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Entrevista: A doutora Barbosa pode, sim, servir o cafezinho

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Entrevista: A doutora Barbosa pode, sim, servir o cafezinho

Parêntese estreia sua seção de entrevistas com Márcia Barbosa, professora titular de Física na UFRGS, doutora pela Universidade de Maryland, nos EUA, ex-diretora de sua faculdade, que se destacou mundialmente como ganhadora, em 2013, do importantíssimo prêmio L’Oréal (sim, a líder mundial na fabricação de cosméticos, empresa de mais de cem anos que promove um prêmio para pesquisa básica e aplicada em áreas de seu interesse), conferido a cada ano apenas a uma pesquisadora de todo o continente americano.

Quando perguntada sobre o assunto que pesquisa, ela diz, com singeleza e uma pitada de provocação: “Eu mexo com água”. Mas é isso mesmo. Física teórica, ela tem estudado o tema, formulado hipóteses de grande alcance e descoberto coisas sobre o comportamento da água, essa mesma, a de todos os dias, um elemento tão central na vida que às vezes, como o ar, não é vista, nem prestigiada. Por enquanto.

Nos últimos tempos, Márcia tem se destacado pela militância no tema da mulher na ciência. São poucas? Por quê? Sempre foi assim? O que pode ser feito para mudar? O que é que agora e aqui a gente pode começar a fazer?

Numa sexta-feira, dia 25 de outubro de 2019, num café da Osvaldo Aranha, Katia Suman e eu sentamos com a Márcia, que saía de uma reunião do Conselho Universitário da UFRGS, para essa conversa. Falante, destravada, propositiva, Márcia Barbosa é uma figura que vale a pena conhecer mais de perto – mesmo para quem passou a vida com medo da Física, ou quem sabe especialmente para gente assim.

– Luis Augusto Fischer, editor da Parêntese

Parêntese: Vamos começar?

Márcia Barbosa: [Mal senta, já começa a falar para explicar a agenda cheia] … meus pais têm idade – vocês devem viver a mesma situação –, eu tenho que monitorar, então tem um calendário na mesa do pai onde ele anota onde eu e meu irmão estamos, e ele contabiliza. Ano passado ele me disse: “Márcia, tu passaste metade do segundo semestre viajando”. Normalmente eu viajo pra ficar bastante tempo em um lugar fazendo pesquisa, mas desta vez não, eram muitos lugares diferentes. Foi durante a campanha eleitoral que me convidavam muito para falar de gênero e ciência. Aí, quando terminou a campanha, um dia depois da eleição eu comecei a receber convites para ficar um tempo fora do Brasil, foi muito engraçado. Inclusive tinha uma posição acadêmica, com que há muitos anos eu sonhava, fora, e me disseram: “Márcia, está na hora!” Em Trieste [Itália] ia trocar o diretor de um centro de pesquisa, nunca teve uma mulher, era o meu sonho, e o diretor atual me escreveu e disse, “Entra, é a tua vez!” Ele nem me conhecia pessoalmente, só de currículo e de conferências. E várias pessoas me dizendo e eu só pensava: “Eu não posso sair do Brasil agora. Agora é a hora das pessoas velhas, como eu, pessoas que têm menos espaço de vida, no sentido de que eu sou mais descartável, então eu posso ousar. Pessoas que não têm que competir por emprego, então eu posso avançar, eu posso puxar o limite, então eu tenho que ficar aqui”. Agora ninguém mais ouve falar do assunto [gênero] com medo do presidente. Céus! Ficou pior! Está tudo muito ruim. Quer dizer: ruim e bom. Eu brinco que a Márcia pesquisadora de água tem muita inveja da Márcia pesquisadora de gênero. Eu quase odeio ela porque ela é muito mais convidada do que eu para falar de água.

Fotos: Carlos Elder

P: Queríamos ouvir a tua história, a trajetória antes de virar professora e pesquisadora.

MB: Vamos começar lá atrás: eu sou pesquisadora há muito tempo da universidade, há 20 anos, e além de trabalhar em pesquisa teórica de Física, particularmente da água,
trabalho em gênero. Água, como entrou na minha vida? Eu trabalhava muito com misturas de colóides – colóide é… Tudo que se faz – sapato, comida, cremes –, é tudo feito de colóide. Eu fazia uns modelinhos teóricos muito simples, porque essa é a minha vibe, fazer coisas simples.

P: Modelos matemáticos?

MB: Modelos matemático, sim, em fórmulas e tal, e predizia coisas, tipo isso vai grudar, isso não vai. Porque os colóides podem apresentar vários problemas concretos, tipo, eu quero o leite não forme gruminhos. E como são partículas grandes elas tendem a grudar com as pequenas, para poderem passear bastante: ganha-se entropia quando as pequenas se mexem, como a gente juntar as cadeiras de uma sala num canto para poder dançar: o espaço ocupado é o mesmo, mas a gente junta num canto e a gente ganha entropia. Então eu estudava isso mas os meus modelos para a água eram muito ruinzinhos. E eu sabia que eram ruinzinhos e tinha coisas que eu não conseguia explicar. Então eu pensei: vou parar um par de meses e vou estudar só água, e depois que eu entender bem a água eu volto a juntar água com os colóides de um jeito mais esperto. E lá se vão 15 anos que eu só estudo água. Pra ver como a gente é iludido.

P: E descobriste coisas interessantes?

