2001 – Uma Odisseia em Porto Alegre
Em 2016 recebi um convite do Escritório do Fórum Social Mundial, do Quebec, para realizar o desenho da abertura daquela que marcaria 15 anos desde a sua primeira edição, em Porto Alegre. O convite veio por eu ter feito a coordenação das atividades culturais e a curadoria dos espetáculos musicais no anfiteatro Pôr-do-Sol, incluindo as performances das noites de abertura, nas quatro vezes em que ocorreu em nossa capital.
Fui atrás de imagens e não foi nada fácil, mesmo com “era uma vez em que Porto Alegre deu no Times”. O FSM colocou nossa capital na pauta internacional, da imprensa, da economia e, sobretudo, do social.
Fora criado um Memorial do FSM, que estava sediado na parte de baixo do Memorial do RS, lá onde fica, hoje, uma galeria dos Correios. Porém, logo após a posse de Yeda Crusius no Governo do RS, o Memorial foi despejado e todas as gravações em vídeo e sonoras de cada palestra, encontro, atividade, incluindo as falas de Noam Chomsky e Hebe de Bonafini, foram colocadas na calçada.
Pois bem, consegui no banco de imagens da nossa TVE e no acervo da ong CAMP, algumas imagens, e me atirei a converter de VHS para DVD – isso mesmo, as únicas que encontrei estavam em um formato que muitos que estão lendo sequer conheceram, assim como talvez desconheçam a existência daqueles FSM em Porto Alegre.
Não é preciso nenhum esforço para imaginar Porto Alegre naquele janeiro de 2001. O sol abrasador e o insofismável calor úmido faziam a ambiência climática. Era comum ver uma pessoa muito branca, de chapéu e lenço, tentando conter o suor que escorria, apesar de sua tentativa desesperada de encontrar sombra em qualquer arbusto imaginado. Muitos vieram de continentes e países que estavam em temperaturas abaixo de zero. Com neve e sem sol. E vinham conhecer Porto Alegre em seu janeiro, que, definitivamente, não é para iniciantes.
O primeiro dia era destinado ao credenciamento de dezenas de milhares de pessoas do mundo inteiro, assim como dos veículos de comunicação. E, é claro, para a Marcha da Abertura. Era assim. Marcava-se um ponto de encontro no Largo Glênio Peres. Dali partia, por volta das 19 horas, uma marcha dos participantes, rumo ao anfiteatro Pôr-do-Sol. As imagens atestam as bandeiras de várias nações e movimentos, faixas e cânticos em diversas línguas, todos caminhando com uma mesma alegria estampada nos rostos, subindo e descendo a Borges de Medeiros.
No anfiteatro, a gente esperava com ansiedade. De repente, alguém nos avisava via walkie talkie a posição da marcha: no Capitólio. Era o sinal. A Marcha estava chegando. É indescritível a visão daqueles rostos se aproximando, construindo sua utopia, e ocupando festivamente todo aquele gramado em frente e aos lados do palco.
A primeira atração da noite estava preparadíssima para os seus 40 minutos de show. Os memoráveis shows que reuniam dezenas de milhares de pessoas do mundo inteiro à beira do Guaíba – eu costumava chamar de “A Fogueira da Tribo”, pois era aonde todos iam se encontrar, após ter passado o dia juntos, mas divididos em um leque enorme de possibilidades de reuniões, mesas, palestras, oficinas.
Sempre abria a noite com um show local. A seguir, shows nacionais e, fechando, os convidados internacionais. E, é claro, guardamos uma surpresa para a Abertura. Semanas antes, uma amiga do teatro me apresentara o Pera, cenógrafo e um dos diretores do La Fura dels Baus, um grupo catalão de montagens oníricas e de forte conteúdo social e político, muito conhecida na época. Acertamos que ele faria oficinas com bailarinos e atores daqui e construiriam uma performance apropriada para aquele momento. Pois bem, quando as pessoas da marcha chegaram, foi feita a saudação formal aos participantes, um anúncio de quantos inscritos, quantos veículos de imprensa, mais de cem países, todos os continentes presentes e…
A performance do La Fura com nosso pessoal começou. Logo à frente do palco, à esquerda, estava uma escultura de um gigantesco monstro construído de sucata enferrujada, que tinha dois monitores de tv como olhos reproduzindo imagens e expelindo fogo pela boca. Os bailarinos investiam contra ele, escalando sua férrea estrutura e também expelindo fogo a partir das tochas que empunhavam. Um impacto visual e sonoro ao som de Manuel de Falla (isso mesmo, aquele cujo nome inspirou a nossa deliciosa banda DeFalla), o músico espanhol.
