Reportagem

Guaíba sofre com esgoto enquanto capacidade de tratamento está ociosa

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Guaíba sofre com esgoto enquanto capacidade de tratamento está ociosa Foto: Luciano Lanes/Arquivo PMPA

  • O Programa Integrado Socioambiental, concluído em 2014, deu a Porto Alegre capacidade para tratar 80% de seu esgoto.
  • Apesar disso, a capital ainda patina com um índice de 56%, jogando boa parte do esgoto in natura em seu manancial.
  • Superavitário, DMAE reduz investimentos a cada ano, distanciando-se da meta instalada.
  • Prefeitura encomendou um estudo para viabilizar a participação da iniciativa privada no setor, o que pode trazer agilidade, porém também poderá elevar a taxa cobrada da população.

Em 1732, o território que viria a ser Porto Alegre foi dividido em três estâncias cujos limites foram definidos pelos cursos d’água que banhavam a localidade: ao norte ficava o Rio Gravataí, ao sul, o Arroio do Salso e à sua frente se descortinava o Guaíba, por cujas águas chegaram os açorianos em 1751. Foi também o Guaíba que alimentou as primeiras plantações de trigo da futura capital e que serviu ao escoamento de sua produção desde então – e é em sua homenagem que a prefeitura guarda o último domingo de novembro em seu calendário oficial.

Historicamente, também foi no leito do Guaíba que a cidade depositou seus dejetos, contaminando o manancial que deveria proteger – para o bem de sua população e de sua economia. Três séculos depois da chegada dos primeiros habitantes, o problema persiste, mesmo após a conclusão, em 2014, do que foi chamado, à época, de a “maior obra de saneamento básico do Brasil”, que entregou à cidade infraestrutura para tratar 80% de seu esgoto.

O Programa Integrado Socioambiental (PISA) foi uma obra babilônica: custou aos cofres públicos quase um bilhão de reais em valores atualizados pela inflação. “Há alguns anos, R$ 500 milhões era o total que se investia no Brasil inteiro nesse tipo de obra. Hoje, só a capital gaúcha investe mais do que isso”, discursou Dilma Rousseff (PT), ao inaugurar o sistema na condição de presidente da República, em abril de 2014. Grande parte do recurso vinha do governo federal, em empréstimos a juros subsidiados.

Com o Socioambiental concluído, a previsão era que a cidade deixasse de jogar no Guaíba 145 mil metros cúbicos de poluição por dia: para calcular essa quantidade, imagine encher de cocô um túnel de um metro de altura por um metro de largura entre Porto Alegre e Torres.

Não foi à toa, portanto, que o então prefeito José Fortunati (na época, PDT) insistiu na tese de que o programa tornaria possível o sonho porto-alegrense de mergulhar na praia de Ipanema. “Investir em saneamento é tornar o Lago Guaíba novamente balneável”, disse na cerimônia de inauguração do PISA. 

Para essa equação dar certo, o principal item era a construção de uma estação de tratamento de esgoto no bairro Serraria, na zona sul da cidade, pela qual poderiam passar 4.130 litros de esgoto por segundo. Foi a parte mais cara do PISA, erguida com o suor dos dois mil operários que trabalharam na obra. Sua missão era limpar a sujeira produzida em bairros tão distantes como o Centro Histórico e a Restinga – e para isso foi criado um sistema de transporte por onde viajam os dejetos, sob a terra e a água.

“O emissário terrestre que vai da estação de bombeamento de esgoto Ponta da Cadeia, na altura do Gasômetro, até o Cristal, cruzou a foz do Arroio Dilúvio a uma profundidade de 2 metros abaixo do leito. Mais adiante, em frente ao Museu Iberê Camargo, exigiu um muro de contenção para manter o traçado projetado”, descreveu uma revista especializada no tema. Canos com altura suficiente para que uma pessoa caminhe em seu interior foram instalados quatro metros abaixo do leito do Guaíba. Completavam o cenário a instalação de 136,5 quilômetros de redes coletoras, oito estações de bombeamento, quatro chaminés de equilíbrio e a ligação de 10.300 residências ao sistema.

Cinco anos e meio após sua conclusão, 40% dessa capacidade está ociosa porque a rede coletora ainda é insuficiente para levar até a estação da Serraria todo o esgoto que ela tem capacidade para tratar. Por isso, Porto Alegre trata apenas 56% do esgoto gerado, enquanto o restante segue sendo lançado ao Guaíba in natura. Depois do fim do Socioambiental, o processo de integração de novas casas ao sistema foi desacelerando e hoje pode ser considerado residual – entre 2016 e 2018, apenas 44 quilômetros de redes foram executados pela prefeitura.

