Entrevista

Sayô Pereira – Uma dança para aquele corpo

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Sayô Pereira – Uma dança para aquele corpo Sayonara Pereira. (Monica Cardim)

Com a dança, sua maior paixão, Sayonara Pereira relembra como tudo começou em de Porto Alegre até chegar à livre-docência na USP.

Eu conheci a Sayô como bailarina, no grupo Terra. Acho que foi no espetáculo “Carmina Burana”, que o grupo levou no antigo teatro da Reitoria da UFRGS. Uma querida amiga, que virou minha comadre, Maria José Mesquita (hoje em dia professora do curso de Geologia na Unicamp), fazia parte do grupo e me convidou. Lembro que era impactante a performance – eu, que era e continuo sendo um sujeito sem muita noção de dança, lembro que foi um marco na conversa da nossa geração. Então era possível um espetáculo como aquele, que parecia uma coisa vinda de outro mundo? 

Por esse tempo, fui professor do Otávio, irmão da Sayô, no colégio. Mais um pequeno laço nos uniu. Nunca passamos de uma saudação de longe, amigos comuns, essa coisa. Mas agora, quando inventamos este Parêntese, logo lembrei que era uma ótima chance de conhecer mais sua história. Falei com a Zé, que me deu o contato e feito o carreto: engatamos uma conversa pelo whatsapp, entre outubro e dezembro do ano que apenas findou, e aqui está o resultado.

Num dos dias em que fazíamos a conversa, a Sayô virou professora livre-docente na USP, defendendo uma nova tese. Professora, agora com tempo mais lento, depois de uma longa e linda trajetória numa arte que vive no instante único. Coisa linda uma carreira assim, né? 

PS: a rua Esperança, mencionada pela Sayô, dá nome a um romance que vale a pena ler, do Renato Dorneles: A cor da Esperança (Falange editora, 2019).

Luís Augusto Fischer
* com edição de Théo Amon

Parêntese – A primeira coisa que eu queria recompor é tua história pessoal: a família era de Porto Alegre mesmo ou vieram do interior? Que possibilidade havia na cidade para quem quisesse dançar? Como foi tua educação e teu começo na dança? Tu chegaste a fazer clássico ou não quiseste? Foste aluna do Rolla?

Sayô – Meu nome é Sayonara Souza Pereira. Nasci em 3 de março de 1960. Sempre achei bonita essa data: zero três, zero três, sessenta. Sou a filha primogênita entre dois filhos. Meus pais são Reinaldo Soares Pereira, que veio da cidade de Minas do Butiá para tentar a vida em Porto Alegre, e Neusa Maria Souza Pereira, nascida em Porto Alegre mesmo. Eles são primos. Meu pai vem da parte da família do interior, dos que vieram tentar a vida em Porto Alegre. Ele se enamorou da minha mãe e eles casaram super cedo. Eu nasci quando minha mãe tinha 19 anos e meu pai tinha 23. Meu pai é eletricista, e se tornou funcionário público da Engenharia da UFRGS. Minha mãe, mesmo tendo milhões de dotes artísticos, de artesania, de poesia, é daquela geração em que mulher era dona de casa. Uma convicção que eles tiveram logo de início da junção deles é que os filhos iriam estudar. Então investiram muito energia para que a filha deles — no caso, eu — estudasse, e o filho (meu irmão Otavio, que nasceu cinco anos depois de mim) também tivesse a chance de estudar. Os meus pais têm formação bem básica: o pai tem primário, e a mãe, ginásio. Um fato interessante é que eu nasci na rua Miguel Tostes, 519; minha mãe também nasceu naquela casa; e o pai dela também nasceu na mesma casa. E numa casa que era da família Souza, ali onde chamavam de colônia africana de Porto Alegre, bairro Rio Branco. Era uma casa que já era de outras gerações da família da minha mãe. Com oito anos eu mudei para a casa em que meus pais moram até agora, ali no Bom Fim.

Com a família na casa da Rua Miguel Tostes. (Acervo pessoal)

Minha educação começa no jardim da infância num colégio de freiras ali perto da casa dos meus pais, e depois eu faço teste para entrar no Instituto de Educação – no tempo em que as escolas públicas eram muito bem conceituadas. Eu fiz o teste e fiquei em décimo lugar, o que deixou meus pais muito felizes. Eu já estava no balé: entrei em 1966, e na escola, em 1967. A escola em que a minha mãe gostaria de ter estudado balé era a do João Luiz Rolla, que ficava ali no Araújo Viana, meio perto de casa. Nos anos 60, a cidade tinha várias escolas de dança: a da dona Tony (Petzhold), onde o próprio Rolla tinha estudado; a da Maria Julia, que era na mesma rua onde nós morávamos, a Miguel Tostes. Tinha várias escolas espalhadas pela cidade. Mas foi bom que minha mãe escolheu a escola do Rolla. Acho que das coisas mais marcantes que eu aprendi lá foi o amor à dança. 

Na Escola de Dança João Luiz Rolla, 1970. (Acervo pessoal)

