Entrevista

Antônio Goulart: Nos bastidores

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Antônio Goulart: Nos bastidores Foto: arquivo pessoal

Figura conhecida do meio jornalístico, onde atua há décadas, Antônio Goulart coleciona passagens por veículos de grande significação para a cultura e a opinião pública gaúcha. Basta dizer que chegou a ser secretário de redação do fenômeno chamado Revista do Globo, indo depois para veículos da antiga Caldas Júnior e a Zero Hora. Foi também um frequentador silencioso de bastidores do Palácio do Planalto e do Piratini, sempre na condição de jornalista. 

Alguém com essa trajetória tem muito a contar, e já o fez, em parte, nos livros que publicou. Aqui, Goulart repassa momentos desse percurso, que começa numa família leitora e numa escolinha informal. A entrevista foi realizada por escrito, em outubro de 2021.

Parêntese – Tu vens do interior, certo? Onde era? Conta da tua família de origem, da cidade, da história familiar.

Antônio Goulart – Eu nasci no 8º. distrito de Vacaria, nos campos de Cima da Serra, num lugarejo chamado Pinheiro Grosso, num friorento julho de 1935. Sou o sétimo entre 10 irmãos. Antes de eu completar dois anos, a família se mudou para uma pequena fazenda adquirida no vizinho município de Bom Jesus, terra dos escritores Paulo Ribeiro e Ernâni Ssó. Foi lá que passei minha infância, até os 12 anos, e onde me alfabetizei, numa escolinha rural, montada pelo meu pai num salão da própria casa, que atendia também a umas duas dezenas de crianças das redondezas, filhas de outros proprietários ou de seus empregados, sem qualquer custo. 

Meu primeiro professor foi um jovem contabilista (guarda-livros), chamado Olinto, que recebia salário e comia e dormia na nossa casa, de segunda a sábado. Autodidata, mas preocupado com a educação dos filhos, meu pai tomou essa iniciativa porque a escola oficial do município ficava a quilômetros de distância.  Os únicos livros que lembro haver em casa eram os volumes com discursos do presidente Getúlio Vargas. Depois, apareceu a “Seleta em Prosa e Verso”, de Alfredo Clemente Pinto, que se transformou no vade-mécum de toda a família.  Mas meu pai mantinha-se em dia com o mundo ouvindo noticiário pelo rádio, alimentado por bateria carregada por cata-vento. Ele também assinava o Correio do Povo e a Revista do Globo, que eu costumava apanhar na venda do seu Silvino, e que o ônibus trazia da Capital. Foi nessas duas publicações que eu aperfeiçoei minha leitura e onde, coincidentemente, vim a trabalhar, depois de adulto, em Porto Alegre.

As aulas eram pela manhã, depois que toda a família se envolvia no manejo das vacas e na coleta de leite para a fabricação de queijo caseiro, tarefa exclusiva de minha mãe. À tarde, trabalhávamos na lavoura, plantando e colhendo batata, feijão e outras culturas. Aprendi a andar a cavalo muito cedo e ajudava os mais velhos a lidar com o gado. Por motivo de saúde, meu pai decidiu vender suas terras, aos 52 anos, e mudar-se para a cidade de Vacaria, onde passamos a frequentar escolas regulares.

P – Na sua trajetória de estudos, há uma passagem por seminário católico. Como foi essa etapa? Foste aluno ou colega de gente marcante? O que se aprendia lá? 

AG – Por influência de um professor ex-padre e do bispo local, fui parar, aos 13 anos, sem muita convicção do que queria, no Seminário Nossa Senhora Aparecida, em Caxias do Sul. Por lá passaram, depois de mim, alguns nomes conhecidos, como os escritores José Clemente Pozenato e Guálter Pasa, o professor Jayme Paviani, o ex-governador José Ivo Sartori e o político Victor Faccioni, além do médico Fernando Lucchese. Entre os professores que mais me marcaram foram os padres Pandolfo e Ernesto Mânica e o reitor frei Armindo, que, anos depois, já como civil, foi professor da Universidade de Brasília. 