Em Porto Alegre, há tarifas diferenciadas para os endereços que não têm a rede separadora absoluta, nas quais as casas ligam o esgoto na rede pluvial, de drenagem urbana, que acaba levando tudo para o Guaíba. A região com melhor índice de cobertura é a da Ponta da Cadeia, a mais populosa de Porto Alegre e que inclui a totalidade do arroio Dilúvio: mais de 70% das redes possuem separador absoluto, ou seja, coletam o esgoto e levam até uma estação de tratamento.

“O Código Estadual do Meio Ambiente diz de forma clara que não se pode lançar efluentes em cursos d’água como o Guaíba”, alerta o advogado e ex-secretário do Meio Ambiente de Porto Alegre, Beto Moesch.

O prefeito tem pressa

“Em 56 anos de história do DMAE, só conseguimos chegar a 56% de esgoto tratado. Vamos esperar mais 44 anos para universalizar?”, provocou, em outubro, o prefeito Nelson Marchezan Júnior, durante sua participação em uma roda de conversa com o coletivo Porto Alegre Inquieta.

O prefeito se referia à data de criação do DMAE, em 1961 (56 anos completos em 2017), quando a missão de atender a totalidade da população com seus serviços ficou expressa em seus princípios: “Prestar, universalmente, serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário, com garantia de qualidade e de modicidade tarifária, contribuindo para uma gestão sustentável dos recursos hídricos, sendo social e ambientalmente responsável.”

Apesar disso, a primeira estação de tratamento de esgoto só foi criada trinta anos depois, em 1991 – a do Lami, que representou o aumento da capacidade de tratamento de esgoto para 5% em Porto Alegre. “Antes disso, só havia tratamento pontualmente, através de pequenas estações instaladas em obras financiadas pelo BNH, como o condomínio Cohab Cavalhada”, observa Arnaldo Dutra, que foi presidente do DMAE nos anos de 1999 e 2000 – e comandou a Corsan durante o governo de Tarso Genro (PT).

Considerando esse histórico, ao longo das últimas três décadas se passou de 5% para 56% de tratamento, com capacidade instalada para 80%. Ainda assim, o “desafio é colossal” para atingir a universalização, segundo diagnóstico da prefeitura. O Plano Municipal de Saneamento Básico, cuja versão mais recente é de dezembro de 2015, prevê atingir esse patamar em 2035. Para chegar lá seriam necessários R$ 1,77 bilhão de reais, “capacidade de investimento que hoje o município não possui”, segundo nota da Secretaria Municipal de Parceiras Estratégicas (SMPE).

Marchezan tem pressa e espera deixar como legado para a Capital a contratação de um parceiro privado para gerir o sistema de água e esgoto em Porto Alegre. Em setembro, foi assinado um contrato com o BNDES e uma consultoria privada, que estudarão distintas possibilidades para o serviço – e, por enquanto, o discurso oficial da SMPE é mais ameno que o do prefeito: “A definição do modelo é objeto do estudo. O estudo poderá concluir que o modelo ideal seja uma concessão, uma PPP (parceria público-privada) ou a prestação do serviço pelo próprio município”, explicou a pasta.

Segundo cálculos do engenheiro Percy Soares, que foi superintendente do DMAE nos anos 70, hoje 20% do saneamento no Brasil já é gerido por empresas privadas. “Não é um sistema privatizado, as redes e estações serão sempre públicas. O que se pode estabelecer é a concessão do uso, ou a parceria público-privada”, observa.

A regra, mesmo em outros países, é que haja algum tipo de subsídio público para o esgotamento sanitário, porque “é um serviço caro, mas que contribui com a saúde pública”, menciona Guilherme Marques, professor do Instituto de Pesquisas Hídricas (IPH), da UFRGS.

Um projeto de lei proposto em junho de 2019 pelo senador Tasso Jereissati (PSDB/CE) – e que tramita em regime de urgência no Congresso Nacional – estimula a participação do setor privado no saneamento.

Mas a agilidade que pode representar a participação de empresas na prestação de serviço pode ter também um custo. Um estudo, coordenado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia e Gestão Estratégica de Negócios da PUC de Campinas, concluiu que as tarifas de saneamento básico mais caras do Brasil são praticadas por empresas privadas.

A Prolagos, do Rio de Janeiro, lidera o ranking. Gaúchos de fora da Capital também pagam caro, mesmo com os serviços ainda majoritariamente públicos: a Corsan divide o top-10 nacional com a Comusa, pública de Novo Hamburgo, e a privada BRK Ambiental, de Uruguaiana. A explicação para a diferença é matemática, diz Arnaldo Dutra: companhias municipais como o DMAE, por serem autarquias, não pagam impostos e não repassam esses valores à população. “As privadas e as públicas estaduais, como a Corsan, recolhem tributos, o que se reflete nas tarifas”.