MB: O que que a gente conseguiu mostrar? Bem, a água tem 70 coisas loucas. É muito doida… Tipo aquela menina de cabelo azul com piercing, com tatuagem, com tudo em cima. Essas coisas loucas da água é que fazem a vida existir. Elas é que fazem a gente ser possível e viável aqui no planeta. Mas como a água é tão protagonista, tão presente, a gente não dá muita bola. Mas tem que dar bola, a gente tem que entender por que que ela é maluca, o que que a gente pode fazer com a maluquice. A minha ideia era assim: eu quero entender a maluquice pra ver como é que eu uso isso a meu favor. E o que que a gente viu? Tinha um experimento muito interessante, que tu pega a água em baixa temperatura, -10 graus, mantendo líquida – experimento que não é pra qualquer um fazer não… Assim, entre -10 e 10 graus tu consegue manter ela líquida fazendo milhões de truques experimentais. E aí o que que eles olhavam? Olhavam que as moléculas da água se moviam mais rápido quanto mais molécula de água havia. Tipo assim, quanto mais carro tu colocar no trânsito, mais rápido cada carro andaria. Ora, isso não acontece com os carros. Ou como véspera de dia das mães, em shopping center, quanto mais gente mais as pessoas se moveriam rapidamente. Eu disse: eu quero estudar isso. Então a gente fez uma simulação, que é o que eu faço, a gente põe numa caixa umas bolinhas com as interações da água e olha como é que elas estão se movendo. A vantagem que eu tenho sobre a pesquisa experimental é que eu consigo olhar mesmo, de verdade, eu faço filmezinho. Tudo com simulação, tipo um videogame. Só que um videogame que tenta ser tão real quanto a realidade. Então a gente põe as bolas lá, como água, põe as interações que a água tem que ter e observa como se comportam. E aí a gente observou o que o experimental já tinha visto, que se colocava mais moléculas e elas andavam mais depressa! Grande coisa, vocês poderiam dizer, o experimental já tinha visto. Mas na simulação eu posso fazer uma coisa que no experimental não se pode fazer. Na simulação a gente é deus! Eu posso botar um vetor em cima, um pino, eu ordeno, eu boto um vetor e vou observar o quanto ela roda, que não é trivial para um experimental. Posso olhar ela rodando. Então: quando ela andava mais rápido, mais rápido ela rodava [em torno se si]. Então tinha uma relação entre andar e rodar. Tipo uma dancinha. E aí um colega nosso, também da mesma linha de pesquisa, notou uma coisa mais fantástica: ele viu que as que andavam mais rápido eram vizinhas das que rodavam. Tipo aqueles filmes de antigamente, que tem uma bonitona que desce uma escada e os caras ficam rodando em volta, tipo isso. Tem um vídeo, eu sempre cito, vocês querem ter uma visão, peguem o “Call me when you’re sober”, do Evanescence, em que a bonitona está andando pela mesa e as pessoas giram à passagem dela…. A água faz exatamente isso. E a gente pode entender o mecanismo. Cada molécula de água pode fazer quatro ligações de hidrogênio. A água é um oxigênio e dois hidrogênios: o oxigênio puxa os elétrons porque ele tem muito próton, então fica aquela distribuição que nem quando a gente divide alguma coisa com o irmão mais velho – irmão mais velho é mais velho, ele vai levar a parte maior. O oxigênio é o irmão mais velho, ele puxa e aí ele fica muito negativo. E aí fica aquele V, com uma parte bem negativa, e as pontinhas positivas atraem as moléculas vizinhas. Mas essa atração precisa de uma certa distância – se aproximar muito tu não consegue, se ficar muito longe tu perde. Então é meio como ficar numa festa, não é casamento. Então tu pode fazer quatro ligações. Quando tu adensa, a molécula de água começa a ver que tem um quinto vizinho, com quem não está fazendo ligação mas está ali perto. E fica flipando a ligação de um pro outro. Bem sacana a molécula, bem promíscua [risos]. E no fazer isso, ela anda rápido, ela se move rápido, passando de mão em mão. Como se a gente pra andar rápido num shopping fosse segurando nos ombros das pessoas do lado. Eu gosto de dizer pros meus alunos: não tentem fazer isso… Porque adensou, ela consegue se mover. E foi por essa conceitualização, por esse conceito, por entender esse mecanismo de verdade que a gente ganhou esse prêmio L’Oréal em 2013. E foi muito divertido! E é um prêmio de que eu já tinha sido júri em 2007, porque eu trabalho em gênero há tanto tempo.

P: São poucas mulheres a cada ano, né?

MB: O prêmio escolhe uma cientista mulher por continente a cada ano, e faz isso um ano pra Biologia, que é o mais antigo, e um ano pra Física. O prêmio dá dinheiro, 100 mil dólares, quem não quer? Mas principalmente dá visibilidade. Muitas delas acabaram virando prêmio Nobel.

P: Em uma outra entrevista tu contaste do susto de ver a tua imagem, em uma megapainel, numa das entradas do aeroporto, em Paris.

MB: Sim, eles gastam quase mais dinheiro com a publicidade do que com o prêmio propriamente dito. A gente fica uma semana lá, em Paris, desce no aeroporto e estão as fotos das ganhadoras penduradas no teto do aeroporto, como se fossem estrelas de cinema, fotos imensas.Nas paradas de ônibus, onde costuma ter propagandas de cosméticos, estão as fotos das ganhadoras. E aí, no ano em que eu ganhei, 2013, eles encheram a Champs Élysées com fotos das pesquisadoras.

P: Tu chegaste a ser reconhecida na rua, lá?

MB: Eu levei toda a família, bem coisa família Brasil, foi minha mãe, meu irmão, meu sobrinho, meu namorado, todo mundo. E eles escolheram para botar a minha foto bem na saída da Latam. Então o meu irmão gritava, ‘é a minha irmã, é a minha irmã!!!” Nós somos a família mais barraco possível. Foi muito emocionante. As pessoas viam a foto e perguntavam, essa pessoa é importante? E ele, não, é só cientista [risos]. Na entrega do prêmio, a gente tem dois minutos pra falar, porque eles acham que a gente é muito aborrecido falando. Na academia, a gente poderia dar uma palestra, mas num show, com uma apresentadora chique, é só dois minutos para falar. E aí eu disse que eu era, ao longo da história, a única que era realmente militante além de cientista. Não é comum cientista de exatas dizer que gênero é importante. Na verdade, a maioria delas nunca pensou neste assunto. Quando a Anneke Sengers ganhou, em 2003, ela bateu o telefone na cara da L’Oreal três vezes porque pensou que estavam vendendo cosméticos. Não há esse reconhecimento na área, é muito distinto de ser feminista em outras áreas. Bom, e eu tenho total consciência da questão de gênero. E eu sabia que eu tinha que trazer esse tema para os dois minutos, porque as outras iam lá e contavam em dois minutos coisas como “Eu ganhei esse prêmio porque eu desenvolvi tal coisa, tal coisa e tal coisa”, numa linguagem completamente não compreensível, esotérica…. Uma até disse uma piada superengraçada para cientista: “Nós aqui ganhadoras somos férmions”. Era para ser uma piada, mas só umas dez pessoas entenderam.

P: Férmions? Que é isso?

MB: Explicando a piada: as partículas podem ser de dois tipos, as que se juntam, aquelas que gostam de estar fazendo o que o grupo faz, e os férmions, que, ao contrário, cada um fica num estado. Então ela quis dizer que a gente era único, especial, que a gente insistiu com ideias doidas. Quando a gente quer dizer que todo mundo está junto, condensou em um estado em que todas as partículas vão para aquele estado, tipo um grupinho de adolescentes, são os bósons. Então, bom, estamos na Sorbonne, cheio de imprensa, aquela tensão. E eu: “Tem uma história verídica – todo mundo diz que as minhas histórias não são verídicas –, um jornalista me perguntou o que é que uma pessoa sente quando descobre alguma coisa. Eu disse, no processo científico, com talvez em qualquer processo, a pessoa luta, tenta, luta, tenta, luta, tenta, até aquele momento mágico em que tu te dá conta que foi a primeira pessoa no mundo a entender aquilo. Senhoras e senhores, isso é um orgasmo!:” Quando eu digo isso todo mundo ri, e daí eu dou uma paradinha e digo: “Não é uma pena que a gente esteja proibindo que 50% da população, ou seja, as mulheres, de terem um sentimento tão lindo, ou seja, de ser cientista?” Isso virou o assunto do coquetel depois, o presidente da L’Oréal veio me dizer depois: “Nossa, eu tenho eu pedir um orgasmo por dia para os meus trabalhadores então?” E eu: “Até mais!” [risos de todos]. E foi tão impactante, que o [jornal] Le Figaro tinha escolhido falar só sobre uma, e escolheu falar sobre a minha vida. Enfim, teve um impacto não só divulgar a minha descoberta – naquela época a água nem estava tão na moda como está agora –, mas falar com uma pessoa que também entendia essa outra coisa, o gênero na ciência. Aí a apresentadora, que era uma apresentadora de TV, disse assim, “Nossa, tá quente aqui, né?” Uma espécie de Hebe Camargo francesa, se deu conta de que era um ambiente super-formal, sisudo. E eu acho que ciência não tem que ser assim, formal e sisudo.

