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Cefaleia cervicogênica – Parte I: A sétima vértebra

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Cefaleia cervicogênica – Parte I: A sétima vértebra

A sétima vértebra, a doutora dizia, é essa que se ressalta um pouco das demais. Convidou o paciente a tocar o próprio pescoço, surpreendendo Valdir. Ele havia se distraído com a austeridade da sala de estar às costas da ortopedista. Lera uma reportagem sobre o avanço da telemedicina durante a pandemia, mas pelo visto os R$ 280 por consulta online não foram suficientes para refletir na decoração. Em frente a uma longa parede branca, só se enxergava um vaso bege feioso de costelas de adão. Teve vontade de pagar aquela senhora com um cheque-presente da Leroy Merlin.

Depois de fazer Valdir apalpar-se e descrever a sensação ao toque de cada um dos ossinhos, a doutora perguntou se ele poderia mostrar seu terminal de trabalho. Não seria possível. Quer dizer, possível até seria. Mas exigiria que ele usasse a webcam que no momento estava sendo usada para aquela ladainha toda. Ficou de enviar fotos pelo WhatsApp após a consulta, já certo de que não mandaria coisa nenhuma. Seu diagnóstico era uma obviedade: após três meses trabalhando sentado em um banquinho e curvado em frente ao notebook, fodera completamente o pescoço e as costas. 

Cristianne havia aconselhado o marido a procurar um médico quando ele reclamou de uma fisgada no braço direito, conselho que ele só seguiu doze dias depois, tão logo percebeu que o dedo médio havia perdido sensibilidade ao girar aquela rodinha em meio às teclas do mouse – acessório que os colegas da imobiliária chamavam carinhosamente de clitóris. Lembrou dessa bagaceirice ao listar os sintomas à doutora. Fez questão de descrevê-los como as dores mais excruciantes do mundo. Afinal, a consulta não era para obter um diagnóstico, e sim os nomes dos antiinflamatórios mais potentes e uma receita médica para comprá-los. Já havia feito o download de um software para alterar a data do documento quantas vezes precisasse. 

A doutora explicava as graves consequências de uma hérnia de disco no pescoço, caso o quadro evoluísse, quando Valdir ouviu o aviso sonoro semelhante a um passarinho. O pio diferenciava as mensagens da esposa e as de trabalho – cujos alertas se pareciam mais com uma sineta de recepção de hotel. Graças a deus, havia lembrado de silenciar os clientes antes do início da consulta. Enquanto a médica descrevia pausadamente o bom funcionamento da coluna cervical, Valdir olhou diretamente para o furinho da câmera, moveu o pescoço dolorido para frente como se concordasse prestando o máximo da atenção e clicou na aba do WhatsApp, que pulou em frente ao rosto da doutora.

“E aí, como foi a consulta?”

“Está sendo ainda”

“Sério?”, carinha boquiaberta.

[O capítulo 2 será publicado na próxima edição da revista Parêntese.]

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Este é o primeiro capítulo do folhetim Cefaleia cervicogênica, de Caue Fonseca. Leia neste link os capítulos já publicados.


A sétima vértebra

A sétima vértebra, a doutora dizia, é essa que se ressalta um pouco das demais. Convidou o paciente a tocar o próprio pescoço, surpreendendo Valdir. Ele havia se distraído com a austeridade da sala de estar às costas da ortopedista. Lera uma reportagem sobre o avanço da telemedicina durante a pandemia, mas pelo visto os R$ 280 por consulta online não foram suficientes para refletir na decoração. Em frente a uma longa parede branca, só se enxergava um vaso bege feioso de costelas de adão. Teve vontade de pagar aquela senhora com um cheque-presente da Leroy Merlin.

Depois de fazer Valdir apalpar-se e descrever a sensação ao toque de cada um dos ossinhos, a doutora perguntou se ele poderia mostrar seu terminal de trabalho. Não seria possível. Quer dizer, possível até seria. Mas exigiria que ele usasse a webcam que no momento estava sendo usada para aquela ladainha toda. Ficou de enviar fotos pelo WhatsApp após a consulta, já certo de que não mandaria coisa nenhuma. Seu diagnóstico era uma obviedade: após três meses trabalhando sentado em um banquinho e curvado em frente ao notebook, fodera completamente o pescoço e as costas. 

Cristianne havia aconselhado o marido a procurar um médico quando ele reclamou de uma fisgada no braço direito, conselho que ele só seguiu doze dias depois, tão logo percebeu que o dedo médio havia perdido sensibilidade ao girar aquela rodinha em meio às teclas do mouse – acessório que os colegas da imobiliária chamavam carinhosamente de clitóris. Lembrou dessa bagaceirice ao listar os sintomas à doutora. Fez questão de descrevê-los como as dores mais excruciantes do mundo. Afinal, a consulta não era para obter um diagnóstico, e sim os nomes dos antiinflamatórios mais potentes e uma receita médica para comprá-los. Já havia feito o download de um software para alterar a data do documento quantas vezes precisasse. 

