Entrevista | Forma e Função

No centro, a convivência: pai e filho arquitetos falam sobre o passado e o futuro do Nova Olaria

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No centro, a convivência: pai e filho arquitetos falam sobre o passado e o futuro do Nova Olaria Nova Olaria em 1995. Crédito: Acervo MoMAA

Sérgio e Lucas Marques estiveram envolvidos com as duas revitalizações do centro comercial na Cidade Baixa, que será alterado para preservar as características originais

No início dos anos 1990, o centro cultural de Porto Alegre estava no Bom Fim. A efervescência dos finais de tarde começava a incomodar os moradores, pois a área residencial jamais tinha descanso. A menos de um quilômetro dali, repousavam galpões degradados que pertenciam a um montepio de funcionários da prefeitura municipal, ávido por capitalizar os bens que tinha e compartilhar entre seus beneficiários.

Surge a oportunidade de transformar aquele local em um centro comercial. O escritório Moojen Marques Arquitetos Associados, então tocado por Moacyr, projeta e executa o Nova Olaria, que rapidamente passa a ser um polo cultural da Cidade Baixa. Ao longo da década, a vida noturna se desloca para o bairro, com bares e casas noturnas, o que leva o centro comercial a ser um ponto de referência da cidade. O Cine Guion projeta aquilo que não se vê em outros locais, os cafés hospedam o encontro de pessoas que há muito não se viam, a livraria Bamboletras reserva histórias que expandem horizontes até então desconhecidos.

Agora uma nova reforma no espaço se avizinha, e com ela vem a incerteza: perdemos um polo cultural? Ganhamos mais um shopping fechado, um ponto de passagem para onde as pessoas vêm e vão correndo, encerradas nos próprios pensamentos? Para ajudar a responder essas perguntas, conversamos com Sérgio Marques, filho de Moacyr, e Lucas Marques, filho de Sérgio. Ambos estão envolvidos com o passado, o presente e o futuro do Nova Olaria: Sérgio ajudou no projeto original, e Lucas está envolvido com a reestruturação.


Parêntese – O Centro Comercial Nova Olaria foi um projeto de referência por ser, ao mesmo tempo, um local de comércio e de convívio entre as pessoas. Como o projeto e a concepção foram moldados para isso?

Sérgio: É uma pequena história, vou tentar sintetizar porque alguns pontos explicam o rumo que o Nova Olaria tomou em termos conceituais. Aquela área pertencia à associação dos funcionários públicos do município, na época a MFM (Montepio dos Funcionários do Município de Porto Alegre), que não existe mais. Na época, a MFM tinha uma série de propriedades e fazia investimentos em incorporações com o objetivo de gerar pecúlio para seus associados, a maioria aposentados. Eles tinham um programa econômico para gerar recursos para auxiliar esses aposentados. Essa propriedade na Lima e Silva chegou no nosso escritório, que na época tinha uma estrutura familiar — meu pai, arquiteto, que era funcionário da prefeitura, meu irmão e eu. 

Meu pai, como trabalhou muitos anos na área do planejamento urbano, foi gerente do plano diretor de 1979, tinha muita experiência em analisar o potencial construtivo de determinados terrenos. A MFM contratou uma consultoria, esse foi o primeiro passo. Pediram para nós estudarmos o que era possível ser feito naquele terreno, considerando não apenas o plano diretor, mas também o bairro, as tendências, as características. Era uma assessoria.

O produto dessa consultoria foram cinco alternativas de ocupação para a área que nós propusemos. A primeira alternativa, que era a tendência, era botar tudo abaixo e construir um empreendimento de grande porte. Naquele momento, em 1995, com o PDDUA, a Lima e Silva era um corredor de centralidade. Viabilizava um aproveitamento grande, com duas torres: uma de habitação e a sede do Montepio. Na outra ponta, a quinta alternativa, nós nos demos conta que a área tinha alguns galpões e pavilhões sem nenhum valor histórico. Eram construções que o Montepio alugava para o Daer, que fazia a manutenção dos veículos da polícia rodoviária estadual. Uma grande oficina. Mas como percebemos o valor urbanístico, típico da Cidade Baixa — área de quarteirão — e o Montepio não era um investidor de grande envergadura, aventamos a hipótese, que não era comum em Porto Alegre, de fazer uma revitalização dos pavilhões com o conceito de criar, ali, um centro comercial a céu aberto, que no exterior é chamado de “open mall”. Existe há muitos anos, principalmente nos Estados Unidos.