P: Deve ter sido para ti uma experiência forte.

MB: Imagina… O prêmio me deu muita oportunidade com a imprensa, todo mundo ligava, quem é essa brasileira, o que que ela faz, etc. E aí eu falava de água, que é muito importante, que o Brasil tem muito mas desperdiça horrores, e a gente precisa entender que a gente é protagonista no mundo nessa questão e tinha que se empoderar disso. E tem um risco grande com o aquífero Guarani… Ou seja, tem questões de ciência, de política, muita coisa envolvida. E ao mesmo tempo trazia essa questão de gênero.

P: Uma nova dimensão para o debate sobre gênero na ciência.

MB: No ano de 1999 a União Internacional de Físicos, que reúne todas as Sociedades de Física do mundo, se deu conta que havia poucas mulheres entre eles e montaram um Comitê de Gênero Internacional. Os outros países levaram a sério o Comitê, tinham representantes de cada região, os Estados Unidos mandaram uma assessora do Clinton, o presidente do CERN estava, só tinha gente importante. E o Brasil me mandou. Eu era uma pesquisadora relativamente jovem. Acho que eles me mandaram para eu parar de encher o saco, porque eu sempre fui meio aporrinhadora. A primeira reunião foi um susto, porque era eu e aquele monte de cabecinha branca coroada. E porque eu dei algumas ideias, eu virei coordenadora do grupo. Era muito divertido! E aí, em vez de fazer um relatório, que é uma coisa normal de os cientistas fazerem, eu disse: “Vamos fazer uma revolução, vamos fazer um grande evento, juntar países para discutir o tema e a partir daí nuclear grupos que vão fazer a revolução em cada um de seus países”. Então a gente juntou 65 países. E as cabecinhas coroadas assim: “mas Márcia, como é que a gente vai achar físicas e físicos em todas as partes?” Eu disse, deixa comigo que a internet foi feita pra isso. Eu tinha mais familiaridade com o instrumento, e eles tinham uma função importante. Eu disse: eu preciso de 1 milhão de dólares para tocar esse assunto, vocês acham esse dinheiro e eu acho as pessoas. A gente vai ter que pagar, porque nenhuma agência de fomento paga para tu ires numa conferência de mulheres. Cada país traria um grupo de pessoas, e esse time, quando voltasse, começaria a revolução localmente. Bom: esse evento rola a cada três anos, roda o mundo, mas eu já não estou há muito tempo, depois fui saindo para outras coisas. Mas o movimento continua e esses grupos estão produzindo políticas nos diferentes países.

P: Falando nisso, vocês, físicos, foram os primeiros a usar de verdade a internet, certo?

MB: O www começa no CERN, onde tinha um grande acelerador de partículas, com grupos de pesquisa de mil pessoas cada… Como é que mil pessoas, de várias partes do mundo, conversam? Foi preciso construir a ferramenta. Então constroem toda a rede
para fazer isso, sem pensar que a rede serviria para nós fazermos todas as outras coisas. Na Física, como a gente tem essa internacionalização de nascença e a gente não é muito prolixo, a comunicação pela rede funciona bem. A dinâmica de outras áreas, em que se fala mais, em que a palavra é mais importante, fica prejudicada, mas para a área de Física sempre foi uma beleza. E a gente publica internacionalmente – quando comecei a minha pós-graduação, e agora eu estou entregando quão velha eu sou, a gente não tinha a internet, então era preciso mandar as publicações pelos Correios: eram duas semanas pra ir, duas pra voltar, então a gente, aqui no Brasil, estava sempre atrás. Agora a gente tem tudo ao mesmo tempo, em qualquer parte do mundo. Então sempre foi de vital importância ter uma internet rápida, que funcione bem, e a gente trabalha assim desde a década de 90.

P: Boa hora para tu contares tua história anterior à universidade.

MB: Eu sou advinda da escola pública brasileira. O meu pai é militar e eletricista, então eu aprendi a mexer em coisas em casa, porque militar é assim, não faz nada sozinho: ele ia consertar as coisas e chamava os filhos para serem os ajudantes de ordem. Meu irmão, esperto, dizia a palavra mágica “já vou” e nunca aparecia. Então eu era a segunda em comando, era a segunda mais velha, e adorava fazer isso. Eu peguei essa coisa de consertar e de entender os mecanismos com meu pai. Apesar de ele ser militar – estávamos na ditadura militar, ele estava dentro daquele sistema, ele acreditava naquele sistema –, ele achava ok pensar de forma diferente. Meu pai era um sargento, então ele dizia: “Vocês têm que estudar pra ter uma vida melhor”. Minha mãe teve Ensino Fundamental, ele teve Ensino Médio militar, só, então tinham muito claro que a gente tinha que se matar estudando. Somos três irmãos, eu sou a do meio. A mais nova é produtora de figurino, pegou a área mais artística – minha mãe era costureira. Na escola pública eu participava um monte; à noite, eu dava aula quando faltava um professor. Eu estudei no colégio Marechal Rondon, em Canoas, e montei o laboratório do colégio, foi uma experiência muito interessante. No Ensino Médio não tinha muito essa diferença menino e menina, era 50% a 50% na sala de aula. Na escola pública ninguém ensinava a ser gênio, diferente das escolas privadas. Era assim: quer estudar, estuda, mas tinha mais liberdade. Aí eu entro na UFRGS num momento em que não era tão comum passar gente da escola pública.

P: Teu desejo logo foi Física? Não pensou em Engenharia?

