Entrevista

Vítor Ortiz sopra nas brasas da história de Porto Alegre

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Vítor Ortiz sopra nas brasas da história de Porto Alegre

Uma ideia simples: desapagar. Trazer de volta. Soprar nas brasas para reavivar o fogo da memória. Esse é o mote do excelente trabalho dirigido por Vítor Ortiz na série DesapagaPoa, um conjunto de dez episódios, em formato de podcast, que dá protagonismo para gente habitualmente apagada dos relatos heroicos da história da cidade: afrodescendentes e ameríndios. São eles que revivem na série. Lidando com dificuldades de variado tipo – pesquisa em fontes confiáveis e produção de textos a serem lidos, por um lado, mas mais ainda a gravação em si, sem acesso a um estúdio regular em vista da pandemia –, DesapagaPoa é um grande exemplo de mobilização da inteligência em favor de maior igualdade. 

Os dez episódios estão abrigados no site do Matinal Jornalismo

Parêntese – Como tem sido o retorno do podcast DesapagaPoa?

Vítor Ortiz – Foi bem além do que imaginei. Cerca de 2.500 streams no Spotify, mais os números do Cast Box e mais a audiência da Rádio FM Cultura. São números bem expressivos para um projeto de memória cultural. Devemos considerar aí que este foi o retorno instantâneo. O fato do conteúdo ser atemporal permite que a chama permaneça acesa e que o potencial de alcance possa se ampliar bastante com seu uso educativo, como suporte para o professor que quiser dar uma aula sobre qualquer um dos temas tratados.

P – De onde veio a ideia?

VO – Primeiro a minha fixação com podcast nos últimos tempos e com a impressão de que faltam ações de divulgação científica. Especialmente a pandemia me fez virar um consumidor voraz de podcasts. Juntei isso ao interesse em prestar mais atenção à questão negra em Porto Alegre, despertado pela série sobre os 200 anos da viagem do Saint-Hilaire, que produzi em 2020 em formato de podcast para o Canal Histórias de Viamão. Um esforço de olhar aquelas anotações do botânico sobre o Rio Grande do Sul e Porto Alegre parametrizando-as com os estudos atuais sobre diversas questões, como por exemplo sobre a população negra da cidade, a escravização no Sul e sobre os indígenas que ele foi encontrando no trajeto. Tenho também procurado entender esse debate sobre essa questão do “apagamento”. É algo real, muito evidente e recorrente em Porto Alegre. Veja o caso do Wilson Tibério. Um artista incrível, fundamental inclusive no debate da questão do racismo no país e totalmente apagado. Por fim, veio a oportunidade do edital da Lei Aldir Blanc, organizado pela SEDAC/RS e Fundação Marcopolo, e a nossa proposta foi superbem pontuada.

P – Há muito material historiográfico, arqueológico, etc., não é? E por que a gente em geral conhece tão pouco desses aspectos da história, seja a de Porto Alegre ou a de qualquer outra parte do país? Tem a ver com preconceito?

VO – Tem a ver com preconceito e luta de classe. Os ricos buscam um modelo de cidade que tem como referência a cidade do burguês europeu ou do capitalista americano. Não querem portanto nem parecer pobres, nem serem confundidos com gente de periferia, negros, africanos, índios. Esses valores se reproduzem em todo o lugar, e em Porto Alegre talvez isso tenha sido até exacerbado. Os temas tratados nesta série do Desapaga POA mostram com clareza uma sequência de diásporas ocorrendo desde a transformação da cidade colonial numa cidade capitalista, na virada do XIX para o XX; até a transformação daquela cidade do início do século XX em uma cidade industrial e de serviços do tempo moderno. Os negros foram sendo tirados do centro para a Ilhota, da Ilhota para a Restinga, da Colônia Africana para o Mato Sampaio, e assim tem sido até os tempos atuais. Veja o caso da pista de eventos do carnaval de Porto Alegre.

P – O podcast tem circulado em ambientes escolares? Se sim, como tem sido a experiência?

