Parêntese | Poesia traduzida

Fernanda Bastos: Da tradução como abertura: dois poemas de June Jordan

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Fernanda Bastos: Da tradução como abertura: dois poemas de June Jordan Como toda grande poeta, June Jordan tem aquele que é seu poema-apresentação, o texto que faz com que possamos reconhecer com rapidez o seu talento e as características de sua obra: Poema sobre os meus direitos. Quando li, percebi imediatamente que se tornaria, para mim, um paradigma de êxito na criação literária, pela forma como concatenava ideias, contextos e imagens. Fui atrás de seus livros e descobri que Jordan não era publicada no país. Então, foi natural que, anos depois, quando criamos – o crítico literário Luiz Mauricio Azevedo e eu – a editora Figura de Linguagem, definíssemos como um de nossos projetos a publicação da autora. Na antologia Somente nossos corações vão debater bravamente, organizada pelo escritor Christoph Keller, é possível acompanhar 30 poemas de nove obras de Jordan, de forma cronológica. Isto é, acompanhamos sua produção de 1971, quando ela tinha 35 anos, até 2001, um ano antes de seu falecimento, vítima de câncer. Para a tradução, levei em conta o cerne de sua produção, que era o compromisso político com a verdade e com a poesia para o povo. Uma vez que ela evoca as vozes de sua gente afro-americana e também acontecimentos de guerra e de violação de direitos, a maior dificuldade foi adequar sua erudição ao desejo de que um grande público pudesse conhecê-la no Brasil. Também tentei lidar com as elipses e as rupturas de expectativa na sintaxe da autora, sem perder de vista seu lirismo e a musicalidade. Jordan era uma poeta preocupada com a História e com a tomada de posição. Foi uma pacifista, defensora de direitos civis de pessoas negras e LGBTs. Enquanto muitos costumavam militar apenas em um campo de batalha, Jordan estava em todos. Gosto de imaginar que ela consideraria perdoável qualquer tradução que a ajudasse a ser lida por quem mais precisa, e tenho consciência da nossa necessidade de ouvir cada vez mais sua voz, assim como fizeram algumas daquelas que admiravam sua poética, como Toni Morrison, Patricia Hill Collins, Adrienne Rich, Audre Lorde e Alice Walker. ________ O que eu faria Branca? O que eu faria branca?O que eu faria claramente cheianão exatamente de entusiasmo nem meu nariz mutilado numa manicure meus olhos uma foto da sua parede?  Eu perturbaria as ruaspassando por crianças tão bonitaspara merreca de dinheiro roubado iriam olhar para mim como estrangeiraescrevendo no céu  Eu esqueceria minha pele em qualquer cadeira Eu ignoraria os porteiros na maçanetao sânscrito social da minha vidapara não divulgar minha cosmetologia, eu esqueceria.  Sobre o vinho que eu iria adquirireu inspiraria grandes rentabilidades ao capital a rentabilidade do capital que eu estou acostumada a aceitar  como a época de inverno. Eu não faria nada.Isso seria o suficiente.  ________ Poema sobre os meus direitos Ainda essa noite e eu preciso dar uma caminhada e limpar minha cabeça desse poema sobre por que eu não possosair sem trocar de roupa ou de sapatosminha postura corporal minha identidade de gênero minha idade meu estado de mulher sozinha à noite/sozinha pelas ruas/sozinha não é a questão/a questão de eu não poder fazer o […]

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Como toda grande poeta, June Jordan tem aquele que é seu poema-apresentação, o texto que faz com que possamos reconhecer com rapidez o seu talento e as características de sua obra: Poema sobre os meus direitos. Quando li, percebi imediatamente que se tornaria, para mim, um paradigma de êxito na criação literária, pela forma como concatenava ideias, contextos e imagens. Fui atrás de seus livros e descobri que Jordan não era publicada no país. Então, foi natural que, anos depois, quando criamos – o crítico literário Luiz Mauricio Azevedo e eu – a editora Figura de Linguagem, definíssemos como um de nossos projetos a publicação da autora. Na antologia Somente nossos corações vão debater bravamente, organizada pelo escritor Christoph Keller, é possível acompanhar 30 poemas de nove obras de Jordan, de forma cronológica. Isto é, acompanhamos sua produção de 1971, quando ela tinha 35 anos, até 2001, um ano antes de seu falecimento, vítima de câncer. Para a tradução, levei em conta o cerne de sua produção, que era o compromisso político com a verdade e com a poesia para o povo. Uma vez que ela evoca as vozes de sua gente afro-americana e também acontecimentos de guerra e de violação de direitos, a maior dificuldade foi adequar sua erudição ao desejo de que um grande público pudesse conhecê-la no Brasil. Também tentei lidar com as elipses e as rupturas de expectativa na sintaxe da autora, sem perder de vista seu lirismo e a musicalidade. Jordan era uma poeta preocupada com a História e com a tomada de posição. Foi uma pacifista, defensora de direitos civis de pessoas negras e LGBTs. Enquanto muitos costumavam militar apenas em um campo de batalha, Jordan estava em todos. Gosto de imaginar que ela consideraria perdoável qualquer tradução que a ajudasse a ser lida por quem mais precisa, e tenho consciência da nossa necessidade de ouvir cada vez mais sua voz, assim como fizeram algumas daquelas que admiravam sua poética, como Toni Morrison, Patricia Hill Collins, Adrienne Rich, Audre Lorde e Alice Walker. ________ O que eu faria Branca? O que eu faria branca?O que eu faria claramente cheianão exatamente de entusiasmo nem meu nariz mutilado numa manicure meus olhos uma foto da sua parede?  Eu perturbaria as ruaspassando por crianças tão bonitaspara merreca de dinheiro roubado iriam olhar para mim como estrangeiraescrevendo no céu  Eu esqueceria minha pele em qualquer cadeira Eu ignoraria os porteiros na maçanetao sânscrito social da minha vidapara não divulgar minha cosmetologia, eu esqueceria.  Sobre o vinho que eu iria adquirireu inspiraria grandes rentabilidades ao capital a rentabilidade do capital que eu estou acostumada a aceitar  como a época de inverno. Eu não faria nada.Isso seria o suficiente.  ________ Poema sobre os meus direitos Ainda essa noite e eu preciso dar uma caminhada e limpar minha cabeça desse poema sobre por que eu não possosair sem trocar de roupa ou de sapatosminha postura corporal minha identidade de gênero minha idade meu estado de mulher sozinha à noite/sozinha pelas ruas/sozinha não é a questão/a questão de eu não poder fazer o […]

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