Eu fiz um curso tradicional de balé clássico. Já aos nove anos comecei a usar sapatilha de ponta, e fiquei na escola até 1980. Eu saía às vezes para fazer cursos de férias no Rio, São Paulo, mas sempre retornava para a escola de balé do seu Rolla. O Rolla foi um mestre, porque quando uma criança entra com seis anos numa escola e sai uma jovem com vinte anos, ele é um guia, um norte em relação à dança. Muito ético; todas as outras diretoras de escola sempre se davam muito com ele. Ele sempre se relacionava. Havia a associação, os professores de dança do Rio Grande do Sul, ele sempre levava os alunos para fazerem os cursos. Era sempre muito interessado, tinha uma biblioteca que para nós na época parecia o Lincoln Center de Nova York, alguma coisa assim, para a nossa realidade porto-alegrense. Às vezes ele dava aulas teóricas, abria os livros e mostrava para a gente. Essa biblioteca foi doada para a ESEFID (Escola Superior de Educação Física, Fisioterapia e Dança) da UFRGS (eles têm um lugar que guarda o acervo do Grupo Terra também, a gente entregou para eles). Essa biblioteca ficava no vestiário, era um armário grande que tinha relíquias, para a época. Ele era um colecionador, para o que podia ser na época; era um norte para a gente, eu gostava muito. Nossa amizade foi se desenvolvendo aos poucos. Quando ele ficou sabendo que eu queria seguir carreira, ele incentivou muito, muito. E ele acompanhou, tanto que quando eu vim dançar em 88, ele (já praticamente cego) foi assistir aos espetáculos e cursos que eu ministrava. Mantive correspondência com ele sempre, mandava cartões. O primeiro livrinho que ele editou (acho que era A trajetória de uma sapatilha, algo assim), ali por 85, 86, termina com um cartão postal que eu mandei da Alemanha. Eu tinha estreado na Alemanha e mandei esse cartão, e ele imprimiu no livro. Era um cara democrático dentro do ensino dele, porque deixava que a gente se relacionasse com outras escolas. Em Porto Alegre tu eras como filho de uma escola, não podia olhar para o lado, era uma coisa muito estranha. Mas ele tinha essa coisa, era o único homem também nesse cenário da dança, então se mantinha com uma ética muito poderosa.

O seu Rolla também tinha uma coisa meio de futurista, fazia coisas que para a época eram muito pra frente, muito contemporâneas, antes do seu tempo, avant-garde. Ele fez 2001, obras com atores em cena, os mais velhos da escola — porque nos espetáculos das escolas eram mais aquelas danças convencionais, as criancinhas, bichinho, flor. Ele tentava, na parte final, com as estudantes mais adiantadas, fazer espetáculos com uma temática mais da contemporaneidade. E como a gente tinha aulas no Araújo Viana, um local que era gratuito para a escola dele, ele sempre tinha que dar contrapartida com espetáculos ali. E lotava aquilo! A gente fez os espetáculos no Theatro São Pedro durante muitos anos. No período da reforma do S. Pedro, a gente fazia na Assembleia Legislativa ou no auditório da Reitoria da UFRGS. Mas os espetáculos que eram gratuitos, com esse feedback para a cidade, eram anuais, no Araújo Viana. Talvez o diferencial dele seja esse avant-garde na parte criativa dele como coreógrafo, vamos dizer assim. E ele também tinha um repertório de peças como Chopin, época romântica, Schubert, um negócio todo preto e branco. Um pouco futurista, eu diria — ele tinha esse diferencial em relação às escolas. Já buscava uma conversa com o neoclássico: era uma escola de dança clássica, mas ele tentava conversar com o seu tempo. E tinha uma cultura muito grande. Quando eu fui pra Alemanha, por exemplo, ele sabia nome de professores, para além de Kurt Joos, Hans Züllig (um professor com quem eu estava tendo aula). Ele tinha uma cultura avantajada na área de dança.

Em paralelo, já com treze anos os meus pais me colocaram no Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano para eu começar a me relacionar com o inglês. Quando eu terminei a oitava série no Instituto de Educação, fui para um colégio particular chamado Sevigné, porque meus pais achavam que eu precisava de uma preparação mais forte, já que originalmente eu queria fazer medicina. Porque estudar dança naquela época — anos 60, 70, final dos anos 70, quando eu estava terminando o segundo grau — era considerado um hobby. Mesmo que desde os treze anos eu começasse a me apaixonar por dança, não era visto como uma profissão. Era um hobby que eu gostava muito. Também, eu tinha um tipo físico que não era tão esperado para quem é bailarino clássico. Naquela época, anos 60, 70, bailarinas clássicas tinham aquela estatura mediana — uma menina de 1,70 m já era alta. Imagina, eu tinha 1,81 m! Eu era uma criança e adolescente alta, e me tornei uma adulta alta. Para o balé clássico, não era uma coisa tão esperada. Logo em 1980 eu tive oportunidade de ir para Nova York, porque tinha começado a fazer um pouco de aulas de jazz com o Lennie Dale e ele achava que eu tinha algo de interessante na minha movimentação. Aí logo que pude fui para Nova York, onde passei três meses estudando dança num lugar que na época se chamava Alvin Aley Dance Center.

Quando eu chego em Nova York no ano de 1981, percebo que para ser bailarino tinha que fazer muitas aulas diferentes. Mesmo os bailarinos de jazz tinham outras técnicas de balé — Cunningham, Graham também bem afiados. E apesar de Nova York ter todo aquele charme, eu não contava com estrutura: não aconteceu nada que me fizesse ficar lá, nenhum convite, não fui descoberta por ninguém. Então eu voltei para Porto Alegre e continuei trabalhando onde eu já estava desde março de 1980: o Conservatório Municipal de Artes da cidade de Montenegro, que hoje se transformou em Fundarte, e até tem uma universidade de artes ali. Na Fundarte eu trabalhei de 80 a 85.    

P – E quanto a ser negra: isso teve peso para ti? Te lembras de algum momento em que isso virou uma questão? Isso se falava na tua casa ou virou um assunto só depois, quando tu começaste a fazer colégio?