VO – Não tivemos uma ação educativa associada a esta fase de produção da série, mas temos uma expectativa de que os professores possam utilizar os conteúdos, uma vez que estão disponíveis de forma acessível e gratuita na internet e no site do Matinal Jornalismo, onde temos os roteiros para leitura, a bibliografia e imagens da pesquisa. Em cada episódio, tratamos pelo menos três temas diversos, abordando questões da memória e da história indígena da cidade, muito pouco conhecida; da história dos negros e negras de Porto Alegre, extremamente rica e presente, os territórios negros, por exemplo; e das periferias, especialmente sobre esta separação entre centro e periferia. Histórias clássicas como a da Maria Degolada ou da Índia Obirici, até os flagrantes sobre a visão preconceituosa que a imprensa dos anos 1950 e 1960 ajudou a propagar sobre o lugar onde os mais pobres viviam e onde ainda vivem, como lugares de marginais, bêbados e outros termos pejorativos.

P – E como foi produzir 10 episódios, cada um com quase uma hora de duração, em 60 dias, com uma pandemia bombando?

VO – Foi o maior desafio. Apesar do projeto contar com uma equipe de 20 pessoas envolvidas com as várias etapas (pesquisa, roteiro, gravação, trilha sonora e edição), nunca tivemos uma reunião presencial, nem antes nem durante. Ou seja, foi um aprendizado gigante. Dominar produção dos textos, finalização dos áudios, distribuição, etc. As circunstâncias prejudicaram bastante a qualidade final. Cada locução era feita com equipamentos próprios, fora de estúdio, e essa foi a maior dificuldade. Aprendemos bastante para poder fazer melhor da próxima vez.

P – O canal terá continuidade depois desta série?

VO – No andar desta primeira série surgiram várias ideias. Uma delas é de uma série sobre o Príncipe Custódio, a partir dos trabalhos mais atuais como do Jovani de Souza Scherer e do Rodrigo de Azevedo Weimer no livro No refluxo dos retornados. Ou ainda sobre os diversos personagens da história negra da cidade sobre os quais não conseguimos nos aprofundar, como Aurélio Bittencourt, Oliveira Silveira, Tesourinha, e vários outros fundamentais para entender a cultura negra que emergiu dessa presença africana, da escravidão, assim como das formas artísticas geradas daí, da própria organização urbana atual da cidade e as influências negras.

Temas trabalhados nos episódios do Desapaga Poa

EPISÓDIO 1:
Origens da divisão entre centro e periferia

A lenda da Maria Degolada

Conceitos de Favela (no Rio) e Maloca (em Porto Alegre)

EPISÓDIO 2
A lenda do escravizado Josino

A Irmandade do Rosário dos Negros

Demografia negra na Porto Alegre dos anos 1800

EPISÓDIO 3
A fundação de Porto Alegre e o contexto da guerra guaranítica

A lenda da Obirici

EPISÓDIO 4
O Plano de Melhoramentos e Embelezamento de 1914

O patrimônio cultural das Periferias (Museu das Ilhas, Memória dos Bairros e Museu da Lomba do Pinheiro)

EPISÓDIO 5
A Esquina do Zaire e os encontros negros no Centro

As origens porto-alegrenses do 20 de novembro

Wilson Tibério, Oliveira Silveira e geógrafo-antropólogo Yosvaldir Bittencourt

EPISÓDIO 6
Cosmologia e Território para os Guarani e os Kaingang

Karaí Vicente: o velho indígena guarda do portão da cidade

A obra Área Indígena do artista mestiço Xadalu

EPISÓDIO 7
A história da água potável e do saneamento básico em Porto Alegre

A evolução tecnológica e funcional do transporte coletivo urbano

Flagrante de preconceito na visão da imprensa dos anos 1950 sobre o Mato Sampaio

EPISÓDIO 8
Os territórios negros de Porto Alegre: Areal da Baronesa, Ilhota, Colônia Africana, Mont Serrat e o Mercado Público

A Liga da Canela Preta, Lupicínio e Tesourinha

Africanidades no carnaval de Porto Alegre com o Rei Momo Lelé

EPISÓDIO 9
O tesouro arqueológico sob os pés transeuntes da Rua da Praia

Os aldeamentos e o trabalho indígena

O Beco dos Guarani na visão dos cronistas antigos

EPISÓDIO 1O
A história do Carnaval de Porto Alegre: dos entrudos e corsos ao Porto Seco

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