MB: Meu pai queria que eu fizesse Engenharia mas eu queria Física, porque tive um professor de Física, Milton Zaro, que fazia doutorado na UFRGS e eu vi, “Opa, tem pesquisa, quero fazer isso, quero experimentação”. Ele foi super-inspirador. E também foi inspirador por outro lado, o meu pai contava história do governo militar, da visão dele, e esse professor, enquanto mexia no laboratório, ia me contando o outro lado. E eu, muito espertamente, jogava um lado contra o outro lado, pra formar a minha opinião. Aí vim pra universidade, onde só tinha gente da escola privada, e achava muito engraçado, porque todo mundo era gênio e ia ganhar prêmio Nobel, uma mentalidade que vinha dessas escolas chiques-ricas. Entrei para a universidade em 1978 e foi um grande impacto. Aí começa a haver um movimento contra a ditadura e eu começo a olhar isso. Eu, vindo de escola pública, pensava: “Não nasci pra ser gênio”. Eu era uma excelente aluna mas não tinha o pedigree certo, então os professores não davam muita bola pra mim. E sendo mulher, eu ficava mais invisível ainda. Mas quem é invisível consegue fazer coisas, se movimenta muito bem. Também me chocou a falta de mulheres na liderança estudantil. As mulheres distribuíam panfletos, faziam o operacional e só. Isso me incomodava. E como eu não tinha sido educada com foco em nenhuma corrente específica – naquela época era assim, os marxistas contra os leninistas, um ista contra um outro ista, era uma briga contra todo mundo – e isso pra mim, na minha compreensão, de quem não tinha tido filosofia na escola, era tudo muito parecido, eu não entendia por que brigavam tanto. Mas eu via que as mulheres não estavam nessas lideranças. Aí resolvi concorrer para presidente do Diretório Acadêmico da Física, que nunca tinha tido uma mulher como presidente – mal tinha alguma liderança no conjunto da universidade. Eu convidei um colega de cada facção – o meu tesoureiro era nada mais nada menos do que o Arno Augustin (ele fazia Física, depois foi pra Economia). Eu sempre fui muito mercadológica, então coloquei o nome de Frente Ampla na chapa, pois me parecia que era uma frente ampla. Imediatamente se gerou um desconforto dos meus colegas, principalmente os da pós-graduação. No dia seguinte eles colocaram cartazes jocosos, escrito Frente Ampla e com um cartum de uma mulher com seios aparecendo. Eles pensaram que iam me intimidar com uma merda dessas. Concorri, ganhei e fui a primeira presidente mulher do DA da Física. Foi muito divertido trabalhar naquele momento com aquelas pessoas, era desafiador tu ter posição estudantil e ao mesmo estudar, porque em Física a gente tem que se matar estudando. Eu quase que morava dentro do prédio da Faculdade.

P: Tu moravas em Porto Alegre, já?

MB: Os meus pais moravam em Canoas e aí começou a acontecer de eu voltar meia-noite pra casa, numa época sem Trensurb e ônibus raros. Eu ia lá na Voluntários pegar um ônibus e aí meu pai disse “Não, tá demais”. Aí fizemos um esforço coletivo, eu, ele e meu irmão, ficamos um ano dando um cursinho para sargentos em Canoas, juntamos um dinheiro e meu pai deu entrada num pequeno apartamento naqueles bloquinhos na Bento Gonçalves. A ideia era eu e meu irmão morarmos lá, mas meu irmão pouco ficou lá porque sentia muita falta da comida da minha mãe [risos]. Eu tinha bolsa de iniciação científica e com isso pagava minha alimentação, todo o meu transporte – fazer isso hoje é impossível – e tinha minha vida, e ainda economizava. Consegui me formar, ganhei bolsa de mestrado.

P: Houve algum professor marcante nesse tempo?

MB: A pessoa que mais me marcou na época foi quem veio a se tornar meu orientador. Tinha vindo do exterior, um casal, Walter e Alba Theumann. Pararam em Porto Alegre depois de rodar o mundo em pós-doutorados, etc. Eles estavam dando aulas no Alabama, são argentinos, e vieram para o Brasil porque o Brasil ainda era melhor do que a Argentina para quem tinha posições de esquerda. Eu vi que ela trazia coisas novas que a gente não estava fazendo aqui. Era uma pessoa bem complexa de entender, não era trivial, mas eu pensei: “É isso que eu quero fazer. Eu quero fazer uma coisa que ninguém está fazendo. Eu quero estar igual ao mundo”. E ele vinha com ideias novas. E era bom também porque ele era casado com uma cientista, eu diria que o casamento até prejudicou um pouco a carreira dos dois, porque tinham que arrumar sempre um lugar bom para os dois. Nós, aliás, temos uma Galeria de Arte no Instituto de Física que ganhou o nome dela, porque ela gostava muito de arte. Não foi fácil trabalhar com ele, porque ele era uma pessoa muito difícil de entender, mas eu consegui. Fiz mestrado e doutorado com ele. Quando chegou a hora de fazer pós-doc eu era casada com um colega, o que é bem comum na Física, porque a gente quase não tem vida social. Terminamos os dois o doutorado, juntos, em 1988, e aí aconteceu uma decisão – normalmente a gente terminava o doutorado e já tinha um concurso mais ou menos na mesmo época, tu fazias o concurso e entravas como professor. Mas eu sabia que se eu fizesse isso eu ia ficar no Brasil mais tempo ainda e não ia ter experiência internacional – e a Física é um campo muito internacionalizado. Eu precisava desse tempo fora, e era a hora, eu era jovem. Eu entendia isso e o Felipe também. Começamos a escolher para onde ir e aí começaram as dificuldades: ele trabalha com Física de plasma e eu, na época, com matéria condensada. A gente achava um lugar que era bom pra mim, mas ruim pra ele, etc. Então eu disse, tudo bem, escolhe um lugar, que a minha área é muito ampla, ela tem em muitos lugares. Plasma é bem difícil, tem poucos lugares. E aí dei uma sorte – a vida tem sortes – que uma pessoa muito importante na minha área se mudou para a Universidade que ele tinha escolhido, Universidade de Maryland, nos EUA, ao lado de Washington. Essa pessoa tinha recém se mudado. E a segunda sorte é que essa pessoa tinha me conhecido no Brasil num evento. Aí o Walter daqui escreveu a ele, que conhecia o Walter. E então eu fui trabalhar com o Michael Fisher, que era um nomão. Foi muito interessante porque o Michael trata todo mundo igual, o que é raro, homens e mulheres – ele trata todo mundo igualmente mal. Foi bem emocionante. Ele era uma pessoa que competia com todo mundo. Imagina, teu orientador, homem velho, famoso, importante, não vai competir com aluno, eu pensei. Mas ele compete com qualquer pessoa, em qualquer instante, tudo é uma grande competição pra ele. Logo que comecei a trabalhar com ele, ele perguntou se eu sabia dirigir, eu disse que não – na época eu não dirigia –; então ele diz: “Tu tem que aprender a dirigir e tirar carteira”. Eu disse não, não tenho nenhuma intenção de dirigir. E ele: “mas nos Estados Unidos tu tens que dirigir”. Eu disse que não ia deixar de fazer nada pelo fato de não saber dirigir. “Eu vou me virar, não te preocupa com isso”. E aí eu descobri que nos Estados Unidos, naquela região, realmente quase não tinha ônibus, e terminava às 6 da tarde. Ele marcava a reunião para as 6 da tarde! Mas eu morava bem pertinho, 50 minutos caminhando, então eu não reclamava, ficava quieta. Mas apesar de ele ser muito difícil e dominador, foi muito bom, porque ele me ensinou a falar em público – ele falava muito bem. Ele recebia milhares de pessoas, e a minha função era levar as pessoas para jantar quando ele não podia, com os outros pós-doutorandos. Aí eu grudei num pós-doc que tinha carro e dirigia e não sabia falar inglês. Eu combinei: tu diriges e eu faço a parte de falar. Terminei tendo relações com muita gente que me ajudou o resto da carreira, em várias partes do mundo. Ele era uma pessoa extremamente honesta no trabalho. O primeiro artigo eu fiz todo sozinha e dei pra ele, é normal o orientador assinar junto depois de dar uma lida; ele leu, devolveu, e disse: “Eu não fiz nada, não sou co-autor”. Muito honesto. E ele tinha umas regras de comportamento que eram engraçadíssimas: quem dava o seminário, que tinha toda semana, com algum visitante ou com alguém da casa, escolhia o restaurante para almoçar. Só que ele era tão importante que todo mundo dizia: “Michael, tu escolhes o restaurante”. Aí a gente acabava sempre comendo em lugares horrorosos, com comida apimentada que eu odiava. Aí foi minha vez de dar seminário e o grupo inteiro com expectativa de que eu ia ser do contra, e claro: “Já que eu sou vegana nós vamos para a cooperativa ecológica, onde a gente come sentado no chão”, e ele, louco pra dizer que não, tinha que ir.

