Luciano Alabarse – Para além dos boleros da vida

Para talvez a totalidade da comunidade cultural de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, assim como para a maioria do mundo teatral brasileiro, o entrevistado de hoje não requer apresentação. Luciano Alabarse é uma figura central no que se tem feito na cidade e no estado desde uns talvez 30 anos, como diretor teatral, seu metiê, como gestor cultural (atuou em governos petistas nos anos 1990, assim como foi secretário de cultura de Nelson Marchezan Júnior, do PSDB – para dar dois exemplos de certa forma extremos), como figura pública que se manifesta em livros e artigos. 

Conheci pessoalmente o Luciano no bastidor de um programa de entrevista da TVE, na virada dos anos 80 para os 90. Era um tempo efervescente na produção cultural do país como um todo – estávamos tirando o atraso do tempo da ditadura, que impediu tanta coisa, direta e indiretamente. Eu estava aguardando para entrar no cenário quando ele se apresentou pra mim, que já o conhecia de fama e de ver montagens suas. E sua primeira palavra foi de elogio: ele disse que adorava meus textos críticos, que eu fugia do óbvio e sei lá mais o quê. Fiquei numa grande felicidade, pelo elogio, naturalmente, mas também porque não é exatamente comum haver elogios de peito aberto. 

O Luciano tem alguns anos de vida mais do que eu, mas somos basicamente da geração cultural e histórica (e de classe), com interesse em entender o que se passa e intervir no debate público. Por isso e por uma amizade que nasceu lá naquele bastidor da TVE e me orgulha muito até hoje, propus essa conversa, que rolou por escrito. (Não disse acima, mas naquele momento o Luciano me sondou para pensar num projeto que ele tinha em mente. Uns meses depois, estava eu ao lado do Coca Barbosa no palco do Porto de Elis, um lugar que marcou época na cidade, o Coca cantando daquele modo forte e sempre significativo, eu lendo umas coisas – uma espécie de embrião do Sarau Elétrico, que aliás se inspirou diretamente em leituras que o Luciano dirigiu na Usina.)

Ia esquecendo de acrescentar que em 1995 o Luciano praticamente me intimou a publicar uns contos que eu tinha – e resultou um livro raro, não sei se único, um autêntico dois-em-um: pegando o volume de um lado, o leitor vai ler Sal na pedra, um livro de poesias dele; pegando pelo outro lado, com outra capa, vai ler meu primeiro livro de contos, O edifício do lado da sombra (editora Artes & Ofícios). Tudo porque o Luciano é um entusiasmado com a arte. 

Com vocês, então, um pedaço da história, da cabeça e do coração do Luciano. 

Luís Augusto Fischer

Parêntese – Começando pelo presente: por que montar um Shakespeare agora, no começo deste novo ano e retomada da direção de teatro? Como te ocorreu essa ideia? 

Luciano – Anos atrás, a convite do Instituto Goethe, fui a Berlim acompanhar um festival de teatro. Na programação, nada menos do que seis peças de Anton Tchekov. Fiquei impressionado e o assunto, inclusive, foi tema de uma entrevista da diretora do festival. Ela disse uma coisa que nunca me saiu da cabeça: quando você está confuso em relação aos rumos do mundo e do teatro, quando não sabe exatamente o que encenar, volte sua atenção aos clássicos, pois está tudo ali. Concordo em gênero, número e grau com esse pensamento. E, na minha carreira, tenho visitado os grandes autores, as peças que são o acervo da dramaturgia ocidental. O primeiro texto que dirigi era do… Tchecov. Os gregos, Shakespeare, sempre são uma surpresa, por mais que se conheça a obra. Nesse contexto, o Brasil tem uma afinidade especial com o bardo inglês. Há sempre alguma obra de Shakespeare em cartaz em alguma cidade brasileira.

