A Terra era redonda
A abertura do primeiro Fórum Social Mundial, no verão de janeiro de 2001, começou com uma concentração, próxima da encruzilhada onde se funda o Mercado Público e está “sentado” o orixá Bará – entidade responsável pela abertura dos caminhos e pela fartura, segundo os religiosos de origem afro em Porto Alegre.
Um tempo diferente dos dias de hoje. Era pacífico que a terra, além de azul, era redonda, e para demostrar isso foi feita uma alegoria divertida, com todos os continentes estampados numa bola que era jogada de um lado para outro, com as mãos da multidão se misturando com faixas e bandeiras. Do alto dos prédios próximos, onde estavam cinegrafistas e fotógrafos, se avistavam grupos coloridos que vestiam roupas típicas, marcando a diversidade dos países presentes.
Grupos que haviam chegado dias antes surgiam pelas escadarias do metrô, vindos das redes de hospedagens solidárias que se formaram, em Porto Alegre e na região metropolitana. A rede de hotéis e restaurantes havia sido tomada por gente que falava os mais diversos idiomas: para quem imaginara que tudo estaria dominado apenas com a língua inglesa, a realidade era uma Babel de idiomas. Foram mais de 150 países presentes. Nas proximidades da Usina do Gasômetro, caminhando ou usando ônibus de linha, partiam para a marcha “Outro Mundo é Possível” os que estavam no território Acampamento Intercontinental da Juventude, um lugar construído com centenas de tendas, chuveiros e varais de poemas, estendidos entre as árvores. A alegria festejava seu comportamento de resiliência ao capitalismo, ao calor e à diversidade de meios para chegar à cidade que havia se contraposto ao capitalismo de Davos.
A imprensa do planeta já considerava Porto Alegre, com o FSM sendo o maior evento social e político do mundo, um evento desafiador da ordem econômica. Respondiam por ele oito entidades que compunham o Comitê Organizador: Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac), Comissão Brasileira Justiça e Paz, da CNBB (CBJP), Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania (Cives), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
O evento evidentemente que não era clandestino. Mas as atividades que correspondiam ao poder público estadual, o principal anfitrião do evento era responsabilidade do Governador, companheiro Olívio Dutra e equipe, todos eram tratados, em especial pela imprensa local, com desconfiança, insinuações e clara contrariedade às escolhas políticas da temática do fórum. As iniciativas de apoio político e financeiro, atos administrativos perfeitos, dentro das formalidades exigidas, além de publicados no Diário Oficial, serviam como munição para as conclusões mais descabidas, com a finalidade de atacar o governo. Mesmo que fôssemos curtidos de polêmicas e antagonismos, um evento dessa magnitude era certo que merecia outro tratamento. No entanto, tudo era motivo para tensões. As agendas das autoridades estaduais, que recepcionavam as delegações estrangeiras e lideranças inscritas no evento, eram suficientes para patrocinar especulações sobre encontros secretos.
Naquela época não havia um presidente da República que tivesse feito o juramento constitucional de servir à pátria brasileira para desfilar, logo depois, abraçado à bandeira dos EUA ou fazendo rapapés ao presidente americano. Portanto, imagens da recepção, no Gabinete do Governador, a uma delegação de negociadores das extintas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), eram motivo mais que suficiente para nos atacarem como cúmplices do narcotráfico. A ordem não escrita, mas cumprida com subserviência explícita, era manter a chama da fogueira maniqueísta, patrocinando um confronto incondicional com o governo estadual, algo que lhes serviria como um ensaio geral para atacar a esquerda no país e deitar as raízes de longa duração do ódio contra o PT na vida política do Estado. Diariamente montanhas de lixo ganharam espaço para cumprir com essa primordial missão.
Uma faixa alaranjada era o abre-alas da marcha de abertura do FSM, e na linha de frente, claro que entre milhares de militantes e dirigentes políticos, se sobressaiam nas fotos Benedita da Silva, Olívio Dutra, Miguel Rossetto e Luís Inácio Lula da Silva. Uma vanguarda estava na avenida Borges de Medeiros como que eletrizando o fim de tarde. Muitos não haviam começado a andar, quando a faixa de abertura estava chegando ao Anfiteatro Pôr do Sol, acompanhados de tambores, repiques e outros instrumentos populares.
Um mar de vozes, palavras de ordens, em meio a centenas de faixas que indicavam as mais diversas filiações políticas e as mais amplas lutas travadas no planeta. Immanuel Wallerstein procurou definir o espírito de Porto Alegre da seguinte forma: “Nós queremos um mundo relativamente democrático e relativamente igualitário”. Eles não sabem como fazer isso institucionalmente, mas sabem que é por aí. E essa é a bifurcação entre os dois principais caminhos que o mundo está percorrendo, e está percorrendo constantemente.
Gustavo de Mello é advogado. Integrou a equipe de governo de Olívio Dutra no Estado.