Seminário menor de Caxias do Sul

Devo à minha passagem pelo seminário a boa formação humanística que adquiri. Lá era puxado o estudo de línguas, como latim, italiano, francês e grego. Tivemos também aulas de inglês. Por minha conta, estudei ainda esperanto. Fiz até um curso de taquigrafia por correspondência. Lia-se muito, dos clássicos portugueses a Machado de Assis, Monteiro Lobato, Paulo Setúbal e até Plínio Salgado. Foi nessa época que descobri Rainer Maria Rilke e me encantei com suas “Cartas a um jovem poeta”. Outros livros que me marcaram: “Diário de um Pároco de Aldeia”, de Georges Bernanos, e “Grandes Amizades”, de Raïssa Maritain. Como atividade extracurricular, encenávamos peças teatrais. Nas quintas-feiras não havia aula. O dia era dedicado ao esporte e ao trabalho, com capina e plantio de árvores na extensa área que circundava o seminário.  

Muito distante da chegada da internet e do celular, nós só ouvíamos rádio por poucos minutos, quando era repassada para a sala de estudos, às 18 horas, a voz do consagrado Júlio Louzada, com sua Oração da Ave Maria. Havia um professor que, umas três vezes por semana, chegava de carro, pouco depois do meio-dia, com o rádio ligado no programa Banca do Sapateiro, da Farroupilha, com a dupla Pinguinho e Valter Broda. Estacionava no pátio e então quem estava por perto filava alguns momentos daquela popular atração. Chegamos a acompanhar, no auditório, durante a Copa do Mundo de 1950, alguns jogos do Brasil.

O único meio que nos proporcionava alguma informação do que acontecia pelo país e pelo mundo era a leitura feita por um dos alunos, durante o café da manhã, do jornal católico Correio Riograndense. Durante o almoço, a leitura era de capítulos de algum livro. Lembro de dois: “O Último dos Moicanos” e “Expedição Kon-Tiki”.

Em 1955, cursei um ano de filosofia no Seminário Maior de Viamão, onde tive como professores algumas figuras destacadas, como os na época padres Ivo Lorscheiter e Manoel Valente, que viriam a ter destaque como contestadores do regime dos anos 70. As aulas de metafísica e lógica eram dadas em latim, com as provas escritas e orais nessa língua. Os manuais vinham da Universidade Gregoriana de Roma. O sistema só mudou com o Concílio Vaticano II, do papa João XXIII, na década de 60, quando as missas também deixaram de ser rezadas em latim.

Chamou a atenção na época, em Viamão, a presença de um aluno diferente, um homem maduro dos seus 30 anos, acima da idade média do grupo (20 anos). Vinha do Maranhão, trazendo no currículo o diploma de médico pediatra (carreira que seguira a pedido do pai), renome de escritor, autor de romances premiados, e o comentário de que já tinha sido noivo. Seu nome: João Mohana. Sua influência cultural no nosso meio foi grande. Amante e conhecedor de cinema, nos deu aulas informais sobre linguagem e técnicas de filmagens. Arranjou um projetor e com frequência alugava filmes em Porto Alegre, para exibição e debate com toda a turma. Revelou também a existência de escritores novos. Um livro de Carlos Drummond de Andrade, “Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora”, circulou praticamente de mão em mão, como uma surpreendente revelação. O mesmo ocorreu com uma antologia de Manoel Bandeira. O padre João Mohana faleceu em São Luís, em 1995, aos 70 anos, após intensa atividade pastoral, tendo deixado mais de 40 títulos, entre romances, peças de teatro e ensaios religiosos. 

Quando eu trabalhava na Revista do Globo, apresentei o padre aos editores Henrique Bertaso e seu filho José Otávio. Mohana trazia os originais de “A vida sexual dos solteiros e casados”, que pretendia publicar. Ao dar o título da obra, provocou, no primeiro momento, uma troca silenciosa de olhares entre os dois Bertaso, como se perguntando: “Que experiência pode ter um padre para falar de vida sexual?” Mas o livro acabou se transformando, durante anos, num dos maiores sucessos da Editora Globo, com 26 edições, até a venda da casa para a Rio Gráfica. 

Em Viamão, além do estudo, praticávamos também esporte, futebol especialmente. Organizávamos disputados torneios. Meu apelido como jogador era Jango (devido a João Goulart, em evidência na época). Cheguei a formar um trio de meia-cancha que fez sucesso pelos nomes: Jango, Getúlio e Gregório. Quem é daquela geração sabe quem foram esses personagens no mundo político do país. 

P – Quando vieste para Porto Alegre? Foi para estudar?

[Continua...]

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