Arthur de Faria | Gênio

Nem sei se ele ia gostar

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Nem sei se ele ia gostar BRIGANI-ART / Heinrich

Ateu de merda que eu sou, o que tem no altar lá de casa são cinco compositores: Bach (que, na verdade, muita gente não sabe, mas foi Deus), Zappa, Jobim, Radamés e Piazzolla.

(Nem vem, o altar é meu, não me enche o saco.)

Dia 11 de março Astor Pantaleón Piazzolla completou 100 anos de nascimento. Muito se está escrevendo e muito se escreverá sobre ele, mas o que me interessa aqui é fazer um paralelo que (só) eu acho muito interessante. Um paralelo entre ele e outro imperador do meu gosto musical: Radamés Gnattalli. Porto-alegrense, meu vizinho aqui da Fernandes Vieira, nascido 15 anos antes de Piazzolla vir ao mundo em Mar del Plata.

No auge da Era do Rádio, o já maduro Radamés e o jovem Piazzolla tinham popularidades quase equivalentes, cada um no seu país. A bem da verdade, Radamés tava uns pontos na frente. Afinal, ele era o principal maestro arranjador da principal emissora do país: a Rádio Nacional, cujo slogan era O Himalaia dos Índices de Audiência. Lançava muitos discos: tanto de seus concertos às vezes para instrumentos inusuais como guitarra elétrica, quanto do seu trabalho de compositor popular. Ou mesmo discos de arranjos orquestrais “comerciais” para sucessos do momento. 

Piazzolla estava nessa também: nos anos 1940 era a grande novidade entre os arranjadores das grandes orquestras de tango, brilhando em discos e rádios. Era o menino prodígio, popularíssimo no meio, discípulo brilhante e só ligeiramente ousado da tradição tangueira. Tinha sua própria orquestra – que ficou conhecida depois como a Orquesta del 1946 – e escrevia arranjos para muitas outras delas, como a de Aníbal Troilo, onde havia começado a carreira de bandoneonista.

Outro ponto em comum: ambos tinham sólida formação erudita e começaram tocando música erudita. Piazzolla tocava basicamente Bach no bandoneon. E fazia sentido, afinal, antes de ser ligado ao tango (Gardel, por exemplo, tem pouquíssimas gravações com bandoneon), esse instrumento alemão servia para o que fora inventado: substituir o órgão em pequenas igrejas luteranas, tocando hinos e… Bach! Quando, ainda menino, Astor conheceu Carlos Gardel (ambos moravam em Nova York nesse momento), o homem que inventou o tango-canção o ouviu tocar e disse algo como “pibe, el fuelle (o fole, a sanfona) lo tocás bárbaro, pero el tango lo tocás como un gallego”. 

Quando voltou para a Argentina, só foi tocar tango para pagar seus estudos de música erudita. Nos intervalos, enquanto o pessoal cheirava cocaína, ele estudava contraponto. Daí compôs umas peças sinfônicas bem recebidas e foi pra Paris estudar música erudita com a Nadia Boulanger (cujas aulas nem o Stravinsky tinha coragem de interromper quando ia levar umas partituras dele pra Nádia revisar). 

Foi Nadia que lhe disse que a música de concerto que ele escrevia era muitíssimo menos interessante do que o que ele experimentava no tango. Em 1957, ainda morando em Paris, montou à distância, mandando as partituras pelo correio, o Octeto Buenos Aires. Voltou, começaram a tocar e gravar, e a música do seu país nunca mais foi a mesma (ainda que sucesso e dinheiro só tenham chegado de verdade no final dos anos 1970).

Radamés também queria era ser concertista de piano e compositor de música erudita. Pirou quando viu Ernesto Nazareth tocando, mas acabou indo mesmo para o popular quando teve de pagar suas contas no Rio de Janeiro, desistindo do sonho de pianista de concerto.

Quanto à sua proeminência, nunca teve a importância aparente de Astor. Mas inventou a orquestração da música do seu país: o samba. A partir de seu arranjo para Aquarela do Brasil, em 1939, o próprio samba virara outra coisa. 

Mas sem causar nem perto da polêmica envolvendo o Astor de 1957 (o que sim, causaria o mesmo rebuliço, no Brasil, seria a Bossa Nova, em 1958, mas isso é outro assunto). 

E aí novo paralelo: Radamés foi acusado de branquear e americanizar o samba, Piazzolla de “matar” e “esfriar” o tango. 

Antes do Radamés de 1940, a referência de arranjo de samba era a do negro Pixinguinha, com sua escrita contrapontística e muitos percussionistas. Aí Radamés veio italianão, romanticão (no sentido erudito do termo): melodia acompanhada da maior grandiloqüência, aqueles naipes fazendo riffs como no jazz, e aquele mamute orquestral soando incrivelmente suingado. Porque era bem escrito, e porque era muito bem tocado: lá estavam, na rádio e nos discos, sob batuta do maestro, os maiores músicos do País. 

Porque era um orgulho tocar com Radamés.

Como era um orgulho tocar com Astor. 