Achamos que isso tinha uma sintonia importante com a Cidade Baixa, não só pela tradição cultural como também pela morfologia, de escala mais térrea. Aquela tipologia “porta e janela” da Travessa dos Venezianos, que foi uma referência bem importante. A gente identificou que um shopping center, um grande edifício hermético, sem contato com o exterior, seria inadequado. Traria um impacto negativo para a vocação do bairro, que tinha que ter esse apelo cultural, que ainda não estava suficientemente valorizado.

Apresentamos essa hipótese para os investidores, eles fizeram essas avaliações econômicas e financeiras, observaram que era de investimento baixo, viável de fazer com recursos próprios. Também não inviabilizada de, no futuro, voltar a pensar em um investimento de maior porte. Então, se entusiasmaram com essa proposta. Isso, diferente de outros investimentos e incorporações, nós participamos desde o início. Armamos a vocação, o conceito da incorporação, coisa que os arquitetos acham que estão bem aparelhados de fazer e nem sempre fazem.

O projeto foi entregue no final da década de 1980. As duas etapas envolveram uns quatro ou cinco anos. A inauguração se deu em 1995, com o conceito que se conhece: propusemos a característica de resgatar um espaço aberto, em contato direto com a rua, mesinhas na calçada, que hoje é senso comum e na época era até proibido. Os pioneiros foram o Café do Porto, na Padre Chagas, também de um arquiteto, e no mesmo ano nós, que negociamos a ideia de ter mesas no recuo viário. Propusemos aquele café, convencemos os proprietários que tinha que inaugurar com ele, para dar esse tom mais cultural. 

O cinema Guion funcionava também em um edifício que era projeto do nosso escritório, o Sesc Alberto Bins. Lá tinha o Ponto de Cinema, que antes era o Guion. Aconteceu a trágica coincidência de um incêndio nesse lugar, bem no ano em que foi inaugurado o Nova Olaria. Então, eles se mudaram para lá. Junto com a livraria Bamboletras, que era de uma colega professora da Ritter, foram importantes para fixar o Nova Olaria nesse diapasão cultural, que fez um certo sucesso e, na minha opinião, acho que contribuiu muito. Talvez tenha sido o elemento deflagrador da efervescência cultural da Cidade Baixa dali por diante.

P – A área do Nova Olaria era, inicialmente, pertencente ao Montepio de Funcionários da Prefeitura, entidade que acabou sendo extinta posteriormente. Lidar com um ente público, neste caso, causa mais dificuldades ou facilidades ao projeto?

Sérgio: O Montepio era uma autarquia. Acho que teve duas questões que favoreceram: uma delas, o fato de serem funcionários públicos aposentados do município. Isso já traz uma sensibilidade em relação à qualidade urbana da cidade. Os agremiados passaram sua vida dedicados à administração pública. Outro fator decisivo é que, na época em que fomos contratados para o projeto, estava na presidência o arquiteto e urbanista Claudio Ferraro, que havia sido secretário do planejamento urbano (nota: durante o governo de João Dib, do PDS)

Nisso entra um fator que estávamos comentando, que é a bipolaridade: ou se fica radicalmente contra ou extremamente a favor de um determinado assunto, principalmente de questões públicas. Eu, pessoalmente, sou um pouco resistente a essa bipolaridade. Tem uma condição que não é favorável: a ponderação, o equilíbrio, olhar os dois lados é importante. Nas questões urbanas, nessas polêmicas, como a gente vê na questão da Orla (do Guaíba), vemos poucas pessoas debruçadas sobre a qualidade do projeto. Como se o projeto não fosse um fator decisivo. Hoje nós temos na Orla projetos excelentes, aclamados pela população, e outros projetos de arquitetura cuja qualidade não alcança. 

Naquele momento, o fato de ter um arquiteto urbanista na presidência da associação ajudou na compreensão das questões técnicas deste mundo, que depois acabou tendo sua consagração. Muitos se esquecem que a especificidade do projeto é um ingrediente poderoso, e nesse caso quem estava na presidência tinha condições de entender isso. 

Eu sei que isso é subjetivo, mas não é garantido que a ideia de um “open mall” ali fosse dar certo. Ainda tinha um caminho importante que é a qualidade arquitetônica do que foi feito lá. O sucesso que o Nova Olaria fez tem muito a ver com esta qualidade.

P – Existe a sensação, por parte de moradores da Cidade Baixa, de que espaços de convívio como o Nova Olaria estão sendo substituídos por lugares fechados, tanto bares quanto shoppings. Como o novo projeto responde a isso?

