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Flávio Aguiar: Lembranças do Capitólio

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Flávio Aguiar: Lembranças do Capitólio Li com apreensão a notícia de que a Prefeitura pretende “terceirizar” a administração do Capitólio. Apesar de todas as declarações tranquilizadoras do secretário do ramo, perdi parte de meu sono de sábado para domingo. “Terceirizar” para mim é sinônimo de “privatizar”. Só falta “uberizar” a Cinemateca. Visitei o cinema algum tempo atrás, na companhia de um amigo que mora em Porto Alegre, o poeta Paulo Neves. Além de encantando com o espaço, fiquei emocionado pelas rememorações que me assaltaram dos pés à cabeça. Dos pés: eu morava na própria Demétrio Ribeiro. Ia ao cinema a pé. Sempre aos domingos, com direito à sessão dupla, antecedida por propagandas, depois o cine-jornal, os trailers dos próximos filmes, vez por outra um desenho animado. No intervalo entre o primeiro e o segundo filme, havia o troca-troca de figurinhas dos álbuns do momento (Branca de Neve, Peter Pan, Cinederela, um com os jogadores dos principais clubes brasileiros, entre os quais figuravam o Inter, o Grêmio, o Renner e até o Cruzeiro de Porto Alegre, além do mineiro). Antes do primeiro filme e no intervalo o cinema era invadido por uma coorte de baleiros. “Baleiro, balas, balas baleiro! Drops, azedinha, balas de goma” era o refrão interminável. Podia-se também comprar pipoca dos pipoqueiros na entrada, ainda na rua. Na “zona”, que não tinha o significado pejorativo de hoje, o rival do Capitólio era o Cine Marabá, na Coronel Genuíno, logo adiante, depois da praça Daltro Filho. O Capitólio era um cine-teatro. Ainda tinha fosso para orquestra. Além da plateia, tinha mezanino nos fundos e frisas, ou galerias, nas laterais. A tela era pequena, as cadeiras eram de madeira dura, com assento de abaixar na hora de sentar e às vezes com direito a um rangido melancólico. O começo da sessão e o da segunda parte eram marcados pelas pancadas de um misterioso (para mim) gongo. Devia ser uma gravação, mas eu imaginava que havia alguém tocando o troço por detrás da tela. As principais modalidades de filme eram: O faroeste, então chamado “filme de mocinho”. Era o gênero favorito. Os lances do filme eram acompanhados por gritarias a favor do mocinho, contra o bandido, e pateadas ensurdecedoras quando chegava a cavalaria americana para derrotar os índios. No fim do filme o beijo do mocinho e da mocinha era acompanhado pelo estalar de centenas de lábios na plateia. Os filmes de mocinho criaram uma linguagem própria para as brincadeiras posteriores. Por exemplo: “Camói” significava “mãos ao alto”, uma imitação canhestra mas convincente do “Com’ on” que nossos heróis diziam, apontando as armas para os bandidos.  Capa e espada ou “filme de pirata”. Eram variações importantes dos filmes de mocinho. Os heróis poderiam ser espadachins fo tipo Scaramouche ou revolucionários escoceses, como Roib Roy. Ou então valorosos oficiais de algum reino que se disfarçavam de piratas para melhor surpreender os bandidos.  Filmes de guerra. Claro: os mocinhos eram sempre os americanos, e os bandidos, alemães ou japoneses.  Dos japoneses não lembro muito bem, mas os alemães falavam uma língua (o […]

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Li com apreensão a notícia de que a Prefeitura pretende “terceirizar” a administração do Capitólio. Apesar de todas as declarações tranquilizadoras do secretário do ramo, perdi parte de meu sono de sábado para domingo. “Terceirizar” para mim é sinônimo de “privatizar”. Só falta “uberizar” a Cinemateca. Visitei o cinema algum tempo atrás, na companhia de um amigo que mora em Porto Alegre, o poeta Paulo Neves. Além de encantando com o espaço, fiquei emocionado pelas rememorações que me assaltaram dos pés à cabeça. Dos pés: eu morava na própria Demétrio Ribeiro. Ia ao cinema a pé. Sempre aos domingos, com direito à sessão dupla, antecedida por propagandas, depois o cine-jornal, os trailers dos próximos filmes, vez por outra um desenho animado. No intervalo entre o primeiro e o segundo filme, havia o troca-troca de figurinhas dos álbuns do momento (Branca de Neve, Peter Pan, Cinederela, um com os jogadores dos principais clubes brasileiros, entre os quais figuravam o Inter, o Grêmio, o Renner e até o Cruzeiro de Porto Alegre, além do mineiro). Antes do primeiro filme e no intervalo o cinema era invadido por uma coorte de baleiros. “Baleiro, balas, balas baleiro! Drops, azedinha, balas de goma” era o refrão interminável. Podia-se também comprar pipoca dos pipoqueiros na entrada, ainda na rua. Na “zona”, que não tinha o significado pejorativo de hoje, o rival do Capitólio era o Cine Marabá, na Coronel Genuíno, logo adiante, depois da praça Daltro Filho. O Capitólio era um cine-teatro. Ainda tinha fosso para orquestra. Além da plateia, tinha mezanino nos fundos e frisas, ou galerias, nas laterais. A tela era pequena, as cadeiras eram de madeira dura, com assento de abaixar na hora de sentar e às vezes com direito a um rangido melancólico. O começo da sessão e o da segunda parte eram marcados pelas pancadas de um misterioso (para mim) gongo. Devia ser uma gravação, mas eu imaginava que havia alguém tocando o troço por detrás da tela. As principais modalidades de filme eram: O faroeste, então chamado “filme de mocinho”. Era o gênero favorito. Os lances do filme eram acompanhados por gritarias a favor do mocinho, contra o bandido, e pateadas ensurdecedoras quando chegava a cavalaria americana para derrotar os índios. No fim do filme o beijo do mocinho e da mocinha era acompanhado pelo estalar de centenas de lábios na plateia. Os filmes de mocinho criaram uma linguagem própria para as brincadeiras posteriores. Por exemplo: “Camói” significava “mãos ao alto”, uma imitação canhestra mas convincente do “Com’ on” que nossos heróis diziam, apontando as armas para os bandidos.  Capa e espada ou “filme de pirata”. Eram variações importantes dos filmes de mocinho. Os heróis poderiam ser espadachins fo tipo Scaramouche ou revolucionários escoceses, como Roib Roy. Ou então valorosos oficiais de algum reino que se disfarçavam de piratas para melhor surpreender os bandidos.  Filmes de guerra. Claro: os mocinhos eram sempre os americanos, e os bandidos, alemães ou japoneses.  Dos japoneses não lembro muito bem, mas os alemães falavam uma língua (o […]

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