Passar por alguns grupos de Astor Piazzolla e conseguir tocar aquela música dificílima era uma espécie de atestado de notório saber – nisso Piazzolla era igual a Frank Zappa. Já Radamés pensava justamente o oposto: para seu piano, imensos desafios técnicos. Mas, no resto, escrevia para cada pessoa instrumentista, pensando em ressaltar suas qualidades e disfarçar seus defeitos. Não achava que sua música era maior que os músicos. 

Já Astor, sim: tinha certeza que sua música era maior que tudo.

Mas voltando: mesmo com eventuais críticas, Radamés nunca foi acusado de matar o samba. Já Astor…

A bem da verdade, ele também sempre adorou aumentar todas as polêmicas em que entrou. Mas o fato é que, sim, houve uma época em que os taxistas de Buenos Aires (que seguem sendo a categoria profissional mais reacionária da humanidade) não o deixavam subir nos seus carros. Era um traidor.

Isso começou no Octeto, foi ainda mais intenso nas suas bandas elétricas/eletrônicas dos anos 1970, mas explodiu quando Piazzolla achou o seu som, em 1960, com o Quinteto Astor Piazzolla. 

E aí os quintetos.

O de Astor era o tradicional quarteto de tango – violino, bandoneon, piano, contrabaixo -, acrescido da guitarra elétrica que ele já havia experimentado no Octeto. Tudo bem que outro grande, Horácio Salgán, tivesse tido quase a mesma ideia no mesmo momento, mas o quinteto de Salgán usava geralmente violão.

Guitarra elétrica, piano, contrabaixo, acordeom (em vez de bandoneon) eram a base do Quinteto/Sexteto Radamés Gnattali, que se completava com um baterista, Luciano Perrone (e, no sexteto, com mais um piano). E não era qualquer baterista: era o cara que, nos anos 1930, tinha adaptado esse instrumento novo, surgido no jazz, para tocar, por exemplo, samba.

Sentiu o novo paralelo?

Dois grupos que vão trabalhar exatamente na fronteira entre música erudita e popular: tocando música popular com rigor de escritura erudita. Com seus líderes compositores usando a música tradicional de seus países (tango e milonga – samba, marcha, valsa, baião) como mote para composições 98% escritas, praticamente sem nenhuma influência dos conceitos do jazz, e usando muito contraponto bachiano e ecos de Debussy, Ravel, Bartók e Stravinsky.

O que os diferencia é justamente um instrumento ligado à tradição musical de seu país: o violino, que estava no tango desde muito antes da chegada do bandoneon. E a bateria pensada como um grupo de instrumentos de percussão – o coração do samba.

O Astor Piazzolla Quinteto durou de 1960 a 1970 e, depois chamado Quinteto Tango Nuevo, de 1978 a 1989. Entre os piazzolleiros não há dúvida de que está nele o que de mais importante Piazzolla fez: seus dois quintetos espetaculares (também daria para fazer um paralelo com os dois quintetos do Miles Davis, mas isso eu deixo pro Karam).

O Sexteto Radamés foi de 1954 a 1965, e seguiu como quinteto – com um piano só – até 1985, quando seu líder teve a primeira isquemia que o derrubou.

E aí o definitivo e terrível paralelo: ambos foram derrubados muito antes de morrer. Radamés teve o derrame em 1986, e morreu em 1988, quando já quase estava conseguindo voltar a tocar.

Piazzolla teve uma hemorragia cerebral em 1990, e só morreu em 1992.

E aí outra rareza: ambos foram interrompidos no momento em que estavam mais valorizados, e trabalhando como poucas vezes em suas vidas. Radamés ia completar 80 anos e tinha sido redescoberto pelos jovens músicos de choro quando tinha mais de 70. Voltara a gravar e fazer shows enlouquecidamente.

Nunca ficou popular, mas depois de sua morte seu prestígio não parou de crescer, principalmente entre o pessoal do choro e, vejam só, da música erudita, um terreno onde nunca foi totalmente aceito em vida. Nunca o viram como hoje é visto: um grande nome da música de concerto brasileira, ao lado de Camargo Guarnieri, Villa-Lobos, Guerra-Peixe… Villa-Lobos, por exemplo, nunca deu bola pra ele (Complexo de Vira-Lata, certamente, e eu nem vou me vingar lembrando da frase do Stravinsky: “por que é que sempre que eu não gosto de uma música, descubro que ela é do Villa-Lobos?”)

Piazzolla tinha 71. Tinha se transformado numa estrela internacional por volta dos 60. Estava finalmente ganhando dinheiro, mas não viveu para ver o que é hoje em seu país.

Morreram seus inimigos e uma nova geração se aproximou do tango a partir dele nos anos 1990. Ninguém mais cogita perguntar o que ele mais ouviu: – Mas isso é tango? 

Hoje Astor Piazzolla é o que nunca foi em vida: um dos grandes nomes do gênero, ao lado de Gardel, Troilo, Salgán, Pugliese… 

E eu nem sei se ele ia gostar disso.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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