S – Ser negra é uma coisa que eu sou. Sou de uma família negra (mesmo que existam variações de tom de pele entre os meus pais, na minha família tem pessoas de etnia branca). Que peso isso tinha para mim? Quando eu nasci não tinha peso nenhum, porque na família eu era muito amada, muito esperada, muito desejada, e foram feitos grandes planos para que eu me tornasse alguém bem-sucedida e tal. Mas eu fui saber que sou negra como todo negro: no dia em que alguém branco te chama de negro de uma forma ofensiva. É diferente de tu chamares aquele teu colega de cabelo loiro: “ô, alemão”, né. É diferente quando tu ficas sabendo que tu és negra. Eu me lembro de dois momentos que foram traumáticos, mas um traumático suave: nós estávamos na praia em que a gente veraneava – porque gaúcho veraneia, né? – e a minha família estava na colônia de férias da UFRGS, em Tramandaí. O ano devia ser 67 ou 68. A SAT (Sociedade dos Amigos de Tramandaí) era grudada na colônia de férias da UFRGS. Era Carnaval, e nós, crianças, estávamos brincando. A gente foi ali na SAT para entrar num baile de carnaval — sozinhos, um grupinho de cinco, seis crianças. Quando a gente foi entrar no clube, todas as crianças, o porteiro me barrou, sem me falar nada. Ele só falou: “Tu não entra”. E as crianças entraram, acho que nem perceberam que eu tinha sido barrada. Aí eu voltei para casa e contei para os meus pais que eu não tinha podido entrar, e eles não falaram nada. Me levaram para a praia e me disseram: “Não, tu não precisas disso”. Eles sempre falavam alguma coisa assim, amenizavam, não discutiam a coisa politicamente. Aí a gente foi à praia à tarde e ficou por isso mesmo. Anos depois, na minha vida profissional, quando eu já vivia na Alemanha, a coreógrafa com quem eu trabalhava, Christine Brunel, perguntou qual tinha sido a minha primeira dor, porque ela estava fazendo a coreografia, e na dança teatral é importante que o bailarino, coautor, fale de suas dores, alegrias, de coisas biográficas que acabam se convertendo nas peças. E eu falei que a minha primeira dor tinha sido essa. E era uma dor muito estranha, porque não foi nada agressivo, apenas foi algo do tipo: você não pertence a este mundo aqui. Um corte.

Aí então teve essa outra situação, que foi bem forte. Também na praia, nessa colônia de férias da UFRGS. Naquele momento eu acho que quase ninguém era negro, eu não me lembro. Também me lembro de ter muito poucos amigos negros (amigos não-parentes). Não tinha muitos na escola, no balé — eu era sempre a única, nas escolas que eu fazia eu era sempre a única. Então eu me lembro também de chegar no aniversário de uma menina que era muito minha amiga e ser apresentada assim (com dez anos, eu tinha currículo): que eu estava na escola tal, que eu fazia balé, que eu era de uma família muito boa, que eu ia fazer medicina. Quando chegavam todas as crianças no aniversário daquela amiga, eu era apresentada com currículo. E eu lembro que quando fiquei um pouco maior, com uns onze anos, perguntei para a mãe da minha amiga: “Mas por que tu estás me apresentando?”. E ela: “Não, é porque tu és uma criança muito legal, de uma família…”. A justificativa ficou em cima disso, sei lá, para dizer o quão maravilhosa eu era. Eu era uma criança que já tinha currículo na tenra infância.

No Instituto de Educação, onde fiquei de 67 até 74, as crianças negras que tinha eram, em sua maioria, de classe social um pouco mais baixa que a minha. Elas não circulavam muito nos grupos em que eu circulava, mas existiam. E como a gente usava uniforme naquela época, a coisa era muito velada, porque todo mundo usava o mesmo uniforme, as pessoas pegavam ônibus. Era muito raro pessoas muito mais ricas lá. As diferenças sociais não eram tão gritantes como hoje em dia, quando os negros são sempre jogados para as periferias. E aqui eu faço um parêntese: minha família (somos ali do que era considerado Colônia Africana, como já disse) se mudou para umas três quadras distante de onde eu nasci, mas as várias famílias negras da Colônia Africana venderam suas casas e quase ninguém ficou no Bom Fim ou no Rio Branco. As pessoas foram se afastando daquela região central. Então para mim sempre foi normal: na minha rua só tem a minha família e uma família mais velha, cujo pai também tinha um emprego de funcionário público, então puderam comprar uma casa ou um apartamento naquela região e ficar por ali. Não era uma segregação, mas uma ausência. Eu não tinha essa percepção de hoje, de uma mulher de 60 anos, mas hoje percebo: não tinha boneca negra, não tinha esses bons exemplos negros para tu te inspirares e quereres ser como aquela pessoa. Poucas exceções, como uma amiga de infância da minha mãe, muito bem-sucedida na carreira acadêmica, que se chama Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Também tem uma parte da família da minha mãe que tem o sobrenome Panatieri, e esse tio Panatieri é um dos primeiros médicos negros do Rio Grande do Sul. Eu sempre tive na minha família exemplos assim: professores, dentistas, funcionários públicos. Para mim, essas possibilidades de seguir crescendo profissionalmente eram algo claro, que podia acontecer, mas faltavam esses exemplos que hoje já se tem ou que se está começando a ter.

Estão aqui na minha frente dois livros da Irene Santos, em que a mãe tem uma pequena participação com fotos. Com certeza tu conheces os livros, o primeiro é Negro em preto e branco: história da população negra de Porto Alegre, e o segundo é Quilombos e quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre. Tem muitas fotos da minha família, os quinze anos da minha mãe, os avós, bisavós. A Irene fala desses bairros, fala da Colônia Africana. E eu faço questão de colocar esse nome porque eu acho bonito: rua Esperança (que virou Miguel Tostes). 

Que mais tinha ali que eu me lembro? Tinha a escola de samba Bambas da Orgia, que era de negros. Minha mãe me conta que, como eu nasci em casa, eles vieram fazer uma serenata, porque era carnaval antes ou depois, e eles vieram cantar na janela para a minha mãe ouvir, uma serenata, no meu nascimento. Quando eu vou a Porto Alegre, gosto de passar por onde nasci, porque como eu nasci em casa a minha placenta foi enterrada no fundo do quintal, para frutificar. Hoje tudo isso é tão lindo, mas na época era porque o seguro do meu pai não dava o hospital — a Beneficência Portuguesa já tinha distribuído as fichas para as crianças nascerem, para as parturientes que iam ter filhos naquela época, e aí tinha sobrado a Santa Casa, e meus pais não queriam que eu nascesse na Santa Casa de Misericórdia. Então a minha dinda, que era minha tia-avó, era enfermeira e conhecia uma parteira, aí eu nasci em casa, com essa parteira. 

Enfim, este assunto da presença negra não dá para falar só no mês da consciência negra, porque a consciência negra tem que ser o ano inteiro, todos os dias.  Era muito mais obscuro no nosso tempo, não era uma coisa falada.

P – Depois tem os teus estudos superiores. Tu não fizeste imediatamente curso superior, foi isso? Foste primeiro para os Estados Unidos estudar? Como foi essa ideia de te profissionalizares na dança, num métier que é obscuríssimo no Brasil?