P: Houve algum choque cultural nesses anos nos EUA? Como foi subjetivamente a experiência?

MB: Nessa época o Brasil ainda era um lixo para o mundo internacional. Ele já tinha vindo muitas vezes para o Brasil, mas ele e os colegas tinham construções mentais que os faziam olhar para mim como sendo parte desse lixo. Eu tenho cara de latina mesmo. Eu não sou essas gaúchas loiras de olho azul. Eu sou aquela que é parada cada vez, na imigração, para saber em que supermercado eu vou trabalhar nos Estados Unidos. Tem esse estereótipo, essa visão, que ele mesmo foi desconstruindo ao longo do tempo. Quando eu fui para lá o meu inglês não era perfeito, muito longe disso, imagina, vinda de escola pública. A primeira coisa que eu disse pra ele foi: “O meu vocabulário pode ser como o de uma criança, mas eu não penso como uma criança”. Para construir a minha posição, o meu lugar. E vou dizer, o fato de eu ter vindo de uma escola pública e ter enfrentado esse esquema elitista da universidade da época já tinha sido o primeiro confronto, no sentido de que as pessoas que normalmente ingressam lá se olham como iguais. Mas eu claramente vinha de fora. Eu tinha um colega de sala, vindo de Oxford, que estava lendo um artigo do qual ele era revisor, e diz assim, na minha frente: “Esse indiano aqui pensa que pode publicar em uma revista de destaque”. Eu disse: “Pra quem tu acha que está falando? Eu sou igual ao indiano”, no sentido de ser da periferia daquele centro do mundo. Depois, ele terminou de escrever um artigo e, como é comum na nossa área, deu para um colega revisar antes de mandar para a revista. Ele estava na mesma sala e pediu para eu revisar. Eu li o artigo e disse: “Olha, tu cometeste dois pequenos erros, aqui e aqui”. Físico é muito honesto, ele ficou impressionado, disse: “Nossa, TU achaste um erro num texto meu!” E eu ria. Dizia: “Esta latina aqui, com cara de índia, vem achar erro num texto de um europeu, sim”. Eu tinha que desconstruir o tempo inteiro e era desafiador. Mas nunca me deprimi por causa disso, senão já teria abandonado. Porque todo mundo espera, quando eu estou numa reunião que ninguém me conhece, que eu seja aquela que serve o cafezinho, “Quanto é que tu cobras para trabalhar no catering?” Isso já aconteceu muitas vezes. Porque a gente é brasileiro, vai na casa de alguém que está oferecendo um almoço, não conhece ninguém – no primeiro mundo não tem empregada – tu estás vendo que a dona da casa está lá se matando para servir todo mundo, tu vais lá e ajuda, né? E aí as pessoas vinham me perguntar: “Quanto é que tu cobras pelo serviço?”. Geralmente eu digo: “You can’t afford me”, você não pode pagar meu salário. [Muitos risos.] Mas esse estereótipo está muito entranhado. Só pra dar um exemplo bem concreto: a gente foi alugar um apartamento em um condomínio perto da universidade. Como é que eles localizavam as pessoas dentro do condomínio? Os brancos na parte da frente, os negros na parte do meio e os latinos atrás. Eu estava na região dos latinos. É muito claro na Universidade que até os negros têm uma posição dentro da Universidade. Mas os latinos é “lá atrás”. E quando meu orientador me dava carona até o condomínio ele me deixava na portão de entrada, dizendo: “Eu não vou entrar aí que é muito perigoso”. Mas nem era, nada espantoso pra quem vem do Brasil.

P: E a volta, como foi? Logo apareceu uma posição acadêmica?

MB: Quando eu volto eu pego um pós-doc. E pensei, ilusoriamente, em trabalhar em uma outra unidade da federação, mas era um momento no Brasil em que as pessoas voltavam para o lugar de onde tinham saído – isso já mudou, felizmente. A circulação era pouca, e todo mundo me olhava com muita desconfiança. Por que tu queres vir para cá? As pessoas do teu lugar não gostam de ti? Depois de um tempo, finalmente entramos. E aí começa um grande problema: quando tu vais trabalhar no lugar onde tu foste formada, o teu ex-orientador pensa que tu és uma pós-doc de luxo, entende? Ele acha que tu estás trabalhando para ele. E era um momento em que ainda tinha um resquício de uma hierarquia financeira dentro das universidades, tinham os grupos de pesquisa, que tinham chefes e sub-chefes, e o dinheiro ia para essas pessoas e elas distribuíam. Quanto maior o grupo, mais dinheiro vinha da FINEP, que era o órgão que financiava isso. E aquilo me incomodava, porque eu estava fazendo uma coisa completamente diferente, eu fui para o exterior para fazer outra coisa, voltei para fazer outra coisa, atraí um pesquisador de fora que veio trabalhar na UFRGS porque ele casou com uma brasileira e a mulher veio para Porto Alegre. Ele tinha trabalhado com o Fisher, que me ligou e me pediu pra achar alguma coisa para ele. Ele entra de pós-doc, eu sou professora jovem, mas estou nesse grupo grande, com uma certa tensão porque o chefe quer mandar e a gente não quer fazer o que ele quer fazer. Chegou um momento em que eu disse: acabou! Estou fundando o meu grupo a partir de hoje. Isso é 93, 94. Aí começa uma luta interna, as pessoas querendo achar um jeito de eu não poder fazer aquilo; mas não existe esse jeito. Liberdade acadêmica é liberdade acadêmica. E começa uma guerra do tipo ou eu, ou ela. Meu ex-orientador começou a dizer assim – ele era pesquisador topo 1 A e eu era pesquisadora 2 –, “Ou eu ou ela”. Neste momento, as ligações internacionais foram fundamentais. Porque aí eu ligo e digo: “Fisher, só me ajuda dando duas ou três palavras aqui e ali, fulano, beltrano”. O campo externo segurou para eu não implodir. Eu sobrevivi porque eles deram suporte, valorizando meu trabalho. Foi bem complexo, foi difícil, mas a academia é maravilhosa por isso, se fosse uma empresa eu teria sido demitida. Conseguimos sobreviver, o grupo cresceu, e com o tempo até as relações pessoais melhoraram.