No caso da montagem atual, baseada em Ricardo III, as razões são explícitas. O personagem é um dos maiores vilões da lista shakespeariana de vilões. Real, fez o possível e o impossível para chegar ao Poder e lá se perpetuar. É um personagem extraordinário: aleijado, horrivelmente feio, deformado, se presta com perfeição para retratar os ridículos tiranos que, ao longo dos séculos, mancharam de sangue e lágrimas a História humana. A vontade de falar sobre o fascínio desgovernado que o Poder exerce sobre notórios ditadores, de direita e de esquerda, a aproximação com a realidade brasileira e sua classe política atroz, foram determinantes para a escolha do texto. A pandemia ajudou. Eu e o Teatro ao Quadrado (Marcelo Ádams e Margarida Peixoto) tivemos bastante tempo para conversar, discutir e construir, ou desconstruir, a dramaturgia que nos interessava alcançar.


LUCIANO ALABARSE com MARCELO ÁDAMS durante os ensaios de Medéia © Flávio Wild, 2007.jpg

Fizemos quatro apresentações no “Porto Verão Alegre”, e foi emocionante. Mesmo. Reações solidárias do pessoal do teatro, o público vencendo o medo de sair de casa, algumas reações indignadas de bolsonaristas irados com o texto, tudo contribuiu para o clima mágico da primeira temporada.

Importante frisar que Shakespeare é o começo, a inspiração, e que o arcabouço cênico das cenas da tragédia está todo no espetáculo, mas o texto final agrega nossas observações sobre o país em que vivemos. Espero que a montagem continue em cartaz e mobilize o público.

P – Tua carreira se conta em décadas, já. Como começou? Tu ias ao teatro em Porto Alegre antes de ingressar na faculdade? A televisão tinha força já na tua adolescência? E o cinema? 

L – Esses dias, do nada, lembrei que a primeira peça que dirigi, “O Canto do Cisne”, do Tchecov, estreou no longínguo ano de 1974. Ou seja, daqui a dois anos completo 50 anos do ofício. Sou um diretor teatral. Nas fichas de hotel, nos créditos de entrevistas e artigos, é assim que gosto de ser apresentado: diretor de teatro. Nunca me interessei em ser ator, por exemplo, ou exercer alguma atividade técnica ligada à formalização dos espetáculos. Sempre me interessei pela arte da encenação. Admiro a expressão célebre do Peter Brook, aquela que fala do “espaço vazio”. Ser diretor é preencher esse espaço, criar um mundo, uma linguagem, experimentar texturas e densidades criativas. Isso ainda me encanta e mobiliza como lá no início.

A primeira peça a que assisti como público, sozinho, foi Prometeu acorrentado, no Teatro de Arena. Tudo era novo e misterioso pra mim. Depois do terceiro sinal, tudo escuro, uma voz anunciava “um minuto em homenagem à dor humana” e, no breu do teatro, o elenco a urrar e chorar em altíssimo volume. Foi um impacto do qual nunca me recuperei… mas não tinha o hábito de ir regularmente ao teatro, não.

Minha relação com a cultura acontecia prioritariamente através da música brasileira, os festivais, os programas em preto e branco da TV Record original – O Fino da Bossa, Bossaudade, Esta Noite se Improvisa. Para o adolescente da vila Bom Jesus, era uma epifania atrás da outra. O tropicalismo me atravessou e abriu minha cabeça para sempre. Tinha as novelas também. Sempre gostei de novelas, acompanhar o desempenho dos atores, a dramaturgia. E as coleções que minha mãe me presenteava religiosamente. Lembro que eu li grandes clássicos universais muito jovem, sem preparo nenhum. E eu gostava de ir ao cinema, as matinês do Rio Branco aos domingos, programa duplo, troca de gibis, tudo o que marcava infância e adolescência da época. Tinha uma imaginação delirante, brincava de rádio, dava aulas imaginárias para classes imaginárias. Esse período me formou e me acompanha sempre, cada vez percebo isso com mais clareza.

P – Tu já contaste mais de uma vez que tua inscrição para o vestibular sofreu um pequeno desvio, não foi? Conta essa.

[Continua…]

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