S – Em casa, meus pais incentivavam muito a mim (e, na sequência, ao meu irmão) a estudar. Eu tive a oportunidade de fazer balé, eu estava nas Bandeirantes, no Cultural, fui para um colégio particular. O meu irmão foi mais cedo: fez também a mesma sequência de colégio, Instituto de Educação, depois foi para o Rosário, onde terminou a oitava série, e depois o segundo grau no Anchieta, fez inglês, e depois fez PUC (é economista). A família foi sempre assim, bem focada na formação dos filhos. E os nossos amigos eram basicamente brancos.

Grupo Terra. (Claudio Etges, 1982)

Então, eu fui me aprofundando na dança. Ali por 1981, quando volto dos Estados Unidos, com um grupo de bailarinos e bailarinas de Porto Alegre a gente cria o que seria o Grupo Terra. Eu nunca ficava pensando se era a única negra do Grupo Terra, mas já que essa temática está perpassando a nossa conversa: sim, eu era. Eu sou uma das fundadoras do Grupo Terra e sou a única negra ao longo da trajetória do grupo. Tive essa oportunidade no Grupo Terra, um divisor de águas na cidade de Porto Alegre e no estado do Rio Grande do Sul. O grupo sobreviveu entre 81 e 84. O Terra fez tudo que podia: dançou em parques, dançou em penitenciária, aqueles espetáculos na esquina da Borges de Medeiros com a rua dos Andradas, lotado de povo. A gente só colocava uma cordinha, umas caixas de som com a eletricidade que vinha de um escritório, e lotava — só que nunca pagavam, era de graça. Nunca teve patrocínio, nunca teve alguém que sustentasse.

Grupo Terra na Esquina Democrática. (Claudio Etges, 1982)
Grupo Terra na frente do MARGS. (Claudio Etges, 1983)

Então eu fui me transformando: por um lado eu tinha o meu ganha-pão com a oportunidade lá da Fundarte, como professora tinha muitas alunas de balé (acho que cento e tantas), trabalhava lá duas vezes por semana; e o Grupo Terra todos os outros dias em Porto Alegre. Fui percebendo que gosto duma dança que tem mais expressividade, então fui me informando que tipo de dança era essa, chegando na dança teatral. Em junho de 1984, o Grupo Terra termina. Bem nessa época vem ao Brasil, em turnê, uma companhia de dança da Alemanha, chamada Folkwang Tanzstudio, que naquela época era dirigida pela coreógrafa e bailarina solista Susanne Linke. Um professor que trabalhava no Instituto Goethe de Porto Alegre, me telefonou avisando: olha, tem um grupo assim e assim, por que tu não vais lá fazer contato com ele? Eu não lembro por que esse cara me avisou — não tenho muito a referência de quem era, mas essa pessoa me falou. Aí eu fiz aquela coisa que a gente vê em filme: saí da minha casa, no Bom Fim, e fui até o Hotel Embaixador, onde a trupe estava hospedada. Fiquei no hall do hotel esperando essa coreógrafa, a Susanne Linke, que em um momento desceu para ensaiar. Consegui falar com ela, falar do meu interesse de ir para a Alemanha, conhecer o seu trabalho — aquelas coisas que a gente faz quando está muito excitado com uma ideia, para construir uma nova ponte. A Susanne Linke, com aquela simpatia habitual dela, falou comigo e perguntou se eu tinha ingresso para os ingressos dos espetáculos que iam acontecer nos próximos dias ali no Theatro São Pedro. Eu disse que não tinha. Aí ela disse que era para eu procurar a pessoa tal, na hora tal, para assistir aos espetáculos, e que no dia tal, de manhã, a companhia ia fazer aula lá no Theatro São Pedro, e que ela viria me ver na aula. Eu fiquei muito feliz e tensa ao mesmo tempo, aquela mistura de sentimentos. Fui assistir ao espetáculo. Adorei, achei incrível. Balé das mulheres, um clássico dela. E o que me chamou atenção nas obras apresentadas, naquele repertório, é que parecia que realmente a obra era criada para aqueles corpos, para aquelas pessoas, do jeito que elas eram. Me chamou atenção isso. Gostei muito, me senti num lugar possível para mim, do jeito que eu era. No dia seguinte, como combinado, a Susanne Linke veio assistir à aula, que era como uma audição para mim. Ela falou que tinham gostado de mim, que eu parecia uma gazela, longilínea e tal. E por que eu queria me relacionar com aquela técnica de dança, aquele jeito de dançar? Respondi o que eu falei antes: que parecia que as obras eram feitas para aquelas pessoas. Ela pediu para eu organizar meu currículo, portfólio com fotos, e que eu enviasse para ela, que estaria em turnê na América Latina, acabando em Minas Gerais. Então o Claudio Etges, grande amigo meu, que já era fotógrafo naquela época em Porto Alegre, organizou comigo esse portfólio, fez milhares de fotos. Organizamos tudo, enviei, e a Susanne Linke recebeu, levou para a escola Folkwang, e eu fui aceita como aluna convidada para estudar a partir de abril de 1985.

Com Susanne Linke, em Berlim. (Urs Dietrich, 2020)