P: Não era a pesquisa com água, ainda?

MB: Nesse tempo a gente ainda estava fazendo os colóides. Meu mestrado não foi nada disso, foi estado sólido, eu estudava os sistemas magnéticos. Vou para os Estados Unidos e começo a ver com o Fisher umas misturas de água, óleo e detergente (polímeros surfactantes). O objetivo era entender como remover petróleo das rochas. Volto para o Brasil e vem para cá pesquisador americano, Yan Levin, que estudava cloreto de sódio, e começamos a estudar surfactantes e colóides (macromoléculas em forma esférica e carregadas) em sal. E aí que a gente vai embretando e eu digo: “Nossa, está ruim isso”. Ao mesmo tempo, o fato de trabalhar sempre com a mesma pessoa é muito ruim para as mulheres. Eu me dei conta que eu sempre ia ser a esforçada e ele, o brilhante. Então, primeiro me separo do orientador. A gente funciona bem, é super-estimulante, mas eu pensei: “Está na hora de fazer outra coisa”. Foi um momento bem interessante da minha vida, foi a hora de fazer outra coisa mesmo. Eu me separo, eu resolvo mudar de técnica – eu fazia tudo na mão e pensei: vou aprender a simulação em computador. Nisso eu já estou com uns 40 anos. E vou falar com o meu colega esse, com quem eu vou fazer um divórcio amigável, “Olha vou começar a fazer simulação”. E ele disse: “Tu é muito velha pra aprender a simular”. Assim, a academia é super-estimulante, né? Em duas semanas, entre o Natal e o Ano Novo, eu tinha o meu primeiro programa pronto. E aí vou passar um outro ano fora, em Boston, para aprender técnica, e lá era o local em que mais estudava água, onde tem a pessoa mais importante de água no planeta, Eugene Stanley, que conheci da maneira mais doida: ele entrou numa conferência, deu uma palestra e foi embora. E aí quando eu voltei para o Brasil a gente ia organizar uma conferência nacional e ficou aquela coisa, quem a gente traz, eu levantei a mão – eu sou bem louca, né? – e disse, eu trago o Eugene Stanley. Nunca tinha falado com ele. Aí escrevi para ele, convidei. E aí no mesmo ano ele me convida para uma conferência em Oaxaca, no México. Eu convido para um evento no Brasil em 1996 e penso em ir trabalhar com ele em Boston, na Boston University. E aí nesse ano eu aprendi tudo de água. Era 2000. Fiz o que ninguém faz, né? Acabei com todos os meus estudantes de mestrado e doutorado, não queria deixar nenhum fio solto, fui pra lá para aprender do zero. E fazer conexões, eu sabia que por lá passava todo mundo.

P: Vamos falar de hábitos, de coisas prosaicas?

MB: Sou vegana desde o mestrado. Eu tinha um colega de classe que era vegetariano e ele me perguntou por que eu não experimentava. Aí eu descobri que cada coisa que eu parava de comer, metade do planeta era contra. Aqui no Rio Grande do Sul diziam que eu ia morrer, que eu ia ter isso e aquilo. E eu adoro, como já deve ter ficado claro, fazer as coisas contra o que as pessoas estão dizendo que é pra fazer. Não tem nada dessa coisa de pena dos bichinhos, nada de ideologia. Se tornou uma coisa pra desafiar o sistema. Eu tenho vitalidade, coisa que dizem que os vegetarianos não têm. É pra desconstruir alguns conceitos. E eu também não bebo álcool. Confrontar o sistema tem uma coisa endorfínica. Mas só cozinho se necessário. Domingo, se tenho que fazer o almoço, eu consigo fazer rápido, prático. Eu vou lá e faço. As pessoas gostam de pensar sabores e tal, eu não sou muito ligada nisso. Mas se me disserem que é preciso fazer arroz pra 100 pessoas, eu vou lá e faço.

P: E prazeres cotidianos, fora da vida profissional?

MB: O que me dá barato, que eu adoro e que é o meu momento, é correr. E literalmente dá barato, depois de 20 minutos. Quando eu morava na República eu corria na Redenção. Aí eu me mudei para o Menino Deus e corro no CETE. Mas correr é democrático. Eu viajo muito, eu corro em qualquer lugar. Levo meu tênis e vou pra rua. É meu momento de Márcia sonhando e pensando. Eu não ouço nada, eu quero correr, eu quero pensar. Música faz parte também da minha vida, mas em outros momentos. Gosto muito também de dançar, embora não consiga fazer isso com a frequência que desejaria. Eu gosto de dançar qualquer coisa, sozinha na balada, e também tenho uma certa intuição para acompanhar, dançar junto. Alguns físicos dançam, então em conferências às vezes a gente tem alguma coisa de dança. Principalmente no Nordeste. O Nordeste é o meu lugar favorito.

P: Projetos para adiante?