A doutora explicava as graves consequências de uma hérnia de disco no pescoço, caso o quadro evoluísse, quando Valdir ouviu o aviso sonoro semelhante a um passarinho. O pio diferenciava as mensagens da esposa e as de trabalho – cujos alertas se pareciam mais com uma sineta de recepção de hotel. Graças a deus, havia lembrado de silenciar os clientes antes do início da consulta. Enquanto a médica descrevia pausadamente o bom funcionamento da coluna cervical, Valdir olhou diretamente para o furinho da câmera, moveu o pescoço dolorido para frente como se concordasse prestando o máximo da atenção e clicou na aba do WhatsApp, que pulou em frente ao rosto da doutora.

“E aí, como foi a consulta?”

“Está sendo ainda”

“Sério?”, carinha boquiaberta.

Ao fundo da janelinha em que conversava com a esposa, Valdir ouviu algo sobre um fluido pastoso, com “a consistência parecida a de um creme dental”, que vaza das vértebras em caso de hérnia. Ergueu as sobrancelhas para a câmera ainda sem enxergar a interlocutora. Talvez não devesse ter exagerado tanto na descrição dos sintomas. Dali a pouco ela chamaria uma ambulância. Digitou devagar para que a médica não ouvisse as teclas.

“A mulher não cala a boca”, duas carinhas enfadadas e uma rindo e mostrando a língua.

Valdir não se aguentou e espiou o número de mensagens silenciadas: 119. Imaginou um saguão de hotel lotado com hóspedes enfurecidos esmurrando sinetas silenciosas. Sentiu uma leve taquicardia enquanto a doutora aconselhava o que ele deveria fazer caso sentisse uma sensação de ardência e entorpecimento atrás da cabeça.

“Por essa grana, acho bom mesmo ela se puxar”, três cédulas batendo asas.

“Amor, vou prestar atenção na consulta. Depois te conto”, carinha de beijo com coração.

Fez questão de não clicar nas mensagens dos clientes. No topo da lista, as primeiras palavras mencionavam algo sobre um ar-condicionado pingando. Era aquele tipo de reclamação que o obrigava a ficar oito, dez, até doze horas diárias, se não se cuidasse, sentado no banquinho.

Quando a pandemia completou um mês, respirou aliviado por não fazer parte dos 40% de corretores que foram para o olho da rua. Todavia, a proibição de encontrar clientes em espaços fechados tornou sua profissão inútil. Quem ficou, se tornou uma espécie de síndico à distância, e passou a ter de resolver – ou ao menos mediar com os zeladores – trocentos consertos hidráulicos, elétricos e afins que não pararam mais de surgir conforme os proprietários sobrecarregaram seus imóveis.

Havia um certo karma envolvido, pois cada imóvel que fora disponibilizado ignorando o desgaste de uma borrachinha, em poucos meses se converteram em um exército de torneiras pingantes. Outra ironia veio após Cristianne assumir o balcão da ferragem do pai quase septuagenário. Então, enquanto um zelador orçava seu conserto com material a R$ 150, ele trocava mensagens com a esposa e invariavelmente descobria um superfaturamento de trinta a cinquenta porcento em cada transação. Na maioria das vezes, aprovava mesmo assim. Sua vida era mais fácil mantendo boas relações com os zeladores do que bancando o tribunal de contas para o gerente da imobiliária. A impressão era de que todos estavam ganhando dinheiro naquela pandemia, menos ele. Até o sogro, um velho sovina, estava enriquecendo parado em casa às custas do trabalho da filha. Vendia EPIs e ferramentas para consertos domésticos como jamais pensou ser possível.

Valdir, por sua vez, teria de gastar os tubos para melhorar a ergonometria da sua “estação de trabalho” – no caso, a única mesa do apartamento de um quarto, no meio da sala. Assim que a médica confirmou o envio da receita por email, ele abriu a página das Americanas e comprou logo de uma vez um monitor de vinte polegadas e uma “cadeira gamer” para disputar o jogo da vida. Parcelados em doze vezes, claro. Em seguida, pesquisou no Google mais um produto que fora aconselhado pela médica até que as dores no pescoço acalmassem: uma bolsa térmica de gel em arco, semelhante a um travesseiro de viagem. A primeira ocorrência remeteu a um site de produtos de ginástica.

Enquanto Valdir pesquisava as opções mais em conta, no canto inferior direito do site havia uma jaqueta corta-vento lilás anunciada por R$ 319. Em busca do horário do sistema operacional, pela primeira Valdir trocou olhares com a modelo da peça de roupa. Olhos castanhos claros e atentos sob as sobrancelhas suaves. Rabo de cavalo apertado quase no topo da cabeça. A boca entreaberta e coberta displicentemente por unhas rosa bebê.


Este é o primeiro capítulo do folhetim de Cauê Fonseca, intitulado Cefaleia cervicogênica, de Cauê Fonseca. Leia neste link os capítulos já publicados.


Caue Fonseca tem 38 anos. Em 2002, veio de Caxias do Sul a Porto Alegre para aprender jornalismo na UFRGS. É repórter profissional desde 2007, a maior parte do tempo pela Zero Hora e revista Donna. É mestre em comunicação pela Unisinos e tem especialização pela UFRGS em Literatura Brasileira, mundo em que dá os primeiros passos como ficcionista com este folhetim.

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