Lucas: A dicotomia interessante desse novo projeto é que, ao mesmo tempo que ele já parte, a priori, da ideia de um programa multiuso —  já tem na concepção os espaços semi-públicos, não apenas encapsulado em um programa comercial ou residencial, e sim essas atividades integradas — ainda tem o benefício, ou a oportunidade incrível, de estar vinculado ao Centro Comercial Nova Olaria, que carrega essa característica intrínseca. 

Está exemplificada na ideia da rua interna, como símbolo. É uma extensão do espaço público. A oportunidade que esse projeto cria, então, é de fato revitalizar o Nova Olaria, adicionar novos programas aa complexo, mas ao mesmo tempo com um respeito muito grande à característica fundamental do patrimônio que é a utilização como espaço aberto de extensão da rua. Esta característica não se perde de nenhuma forma, vem como elemento essencial desde o começo.

A revitalização pretende potencializar ainda mais esse programa histórico e voltar a colocá-lo, não que tenha saído do mapa, mas voltá-lo ainda mais para a vida pública e coletiva da Cidade Baixa. A sinergia entre o antigo e o novo, mas também entre duas filosofias de cidade, acontecendo de forma interessante no empreendimento e no projeto. Uma alimentando a outra dentro das possibilidades. Tem a torre, a área comercial, a residencial, tudo isso está vinculado ao “open mall”, à rua interna, numa sinergia entre espaço público e privado. É sempre uma coisa que se busca, como elemento utópico, na arquitetura, e raramente temos a oportunidade de fazer.

Sérgio: o que se chamava de Nova Olaria era a Lima e Silva. É uma radial, essa característica do crescimento urbano de Porto Alegre que é como um leque. Foi crescendo do Centro Histórico por esses caminhos: Osvaldo Aranha, Independência, Farrapos, que saíam do centro em direção aos arrabaldes. A Lima e Silva ligava o centro às olarias, que produziam cerâmica. A proposta de adotar isso como nome no centro comercial partiu do conceito inicial de valorizar a dimensão histórica da Cidade Baixa.

A rua interna não era propriamente uma rua, mas era algo que existia naturalmente naqueles pavilhões. Aquele espaço já estava configurado daquela forma, mas os pavilhões eram muito feios e velhos. Botamos o olho e sentimos que aquele conjunto, revitalizado, dialogava com a ideia de miolo de quarteirão que tem na Cidade Baixa. O museu Lopo Gonçalves, a travessa Leão XIII. O que você via lá, as fachadas, era um projeto nosso, mas a estrutura do conjunto já existia. Não era pública, passou a ser semipública.

Quando surgiu a oportunidade desse projeto, fui consultado, para saber se estava de acordo, tem direitos autorais, etc. Participei de uma reunião com o Epac, porque o Nova Olaria é listado pelo patrimônio histórico como bem de estruturação — talvez o mais jovem de Porto Alegre, junto ao Museu Iberê Camargo. Naquele momento, estivemos de acordo que o Nova Olaria não é um bem para virar um museu. A própria ideia dele é a da revitalização. O projeto propôs pegar edificações sem valor existente e transformar em algo que fazia sentido. E o estudo também previa o aproveitamento de potencial construtivo.

Quando o Montepio faliu, o Nova Olaria entrou em uma decadência acelerada. Ele foi vendido, foi a leilão em partes, os novos proprietários não tinham boa relação entre si. A administração do local se tornou tensa. Isso fugiu do controle e o projeto foi totalmente aviltado. Isso é importante não esquecer. Foram feitas construções com troncos de eucalipto, na frente do Nova Olaria, na fachada. Internamente, o edifício foi descaracterizado de forma irregular, e de maneira que oferecia grave risco. Principalmente risco de incêndio, foram construindo cozinhas irregulares, com botijão de gás dentro de mezanino…o Nova Olaria se transformou em uma bomba-relógio. Sem nenhum controle, os proprietários brigando.

A ponto da prefeitura ameaçar interdição. Fomos chamados na época para mediar, fazer um projeto de regularização. Nesse ínterim, quando surgiu interesse de incorporadoras de viabilizar a nova revitalização do Nova Olaria, nós enxergamos com bons olhos. A ideia de manter, mas ao mesmo tempo acompanhar a dinâmica do espaço urbano, da evolução, porque isso é inexorável. Um bom projeto de arquitetura ajuda a equacionar essas questões, se tiver essa sensibilidade. 

(Aguarde. Esta conversa continua na edição da Parêntese de sábado que vem)

Pavilhões do Daer antes da revitalização, na década de 1980. Crédito da foto: Acervo MoMAA (Moojen Marques Arquitetos Associados)
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