MB: Minha wish list é imensa para quando me aposentar. Tem muita coisa em que eu gostaria de me aperfeiçoar. Dançar é uma. A outra é teatro, eu adoro teatro. Eu gostaria de um dia fazer, porque eu acho que tem uma coisa parecida com dar aula.
Fui assistir a um espetáculo alternativo em São Paulo, uma amiga nos levou, eu e meu namorado – ele não gosta nada dessas coisas. A peça era em uma arena e era sobre escravatura. Quando a gente entrava, ganhava umas fichinhas. Em algum momento da peça eles começavam a vender os “escravos”, que eram os atores. Quando eu vi que era isso que ia rolar, e também entendi que primeiro eles colocavam os jovens e bonitos e esses ganhavam grande valor. Aí eu vi que era esse o jogo e quis estragar um pouquinho a peça. Então eu juntei todas as fichas e quando vieram com o velho eu levantei e disse: “Eu dou 40, porque a velhice”, barará… Nessas alturas o meu namorado já estava escondido em baixo do banco. Ele fica intimidado com essa coisa minha mais histriônica. Mas eu gosto dessa vida participativa. E também quero escrever um livro. Já tenho o título: Sexo, dinheiro e equações. Cientistas têm histórias muito interessantes, só que eu tenho que escrever artigo científico, tenho que formar os alunos, não dá tempo. Pretendo reunir no livro memórias minhas e dos outros, tem muita história interessante que eu fui acumulando ao longo da caminhada. Porque mulheres falam com mulheres, homens falam com mulheres: coisas mais pessoais as pessoas contam para mulheres, que estão dispostas a ouvir. Então eu ouvi muita história, eu vivi muita história, todo mundo diz que a minha vida é muito engraçada. Eu lembro dessas histórias, não cheguei a anotar, mas espero não ter Alzheimer. Eu acho que é importante desmistificar essa coisa do cientista – cientista tem coração, tem emoção, tem confusão na cabeça… Por exemplo, uma vez eu era vice-presidente da União Internacional e um grupo de gênero ia se reunir em algum lugar, mulheres de tudo que é lugar, e a secretária era uma americana. A gente entra na Suíça e, como sempre, eu fico trancada na Imigração explicando o que vou fazer, etc., etc. E a secretária passa e para. O cara da imigração pergunta por que ela parou. E ela diz: “Porque eu sou secretária dela”, apontando pra mim. Ela a maior cara de gringa, branca, loira, olhos claros? Desconstruiu o cara na hora. Quantas vezes eu entrei na União e pensam que eu sou a mulher que está servindo o café. Em grupos de reuniões internacionais, vou representar a União da Física (International Union in Pure and Applied Physics) em uma reunião do ICSU (a união da união dos cientistas, o clubinho do clubinho do clubinho), em Paris. E aí certa vez eu fiz uma sacanagem: todo mundo se combinando, “vamos nos encontrar no café”, coisa e tal. E todo mundo só sabe que eu sou o Dr. Barbosa, o outro é Dr. Tal e o Dr. Qual. E aí todo mundo se olha, todos homens, de cabelos brancos, se reconhecem uns aos outros, e eu fico lá num canto, só observando, esperando que alguém venha perguntar. Aí a gente vai para a sala de reuniões e eu vou atrás. E aí depois que está todo mundo na sala eu entro e alguém me diz: “Poderia me trazer um café?” E eu respondo: “Eu até posso trazer, mas eu sou a doutora Barbosa”. Escrever sobre isso, trazer isso para os leitores, os jovens estudantes, isso eu quero fazer.

P: Tu és diretora da Academia Brasileira de Ciências, não é?

MB: Sim, sou diretora da Academia Brasileira de Ciências. A Academia, até há bem pouco tempo, tinha bem pouco trabalho. Era pressionar um pouquinho o governo por mais dinheiro, coisas assim, mas se vivia tranquilamente. Nos últimos anos virou um inferno porque a gente tem que escrever carta todos os dias explicando que não pode juntar CNPq e Capes, que a terra não é plana, que vacina funciona, que a gente tem já 200 documentos sobre Brumadinho – o governo fica fazendo reestudos de coisas sobre as quais a gente poderia mandar uma pilha enorme de estudos já feitos. Eu tomei pra mim, como tarefa, aumentar a visibilidade da Academia. A primeira coisa que eu fiz foi trocar página, agora estou fazendo vídeo, estou tentando trazer a Academia mais para as pessoas, estou discutindo diversidade dentro da academia, estou trazendo eventos de meninas, enfim dando visibilidade, porque ninguém sabe que existe uma Academia de Ciências. Então vamos falar o que que os cientistas fizeram de legal. A gente tem uma iniciativa que é o white board, que é aquela mãozinha desenhando uma historinha, de 2 minutos, em que a gente conta a história de alguma coisa que virou dinheiro no Brasil graças aos cientistas. Então eu monto o roteiro, na linha “ciência gera desenvolvimento”. Agora, quando eu vi que o governo teria um militar, eu fiz um vídeo do almirante Álvaro Alberto, que foi o fundador do CNPq, o cara que começou os institutos no Brasil, uma pessoa brilhante. Ele era da Marinha, dava aula de Engenharia. Quando o Brasil entrou na 2a Guerra, ele se deu conta de que o Brasil comprava as tintas e a pólvora da Alemanha, e aí ele as desenvolve nacionalmente. Ele vai para discussões de energia nuclear mundiais, coloca o Brasil em um papel protagonista. Aí ele vê que os Estados Unidos fundam a National Science Foundation, que é o CNPq deles, e funda aqui o nosso CNPq, vira presidente da Academia. Era milico, mas um milico da pá virada. A gente fez uma historinha dele, aí consegui que a Marinha pagasse e eles fizeram um coquetel. Eles são apaixonados pelo Álvaro Alberto. Em janeiro desse ano teve o lançamento, na Marinha. Aí tu vês que até tem um pedacinho do governo que tem boa intenção, mas não está muito preparado. Um deles me falou: “Professora, a senhora não se preocupe que para ciências exatas e Física vai ter dinheiro neste governo. A senhora sabe que essas bobagens da área de Humanas, particularmente estudo de gênero, não vai ter dinheiro nenhum”. O cara não tinha sido brifado pra saber com quem ele estava falando. Aí eu respirei fundo e disse assim: “O senhor não acha que é pouco estratégico a gente focar numa área só para um governo que se espera só que dure quatro anos? Não é como a China que faz planejamento para 20 anos, no Brasil são quatro. Cortar a área de financiamento não é esperto”. O cara ficou pensando. Depois eu falei: “Mas sobre gênero o senhor não se preocupe, o mundo está jogando muito dinheiro para a gente estudar. Eu tenho financiamento internacional do British Council, que é muito maior do que qualquer financiamento que eu tenho para água, só para fazer estudo de gênero”. Enfim, tem um pedaço que dá para a gente ir educando, com muita paciência.

P: A tua militância no tema do gênero está te satisfazendo? Quais os horizontes?