Aí eu parei minha vida no Brasil — o emprego que eu tinha na Fundarte, já que o Grupo Terra tinha terminado — e juntei os fundos que eu tinha, que não era muita coisa. Eu tinha sorte de ter uma amiga, uma amiga-prima, Sheila Silva, que já estava morando na Alemanha. Era bailarina e dançava numa cidadezinha do lado de onde era essa Folkwang. A Folkwang é na cidade de Essen, na região do Ruhr, e a minha prima dançava na companhia da cidade de Gelsenkirchen, era grudada assim uma cidade na outra (tive um pouco de sorte geográfica, porque podia ser que ela dançasse em Munique, que era muito longe). Em abril de 85, fui para Alemanha. A escola era dirigida por Pina Bausch na época (mas era muito mais essas pessoas que pela fama têm um cargo do que realmente estava ali). Fiquei na escola como aluna convidada — oficialmente, ao longo daquele ano, mas fiquei por muitos anos, porque essa minha ida para ver como era estudar um pouco de dança na Alemanha se transformou em dezenove anos de vida em Essen. Nesse primeiro ano fiquei na escola; na sequência eu já consegui começar a trabalhar com Christine Brunel, no Tanztheater, que era um pequeno teatro de dança na cidade de Essen. Na metade da década de 80, a Alemanha, especialmente na região onde eu estava, era um lugar muito criativo, onde estavam surgindo muitas novas e novos coreógrafos, e grupos independentes. O governo daquela região e as secretarias de cultura incentivavam novos projetos para que as pessoas trabalhassem no que chamavam de cena livre ou cena independente. E essa Christine Brunel era dessa cena livre, aí comecei a trabalhar com ela. Já em 88 eu fui a Porto Alegre justamente dançar no Theatro São Pedro. E dancei justamente esse solo, que era “A minha primeira dor — sonho e libertação”. A Brunel dançava três solos e eu dançava esse solo. Dançamos em Porto Alegre, Salvador e BH.

Briefwechsel, com Simone Rorato. (Claudio Etges, 2001)

Com a Christine Brunel eu aprendi muita coisa. Ela já era uma dissidente da escola Folkwang, estava tentando traduzir o que ela entendia de toda aquela tekné de dança moderna, da german dance, já estava passando para a versão dela. Para mim foi muito importante os nove anos que trabalhei com ela, porque de uma aprendiz inicial eu me transformei, com o passar dos anos, em assistente de coreografia e assistente de direção. Eu era muito próxima a ela, e aprendi muito, muito, muito. Ela era muito dedicada também a mim, ao meu corpo, ao meu aprendizado. Foi um tempo bastante frutífero, mas também foi legal eu tomar o meu rumo e ir atrás das minhas coisas. Então a partir dos anos 90 eu tive também a chance de trabalhar com jovens coreógrafos do Brasil que por algum motivo passavam por Essen ou moravam lá, entre eles Simone Rorato, que era inclusive de Porto Alegre e também tinha sido do Grupo Terra. Trabalhamos também com Armando Pequeno, um bailarino da Bahia que passou por ali; com Rodolfo Leone, um bailarino de Mato Grosso. Deu uma coincidência de eu ter trabalhado com vários brasileiros na Alemanha. Essa cena foi se fazendo, foi ficando mais forte, a gente começou a ter voz e voto. Já na metade dos anos 90 eu comecei a produzir os meus próprios solos. Aí veio uma série de uns cinco solos, e comecei também a trabalhar com outras pessoas. Durante muitos anos, entre 88 e 2001, trabalhei como bailarina/performer com uma artista visual, Barbara Heinisch, uma pintora que fazia performances ao vivo. Eu, bailarina, ficava atrás da tela, e ela usava minha sombra e os movimentos que eu pressionava na tela, com tinta ia como que carimbando aquelas impressões. E sempre que ela trabalhava com música ao vivo, outros músicos da Europa tocavam junto. Era bem performance mesmo, de performar, várias artes dialogando. Trabalhei com essa artista plástica muitos anos, e também com um músico alemão, Peter Kowald, muito talentoso e experimental, que trabalhava com bailarinos e outros músicos. Ele deixou um legado muito importante justamente por trabalhar com artistas de outras áreas, entre eles Kazuo Ohno. Essa artista visual com quem eu trabalhei por muitos anos trabalhou com Pina Bausch, Christine Brunel e muitos outros. Nesses meus anos de Alemanha e de já estar na cena livre, eu já começava a me aventurar por esses diálogos com outros artistas.

O tempo foi passando, eu cheguei com 25 anos e quando vi estava com 40. E de uma maneira ou de outra, tinha ficado muito impregnado na minha cabeça, na minha formação e no meu ser essa coisa de carreira acadêmica. O meu pai, que era funcionário da universidade, sempre chegava em casa e no almoço contava daqueles exemplos de alunos que agora já eram professores e tinham ido fazer mestrado, doutorado (ele falava “PhD”). Eu sempre cresci sabendo que existiam esses tantos graus na universidade. Aí quando começam a chegar os meus 40 anos, começo a perceber que nas artes corporais, principalmente na dança, quando o bailarino começa a ficar mais maduro, parece que, ao contrário, o corpo começa a descer: o entendimento sobe, e o corpo vai tendo essa desconstrução — é normal, articulações, coisas assim, gastam muito. Eu sou bem de um tempo em que ser bailarina tinha toda aquela estrutura de trabalhar oito horas por dia, de seis a sete dias por semana. Era muito forte, e como eu dancei em grupos pequenos, com uma população pequena, aquelas seis a oito horas eram geralmente seis a oito horas mesmo. Então eu desgastei muito meu corpo. E na cena livre, quando acaba um projeto não tinha necessariamente alguma outra coisa esperando. Então eu comecei a pensar seriamente em fazer uma faculdade. Na primeira tentativa, foi com uma ideia de fazer ciências do teatro, porque eu tinha conhecido pessoas que me sugeriram que talvez fosse legal fazer isso. Mas como eu tinha segundo grau brasileiro, eu teria que fazer uma espécie de atualização daquele segundo grau para poder ingressar na universidade. Era muito trabalho, seriam dois anos para equiparar a minha formação de segundo grau brasileira. Preferi tocar um pouco mais a vida, até que um amigo meu, brasileiro, foi me visitar. Ele tinha feito a escola Folkwang, já estava formado, já estava no Brasil e já estava dando aula numa universidade da Bahia. Aí ele me falou: por que você não faz a formação de pedagogia da dança da Hochschule für Musik und Tanz, que é a escola superior de música e dança de Colônia? Aí eu fui atrás dessas informações.

Saudades. (Matthias Hoffmann, 1996)

P — Agora tu que tu estás de volta no Brasil há muitos anos, do que tu sentes falta? O que a gente podia ter que não temos, que não custaria tanto assim, por não ser questão de infraestrutura? E quais são os limites da dança em Porto Alegre?

