenitude, elenco afiadíssimo. Eu adorava aquele jeito clássico de montar uma peça tão contemporânea.


HELDENPLATZ, direção de LUCIANO ALABARSE, com Luiz Paulo Vasconcellos © Flávio Wild, 2005

“O Inverno do nosso descontentamento”, a peça recém-estreada, teve uma empatia tão forte com o público, que merece estar aqui, representando a emoção que o teatro desperta, meu “hoje” teatral, a vontade de falar sobre o Brasil de agora sem cair em simplismos reducionistas, essa comunhão tão necessária entre palco e plateia.

Poderia citar “Reunião de Família”, a adaptação que o Caio fez da obra da querida Lya Luft. Ou “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues. Ou o show que dirigi com Tânia Carvalho, Adriana Calcanhotto e Annie Perec no Porto de Elis. Mas aí eu extrapolaria em muito a ideia da pergunta. Fiquemos por aqui.

P – E a tua poesia? Quanta gaveta tem para ser publicada? E o que mais vem vindo por aí? Um livro de memórias? Seria bom, hein?

L – Acabamos de fazer, eu, Letícia Vieira e Flávio Wild, o livro dos oitenta anos do Luiz Paulo Vasconcellos, meu maestro soberano, meu querido professor de direção, amigo dileto, eterna luz guia da minha vida profissional. Nesse período, ouvi várias vezes que devia contar minha própria experiência, minha história. Talvez um dia, mas não hoje. Não sinto vontade de pensar agora minha trajetória, tampouco descarto a ideia. Vamos deixar a vida nos apontar a hora certa.

Gosto de escrever, escrevo desde sempre e com prazer. Acho que, hoje, com tanta vivência assimilada, escreveria com muito gosto. Prosa. Poesia. O que estabelecesse como uma meta. Mas agora estou envolvido com outros projetos de teatro, algumas novidades pela frente. A adaptação teatral de “Precisamos Falar sobre o Kevin”, um espetáculo sobre a trajetória extraordinária da Lourdes Rodrigues… A literatura fica sempre esperando… mas, pelo menos, leio como um louco delirante.

Queria terminar lembrando a experiência conjunta de quando publicamos um livro juntos. Minhas poesias ali reunidas tinham o nome O Sal na Pedra. Eu adorava. Recebi o nariz torcido de uma galera que escrevia na Zero Hora. Uma crítica tinha o título de “Nem os Boleros conseguiram ir tão fundo”. Se o cara queria me arrasar, me jogar no lixo cafona daqueles que não tem estofo pra gostar de boleros, conseguiu o contrário. Foi o maior elogio que recebi na vida. Sério. Se eu consegui ir além dos boleros que habitam minha trilha sonora da vida inteira, sou um cara sortudo. Os deuses me abençoaram, pelo visto. 

Estou sempre lendo, escrevendo artigos sobre livros que me impactaram. Há muita gente nova escrevendo, autores sensacionais. Aqui mesmo no Rio Grande do Sul, José Falero, Jeferson Tenório….como não aplaudir gente assim. Fico tão feliz com a obra desse pessoal que vou adiando a minha incursão na área. Mas um dia vai acontecer. Oxalá!

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