MB: Na área de Exatas o número de mulheres está diminuindo. Eu estou pondo em Exatas a Física, a Química e a Informática. A Informática é a maior culpada dessa diminuição, porque as mulheres fogem dela – tem diminuído o percentual de mulheres que se formam lá. Na Física oscila, fica naquele entorno de 20% de alunas no vestibular, e na formatura um pouco menos. Quando viram pesquisadoras, gira em torno de 12%. No topo da carreira em torno de 5%, e na Academia são 4%. Não precisa de bombonzinho pra explicar o que é 4%. É grave e não há política pra melhorar isso. Tem programas para incentivar, mas não tem política. Em 2013, depois de muita briga, o CNPq lançou um programa para financiar projetos para trabalhar nas escolas com meninas. Próximo edital: 2018. Cinco anos sem nada. Algumas iniciativas privadas, o Fundo Elas, do Unibanco, a Fundação Carlos Chagas – tem coisinhas, e os grupos vão sobrevivendo quase altruisticamente. Então dá pra ver que a gente precisa fazer algo, mas ainda é uma noção esparsa, não é uma definição governamental. Não existe ação afirmativa no Brasil, e por não existir o percentual de pesquisadoras em todas as áreas passou em 15 anos de 32 a 36%. Mas espera aí, eu vou ter que esperar quanto tempo? Nem na minha próxima geração, porque não há uma política, não há uma visão. O que mudou é que as jovens estão muito mais ativas. A minha geração fez alguma coisa, sofri preconceito, mas eu tendo a naturalizar, como quem diz “É assim mesmo, vou sobreviver”. Essa nova geração faz barraco, vai atrás, briga. Eu brinco que a revolução vem das meninas de cabelo azul. Ou seja, aquelas que conseguiram ousar ao quebrar os padrões do estigma de que cientista é camiseta branca e jeans, pra ser o que quiser ser. Essas meninas estão trazendo uma necessidade de discutir. Mas eu sou otimista: eu sou otimista trabalhando muito para acontecer.

P: O assunto “gênero” meio que virou modinha, sem ter no entanto a força real de transformação que deveria ter.

MB: Sim, agora virou moda falar de gênero. Tem um monte de grupos de gênero. E cada vez que as pessoas olham a minha agenda e dizem: “Mas Márcia, as pessoas que começaram ontem a trabalhar gênero, tu vai ter que ir lá a 500 km de Salvador, pegando não sei o quê, mais não sei o quê? Esses convites eu não aceito mais!” Mas eu digo: “Se a gente não for, quem vai? Vai ser a Igreja Universal que vai, é isso?” Então eu vou. Eu já fui a lugares bem longe, e cada vez que eu vou, no meio da viagem que é longa e difícil, eu me pergunto, o que é que eu estou fazendo aqui? Quando eu chego, eu entendo, feliz: é isso que eu estou fazendo aqui. Por exemplo falar com meninas em Juazeiro do Norte. Além de dar palestra na universidade eu fui falar com meninas de uma escola bem conservadora. Pública e conservadora, numa região evangélica. As meninas e os meninos ao final me dizendo: “Nossa, um monte de coisa sobre mulheres eu pensava diferente…” No final eu peço relatos pra ver se eles refletiram. Então a gente vai ter que trabalhar muito, trabalhar duro e não só pegar as coisas boas. E às vezes eu tenho que optar. E às vezes, com as minhas opções, as pessoas acham que eu sou louca. Há um par de semanas o CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) me chamou pra dar uma palestra num evento de aniversário deles, com a presença do ministro. Mas ao mesmo tempo, São Francisco de Paula me convidou pra falar numa coisa que era aberta para a população. Eu fui pra São Francisco. No final da palestra o prefeito, junto com os secretários, me disse assim: “A gente está pensando num projeto para trocar a iluminação pública por energia de catavento, a senhora nos ajuda?” Eu disse: “Eu não, mas aqui está o curso de Energia da UERGS, vocês se conversem e façam o projeto”. Isso é muito mais importante do que eu fazer uma palestra para ministro, para explicar que ciência é importante. Então a gente tem que trabalhar com a população sim e me vejo fazendo isso muito. Quer ver uma coisa concreta? Um estudo feito com 200 crianças, com uma técnica bem interessante: eles contam uma história de uma pessoa bem inteligente, é em inglês, sem dizer o sexo. E aí perguntam para meninos e meninas de 5 anos se é homem ou mulher. E aí tu observas meio a meio, não há percepção de diferença. Mas aos 7 anos – a transição se dá aos 6 anos – é muito claro que as meninas acham que homens são inteligentes e mulheres são esforçadas. Porque essas crianças já foram socializadas. E há um outro estudo que acompanha as crianças ao longo do tempo, mostra que, quanto mais inteligente a menina, mais rápido ela entende que o papel dela é ser esforçada. E aí ela vai optar por coisas adequadas, coisas até que ganha dinheiro e tal, mas é na área do esforço. Depois tem um outro estudo interessante: pegaram mil estudantes de Física I, começo da graduação, e pediram pra avaliar o quanto que o jovem achava que sabia daquele conteúdo, uma auto-avaliação. E as meninas têm uma auto-avaliação muito mais baixa do que os meninos: a menina que tira A, a nota máxima, acha que sabe tanto quanto o guri que tirou B. Pior, eles acompanham os mesmos alunos em Física II: todo mundo acha que sabe menos. E as meninas agora que tiraram A pensam que sabem tanto quanto os meninos que tiraram C. Ou seja, alguém ajudou a massacrar a auto-estima. E aí a performance tem a ver com como tu te projetas para o futuro. E tem um estudo feito sobre ambição que mostra que as mulheres vão perdendo a ambição muito rapidamente, porque elas vão sofrendo esse “Não, tu não vais concorrer pra cargo de diretora”. Quando eu virei titular, que ainda era na velha guarda [agora o nome “professor titular” tem outro sentido, é muito mais acessível], eu concorri com alguns colegas e ganhei. Os técnicos ficaram surpresos de eu ter ganho porque eles tinham uma imagem do cientista mais sisudo, mais ensimesmado. Ou seja, a questão da imagem é muito forte: as pessoas acham que tu tens que ter um certo perfil. E pra cientista, não será mulher, não será latina, não será uma mulher que usa saia curta. Quando eu entrei na Academia Brasileira de Ciências, foi muito engraçado. Eu entrei depois de ter ganhado o L’Oréal. Eu não sou o perfil acadêmico tradicional. Lá as pessoas são bem mais sérias, não falam palavrão, essas coisas assim. Mas como eu ganhei esse prêmio internacional, eles disseram, bem, agora ela tem que entrar. É assim, eu sou incomodativa. A primeira reunião que eu fui na Academia, não tinha nenhuma mulher palestrante. Eu fui para o presidente e comentei, séria mas com ironia: “Nossa, que pena que nenhuma mulher que tu convidaste aceitou o convite para vir falar”. A partir de então temos mulheres, todos os anos. Esse ano, foi meio a meio. Quando eu entrei, na cerimônia da Academia, uma colega que estava com o marido (que é acadêmico, ela não é acadêmica ainda, portanto ela é transparente, invisível) estava em uma conversa entre os homens, e eles comentaram a meu respeito: “Essa aí entrou por causa da saia curta”. Vão me punir? Onde eu estiver vou ter que ouvir isso, e já que eu vou ouvir isso, eu vou usar saia curta até os 90 anos [risos]. Cada vez que comentam a minha saia curta, eu encurto ela mais um pouquinho.

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