Sobre as saudades… uma boa pergunta. Uma das minhas peças, o primeiro solo que eu fiz na Alemanha, se chama Saudades, de 1996. Agora com a pandemia a gente remontou aqui um espetáculo com três bailarinos com que eu tenho trabalhado, que se chama Gestos transitantes. A gente transformou numa versão ao vivo, mas virtual. No final a gente abre para falar sobre a saudade, e o público vai falando sobre a sua saudade também. Acho que saudade é uma coisa boa que a gente sente, de lugares, de pessoas, de situações que foram boas para a gente. Então quando tu me perguntas sobre saudade da Alemanha, ah, eu tenho saudade. Foi difícil eu tomar a decisão de vir para o Brasil. Eu nem acho que voltei para o Brasil, eu acho que eu vim para o Brasil — para um lugar novo que eu não conhecia. Porque eu saí de Essen e vim para Campinas, inicialmente para a Unicamp. O meu plano não era, nunca foi ir para Porto Alegre: meu plano era vir para um lugar mais central. Então é uma coisa de estar a caminho, sempre, para algum lugar. Foi difícil tomar a decisão, mas eu me preparei: três anos, faculdades, fui me preparando. Mas o que eu sinto mais é justamente não sentir medo, sair de casa a qualquer hora, com mochila nas costas, e não ficar com a pira que o povo aqui sempre tem. 

Quando eu cheguei aqui, todo mundo dizia: ah, mas tu estás saindo com a mochila nas costas. Essa coisa de tu poderes atravessar um parque — pelo menos no período que eu vivi. Quando volto à Alemanha, nesses quinze anos que já estou no Brasil (fui pelo menos dez vezes pra lá), claro que percebo que está se modificando, que tem mais estrangeiros de países, mais imigrantes, já tem gente nas ruas, tudo mudou também na cidade de Essen. Quando eu cheguei lá, era a quinta maior cidade alemã — claro que isso mudou. Mas eu tenho saudades disso, de ir naqueles supermercados menores, de encontrar certas coisas com preços sempre estáticos, a geleia aquela custa o mesmo preço, o chocolate Lindt é € 1,99, os queijos, aquelas variedades. Mesmo que já se tenha tudo aqui de alguma forma, vejo uma coisa meio heterogênea. Os problemas são parecidos: os franceses estão preocupados com os muçulmanos, mas nós estamos aqui preocupados com as pessoas que vivem na rua. Mas não importa se é muçulmano, se é africano: são pessoas sem teto ou em dificuldade! 

É claro que o mundo vai se modificando, e vai se perdendo muita coisa. Aquela estabilidade de que nada mudava. Eu morei quinze anos no mesmo apartamento, e o aluguel subiu duas vezes: uma vez quando passou de marco para euro (subiu para arredondar o número, sei lá, 5 euros), e uma segunda vez um valor parecido. Não é que nem aqui, que o aluguel, os juros, as coisas sobem muito. É claro que tu sentes saudade disso. E da confiança, porque aqui as pessoas desconfiam de tudo. É uma burocracia… Tu tens que fazer uma procuração com firma reconhecida — o que é firma reconhecida, o que significa isso? Outro dia eu tive até o problema: era por autenticidade ou por semelhança a minha assinatura? Gente, mas se quem assinou fui eu! Mas é tanto roubo e tanta gente fazendo coisas erradas que ser honesto parece ser um privilégio, não algo normal. Eu sinto saudade disso, as pessoas confiam lá. Não tem essa coisa de beijação, ficar se abraçando e beijando como se fosse afeto. E também, quando é amigo, é amigo para sempre. Quando a pessoa chega a te convidar para ir na casa, quer dizer que tu passaste para uma categoria de amigo mesmo. Eu sinto falta dessas coisas. Tento manter isso de convidar, eu chamo os alunos no final do ano na minha casa, abro a casa — uma coisa que eu aprendi: quando eles abrem a casa, quando te convidam para comer, as pessoas te esperam, preparam, depois agradecem por tu teres ido, ou a visita agradece o convite. São essas formalidades, mas que não é formalidade, eu diria que é mais com cara de educação. Sinto falta disso, e ao mesmo tempo eu misturo isso também na minha vida, ou afetando as pessoas próximas a mim com esses costumes. Talvez eu poderia dizer que sinto saudade dessa organização, menos medo de sair na rua, fechar a janela. E mesmo no carro, que pode sempre alguma coisa acontecer. Essa desconfiança que as pessoas têm aqui e que lá não, ou menos. Também não quero ficar com aquele pensamento de imigrante que veio para o Brasil e ainda fica sonhando com aquela Alemanha de trezentos anos atrás.

Bom, Porto Alegre. Eu nasci em Porto Alegre e morei em Essen, que é uma cidade que, mesmo sendo a quinta maior cidade da Alemanha nos anos 80 a 2000, tem essa pegada de cidade pequena. Quando eu fui fazer meu segundo pós-doc, na Alemanha, na Freie Universität de Berlim, entre 2015 e 2016, as pessoas se surpreendiam que eu falava alemão, porque é uma cidade cosmopolita, então eles nem esperam que as pessoas falem alemão: as pessoas falam em inglês. Mesmo na universidade, se tem uma pessoa que não fala alemão, eles falam inglês. Morar em São Paulo era uma coisa que eu desejava, morar numa cidade grande, porque eu nunca tinha morado numa capital — Essen tem um estilo de cidade menor, é Porto Alegre, um pouco menor. Então quando tu perguntas o que aconteceu, quais os limites da dança em Porto Alegre, eu não sei, eu tenho a minha vida de criança e ficando adolescente em Porto Alegre, a empreitada com o Grupo Terra em Porto Alegre, mas não tem uma coisa de apoio de todo mundo para que alguém suba, sabe? É muito cada um o seu. Não sei se tem a ver com a imigração, se ficou uma coisa mais fechada, europeizada — e eu não tenho nada contra ser europeizada, eu tenho toda uma formação eurocêntrica e não tenho nada contra isso, mas, como a gente está conversando aqui, talvez fossem características que deixassem um lugar com mais cara de X e menos Y. A dança em geral tem essa característica de ter pequenas tribos. Acho que é uma coisa meio genérica da dança: cada um do seu jeito, do seu lugar, do seu canto, então fica cada um fazendo seu pequeno fogo e não incendeia, entende. Sempre que voltei, eu vi e vejo: uma tentativa de companhia, uma tentativa de não sei o quê. Mas não chamam pessoas que estão em grandes centros, que estão fazendo mais fogo. Fica uma coisa local. 