Pedaladas fiscais no DMAE

O engenheiro civil Adinaldo Soares de Fraga trabalhou toda a vida do DMAE. Depois da aposentadoria, assumiu uma cadeira no conselho deliberativo do órgão, passou a acompanhar de perto a execução orçamentária da autarquia e garante, com base em relatórios públicos do órgão: a média de investimento girou em torno de 22,7% da arrecadação nos dez anos que antecederam a atual gestão, mas caiu para 10,6% em 2017, e o desempenho seguia lento no ano seguinte, batendo em apenas 7,7% até o final de setembro, último mês do acompanhamento de Fraga.

“Historicamente, o DMAE possui superávit financeiro – em setembro de 2018 esse valor era de R$ 92 milhões – que devem ser utilizados em investimentos necessários para o atendimento das demandas dos sistemas de água e esgotos”, escreveu, em um artigo publicado na revista da associação dos técnicos da prefeitura.

O caixa do DMAE é tão robusto que não sofreu grandes abalos sequer quando a Secretaria da Fazenda se apertou e precisou pedir antecipações de recursos à autarquia – as famosas pedaladas fiscais, termo incorporado ao vocabulário do brasileiro médio após o episódio do impeachment de Dilma, em 2016.

Quem explica é a própria assessoria de imprensa, através de nota: “Em 2017, primeiro ano da atual gestão, R$ 35 milhões foram repassados do DMAE para a prefeitura. Em 2018, foram R$ 17 milhões. Esses repasses – totalizando R$ 52 milhões – são referentes à antecipação da tarifa de arrecadação do esgoto misto, sendo plenamente compensados, portanto, não trouxe prejuízos para a disponibilidade de recursos do departamento”.

Volumes ainda maiores estiveram envolvidos em duas operações da gestão anterior, em 2013 e 2016, quando a autarquia de saneamento repassou R$ 262,7 milhões ao executivo, resultado da antecipação do financiamento das obras do PISA, que seriam pagos em 20 anos. 

O maior investimento já foi feito

A previsão que a prefeitura deu aos conselheiros deliberativos do DMAE é que seriam necessários R$ 665 milhões em investimentos em água e esgoto para cumprir o previsto no Plano Municipal de Saneamento Básico até 2021. Mas a conta para reivindicar a participação privada não inclui o aumento de arrecadação que o departamento teria, caso ampliasse os serviços oferecidos à população, que é calculado em R$ 93,2 milhões ao ano.

Quem defende o serviço 100% público, alega que a parte mais cara das obras já foi concluída, e o que sobrou para executar cabe dentro do orçamento do órgão.

“O grosso já foi feito. O PISA era para ter continuidade com novas obras, com a ampliação das redes, até que se chegasse aos 80%. Mas a estação Serraria está lá, os grandes investimentos foram feitos. Vamos dizer que as implantações que são as mais caras, os maiores investimentos já estão concluídos, o que falta agora são intervenções em áreas específicas”, pondera Flavio Presser, que comandou a autarquia exatamente no período em que as obras aconteceram, entre 2005 e 2015.

Ao deixar a pasta, uma nova estação de tratamento na zona norte já estava encaminhada, com a vantagem de poder ser feita em partes. “Terminamos o primeiro módulo, de três previstos – cada um tratava cerca de 5% de tal maneira que, no fim desses investimentos, alcançaríamos 95% de capacidade de tratamento, que é mais ou menos o que se considera a universalização porque é impossível chegar a 100% em razão das áreas irregulares da cidade”, diz.

De toda maneira, a universalização do tratamento de esgoto é apenas parte da solução para o Guaíba – uma amostra de que o problema é mais complexo é o arroio Dilúvio. Embora a região abarcada por esta bacia hidrográfica possua o melhor índice de tratamento da cidade (com mais de 70% das redes conectadas a uma estação de tratamento), o riacho da avenida Ipiranga retorna com frequência ao noticiário pelas péssimas condições ambientais que exibe. “Apesar do expressivo percentual de redes coletoras implantadas nessa bacia, onde somente 29,86% das vias não possuem sistema de coleta de esgotos, a qualidade das águas do Arroio Dilúvio permanece visivelmente comprometida devido à elevada contribuição de carga orgânica”, registra o Plano Municipal de Saneamento Básico. 

Além de contar com muitas ligações irregulares de esgotos domésticos na rede pluvial, as tubulações existentes nessa região foram executadas nos anos 70 e 80 e estão chegando ao limite de sua vida útil, explica o documento. “Situação que, associada à verticalização imobiliária que vem ocorrendo em Porto Alegre, tende a se agravar”, conclui o diagnóstico.


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