Depois vieram os shows. Eram sempre cinco por noite, ao longo das cinco noites de duração do FSM, com seis dias de atividades intensas. Era como uma magia ver aquele encontro de pessoas que descobriam que não estavam sozinhas no desejo de fazer um outro mundo. Um Outro Mundo é Possível, era o slogan do FSM.
Passaram por esse palco, ao longo de quatro edições em Porto Alegre, nomes como Paulinho da Viola, Vitor Ramil, Eliades Ochoa e seu Cuarteto Patria, trazendo o Buena Vista Social Club. Beth Carvalho, Ira, Nando Reis, Velha Guarda da Portela em um ano e a da Mangueira em outro, sempre com Marquinhos de Oswaldo Cruz. Dead Fish e a maravilhosa banda senegalesa Empire Mandingue, e Mano Chao e Cumadre Fulôzinha e Tangos e Tragédias e La Murga Uruguaya La Reina de La Teja e Nei Lisboa e Bidê ou Balde e Gil e mais muitas e muitos.
Encontrei imagens também da montagem do Acampamento da Juventude, que estava presente em todas as edições, sediado ali no Parque Harmonia. Os jovens chegando com suas mochilas e barracas, de todo o lado do mundo, que é redondo. Na primeira edição, o acampamento, que também tinha seus shows, peças, oficinas, debates sobre a questão da juventude internacionalmente, levou o nome de Carlo Giuliani, em homenagem a um jovem italiano morto meses antes por carabinieri em Gênova, durante protesto contra a OMC.
Interessante. A CCMQ recebeu um grupo da Lunarosa, de Roma, uma das maiores produtoras do audiovisual da Itália. Cineastas, produtores, técnicos. Eles vinham documentando todos os protestos que aconteceram no período imediatamente anterior, onde ocorria reunião do G8. Foi assim em Seattle, EUA, e Gênova, Itália. Eles diziam: “Todos, antes, eram “protesta”, e em Porto Alegre, o FSM, é “proposta””. Eles fizeram filmes sobre o MST, Acampamento da Juventude, Marcha Internacional das Mulheres e, aquele dirigido e montado pelo Ettore Scola, em que o título é o modo como ele designou nossa cidade: Porto Alegre – a Ágora Contemporânea.
Enquanto isso, em Davos… Souberam da treta, escolheram seus interlocutores e quiseram entrar em contato. E, assim como fazem os ETs quando querem estabelecer comunicação, disseram: queremos falar com seu chefe. O escolhido deles era o George Soros. O nosso eles identificaram como sendo Bernard Cassen. Bem, o Cassen é francês, editor chefe do Le Monde Diplomatique e membro da ATTAC (Associação pela Taxação das Transações Financeiras para a Ajuda aos Cidadãos) – portanto, interlocutor que se preze, pensou o ideário neocolonialista.
Não era bem assim. O FSM não delegava nenhum dos seus membros, nem do Comitê Brasileiro, ou do Internacional, instância máxima, a falar em nome do FSM. Foi decidido por vários interlocutores, mas foi Dona Hebe de Bonafini, mulher, latina e uma das criadoras e ativistas do Las Madres de Plaza de Mayo, que surpreendeu Davos, naquele dia.
O diálogo Econômico com o Social, Davos com Porto Alegre, correu o mundo através da imprensa, que transmitia simultaneamente para seus países e audiências. Nele, Soros pergunta sobre nossas propostas, para além da Tobin (taxação Econômica para o Social) defendida pela ATTAC. Dona Hebe pergunta para ele: quanto vale a vida de nossos filhos assassinados pelas ditaduras que a economia de vocês financia? Era assim.
Também foi muito marcante a ação de José Bové, um produtor de queijos na França que, contra a transgenia alimentar, já havia invadido McDonalds em seu país e, juntamente com o MST, invadiu e destruiu dois hectares de plantação experimental de soja e milho transgênico da Monsanto, em Não me Toque, Noroeste Gaúcho. Foi preso e virou a estrela daquela edição.
Editei a peça, que foi para o Quebec. O que ficou foram essas lembranças tão fortes de quando o sul, Porto Alegre, foi o Norte para o mundo. Já não se precisava mais explicar onde ela ficava, em nossas viagens. O planeta vinha discutir seus rumos em nossa Ágora.
A Odisseia em Porto Alegre, em 2001, não foi apenas uma belíssima obra de ficção. E janeiro continua abrasador.
Ben Berardi é antropólogo e curador, vice-presidente do Instituto Zorávia Bettiol.