Mas isso é uma coisa do Brasil inteiro. Eu participei de um evento ano passado aqui na USP, do programa de pós-graduação, chamado Spa, e que já está virando até internacional. Eu estava coordenando uma das mesas, e uma pesquisadora veio falar de um grupo de dança do Norte que tem trinta e tantos anos e eles vieram de ônibus para São Paulo apresentar a pesquisa deles. Porque o Brasil é muito grande, as coisas são muito dispersas. Porto Alegre foi uma ponte no tempo em que grupos e artistas chegavam para ir a Buenos Aires, então tinha toda uma troca, se ficava sabendo do que estava acontecendo, mais cosmopolita. Hoje tudo é virtual e tu podes ficar sabendo de tudo. Mas uma coisa é ficar sabendo que a coisa está acontecendo, outra coisa é estar fazendo a coisa acontecer. Acho que o Brasil fica muito nesse triângulo Rio–São Paulo, talvez Minas ainda, mas pouco, que então fecha a coisa.

P – Voltando à tua biografia: como tu entraste no mundo universitário? Tu fizeste doutorado na Alemanha e aí voltaste para cá e começaste a lecionar na USP? Como foi essa entrada?

S — Em 2001, já com 41 anos, eu fui atrás das informações para saber como fazia. Nessa escola era necessário que a pessoa tivesse uma vida profissional comprovada, pelo menos seis anos como bailarino profissional. Aí tu terias que dar uma aula de balé para pessoas do curso de pedagogia da dança e fazer uma entrevista. Me inscrevi, fiz todas as provas necessárias, fui aprovada. No semestre de inverno de 2001, comecei a fazer o curso de pedagogia da dança na cidade de Colônia. Mas eu seguia morando em Essen, a 100 km de lá. Todos os dias eu acordava às 5h30 da manhã para pegar o trem das 6h37: ia de bicicleta até a estação de trem, pegava o trem lotado e ia até Colônia. Minha aula começava às oito da manhã. Eu ficava lá até umas 18h, às vezes até às 20h. Fiz um curso muito interessante, que ajudou a organizar algumas coisas que eu já sabia. O curso tinha uma qualidade que era seguinte: os estudantes eram eu e mais cinco — uma alemã, um alemão, um cara do Vietnã, uma menina do Taiwan e um cara da América Central. O da América Central era da Jamaica. E todos haviam sido bailarinos em diferentes companhias, grupos, teatros da Europa. Então todo mundo já tinha no mínimo 35, 36 anos e estava agora querendo organizar aquele saber de bailarino para se tornar professor. O curso tinha bastante essa pegada, por isso tinha só quatro semestres e alguns estágios. Mas era muito intensivo: curso integral e com alguns workshops de final de semana. Anatomia, música, filosofia, balé, pedagogia do balé, dança moderna, pedagogia da dança moderna, história da dança, labanotation [um sistema de anotação para registrar e analisar o movimento humano, criado por Rudolf Laban], composição — matérias assim faziam parte do currículo. Bom, eu fiz o curso, e quando estava me aproximando do final para mim estava claro que queria seguir a carreira acadêmica, que estava começando ali, e comecei a pensar: bom, e por que não Brasil? Pensei muito naquela música do Caetano: “a língua é minha pátria, e eu não tenho frátria, quero mátria”. E a língua é uma coisa que, mesmo com esses dezenove que vivi na Alemanha (aprendi a língua e tal), eu pensava: bom, se eu quiser seguir nessa carreira acadêmica, acho que em português seria um pouco mais fácil. Além da língua tinha a minha curiosidade de rever o Brasil, porque brincando, brincando, eu tinha saído do Brasil com 24 para 25 anos, e estava já com 40 e tantos anos. Aquela parte crucial da vida da pessoa, quando ela vai se tornando adulta, eu não tinha passado no Brasil, tinha passado na Alemanha. Eu estava muito impregnada daquela cultura, daquele jeito de ser, daquela calma, daquele planejamento, bem alemão. E, saindo da coisa pessoal, eu tinha ficado sabendo que no Brasil, no início dos anos 2000, estavam abrindo universidades de dança do Oiapoque ao Chuí. Era o momento certo de fazer uma formação e tentar uma vaga depois como professora universitária em alguma faculdade de dança do Brasil — levando em consideração que a única universidade de dança que existia desde sempre, desde os anos 50, era a Universidade da Bahia. Mas eu era gaúcha, sou gaúcha, nasci em Porto Alegre. Bahia, nos anos 70, era muito longe — não tinha Internet, não tinha essa fluência virtual que tem hoje. Então nunca passou pela minha cabeça fazer curso de graduação em dança na UFBA, nunca, nunca.

Bom, então estou lá em Colônia fazendo minha formação em pedagogia da dança, entre os anos de 2001 e 2003, e estava apaixonada por Tanzwissenschaften, “ciências da dança”. Tive uma professora marcante, Claudiesca, e ela me falava: olha, acho que tu com esse teu plano de ir para o Brasil, com esses teus conhecimentos de dança teatral, do Tanztheater, tu podes transformar isso em pesquisa (ela incentivava muito a pesquisa). Eu me inscrevi para uma bolsa do DAAD — Deutscher Akademischer Austauschdienst (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico) —, uma bolsa nacional na Alemanha, para todas as áreas. Fui passando pelas eliminatórias e cheguei à parte final, que era uma entrevista ao vivo com um grupo de professores doutores que queriam que o candidato contasse, ao vivo e a cores, o seu plano, por que queria aquela bolsa e o que ele ia fazer com aquilo. Fui lá e expliquei meu interesse: queria desenvolver uma pesquisa no Brasil. Eu já tinha me naturalizado alemã, tenho dupla cidadania, então era uma questão OK, quase um direito que eu tinha. E não deu outra: ganhei a bolsa, e com essa possibilidade me inscrevi na Unicamp, no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Fui aprovada e tive a grande honra de ser orientada pela professora livre-docente Inaicyra Falcão dos Santos ao longo do primeiro ano. Como a Inaicyra sempre diz, eu vim muito centrada, já sabia o que eu queria. Cheguei fazendo mestrado e já falei que tinha interesse em fazer monitoria e que meu interesse era ser professora universitária. Consegui fazer todas as disciplinas ao longo daquele primeiro ano, qualifiquei o mestrado em dezembro do ano em que tinha chegado, 2004, fui aprovada na qualificação e a banca me mandou para o doutorado direto. 

Em 2005 comecei a fazer o doutorado direto na Unicamp, e concluí em 2007. Fui relativamente rápida, porque pesquisei algo que tinha muito a ver com a minha vida, com minha história de vida, que resultou na tese Rastros do Tanztheater no processo criativo de Esboço. Esboço foi uma peça coreográfica que eu fiz para os alunos da própria Unicamp (era um doutorado que tinha essa pegada de teoria e prática, já fui trabalhando com os alunos o tempo todo em que estive na Unicamp). Esse projeto com os alunos era uma peça coreográfica de uma hora. Foi muito interessante esse período. Acabei o doutorado em novembro de 2007 e já tinha solicitado, em agosto, um pedido para fazer pós-doutorado. Fui aprovada. Foi muito legal, porque eu cheguei com a bolsa do DAAD, aí passou o tempo de um ano, então ganhei bolsa da FAPESP, e já emendei um primeiro pós-doc de dois anos na Unicamp, também com bolsa da FAPESP. Esse pós-doc tinha a ver com duas pesquisas de duas coreógrafas alemãs, eu sendo um hub desse conhecimento entre um grupo de fora da universidade e um grupo de dentro da universidade. Isso foi durante dois anos lá na Unicamp. Nesse tempo a minha concentração é que eu queria um emprego, então fiquei sempre atenta a concursos que pudessem abrir na área de dança. Fiz um concurso para a Universidade Federal de Natal, fui reprovada, e eu agradeço muito por ter sido reprovada, porque um ou dois meses depois eu me inscrevi para um concurso na USP, em que fui aprovada. Foi muito bacana, como um coroamento para essa carreira. Entrei para a Escola de Comunicação e Artes, Departamento de Artes Cênicas da USP. Desde 2010 estou nesse departamento, e aí fui me promovendo. Na Unicamp mesmo eu já tinha, como doutoranda, entrado como professora colaboradora, então já estava orientando dois mestrados. Quando vim pra USP, comecei logo a orientar: no segundo ano eu já estava no programa de pós-graduação e comecei a orientar um primeiro doutorado. Hoje eu tenho no Lattes vários doutores e mestres que já formei.

Com alunos da USP. (Acervo SP, 2019)

Tenho um grupo de pesquisa que é muito importante para mim, como pesquisa e como afetividade: chama-se Laboratório de Pesquisa e Estudos em Tanz Teatralidades. É composto por alunos da graduação, pós-graduação e pós-doc também. Vai fazer dez anos ano que vem. A gente já publicou um livro e fizemos alguns seminários, convidando professores de práticas de danças e ciências diversificadas. Enfim, é um lugar muito fértil de criações coreográficas. Eu já criei oito peças coreográficas para o grupo. O grupo tem aquele rodízio, as pessoas ficam quatro, cinco anos. E nos últimos anos até os meus ex-alunos acabam me convidando para eu ser provocadora de projetos que eles fazem, como orientadora de práticas que eles estão fazendo ou assistente de coreografia dos projetos — eles começam a ficar independentes e chamam para dialogar. Um núcleo muito importante para mim é o núcleo Dédalos, que se situa em Piracicaba, aqui no interior do Estado. É da Luiza Banov, a aluna com quem eu trabalho há mais tempo: orientei seu TCC, mestrado e doutorado, que acabou de ser concluído, e a gente tem grandes parcerias. É com ela que eu tenho uma peça minha, chamada Caminhos, de 98. Dentro disso a gente está com uma pesquisa já bem aprofundada, que tem se transformado em lecture-performances — agora com a pandemia, lecture-videoperformances. A gente tem feito essas performances virtuais para diferentes eventos que nos convidam e que eu tenho produzido também. Acho bem interessante que, com esse grupo, em todo o trabalho cênico que eu tenho feito aqui pelo estado de São Paulo temos convites ou para apresentar em outros estados, em outras universidades, ou no exterior também, congressos. Ano passado, estivemos num congresso, por exemplo, na Northwestern University, em Chicago.

Caminhos. (Claudio Etges, 2017)

O que eu posso dizer? Na escola de balé do Rolla, em 66, quando iniciei, eu imaginava talvez que eu fosse médica, mas nunca poderia imaginar que a minha maior paixão, que é a dança, me levasse por tantos caminhos, que eu tivesse conhecido tantas pessoas incríveis (e também pessoas menos incríveis, mas a maioria foram pessoas interessantes). E quando a gente está contando a nossa história, a gente traz à tona as coisas boas, na maioria das vezes. Então, nesses meus sessenta anos (completei em 2020), quando olho para trás, para o lado, para cima, vejo tantas situações interessantes, tantas pessoas bacanas que eu encontrei e tenho encontrado, tantas trocas e tantas oportunidades. Agradeço muito aos meus genitores, à família em que nasci e que me apoiou: até quando eles não me apoiaram (porque claro que ficaram com medo dessa carreira de artista), até quando eles tiveram esse medo — qualquer pai normal teme por uma decisão arriscada que o filho possa fazer. Mas eu agradeço muito à família em que nasci, pela ética que eles sempre tiveram. E mesmo essas coisas do racismo nunca foram algo que fizesse com que a gente fizesse menos ou que nos inibisse – pode inibir psicologicamente, coisas que eu vou conversar com meu analista. Mas em termos de vida, a gente foi indo, indo, indo e chegou a alguns lugares, acredito.


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