Parêntese | Reportagem

Homens brancos são 60% dos homenageados em monumentos de Porto Alegre

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Homens brancos são 60% dos homenageados em monumentos de Porto Alegre Entre as obras, há tributos a ditadores e personagens infames da história. Foto: Juan Ortiz

Historiadores comentam levantamento inédito feito pela Parêntese: a maioria das estátuas foi erguida sob a perspectiva das elites machistas e escravocratas


Ainda que a intempérie tenha corroído seu uniforme de bronze, algumas letras de sua frase ufanista estejam faltando e intervenções gráficas com odes ao veganismo debochem de seu legado estancieiro, a estátua equestre de Bento Gonçalves continua de pé. Sujo, deteriorado e pichado: é assim que se encontra, na avenida João Pessoa, o tributo ao líder farroupilha 85 anos após sua instalação. A expressão carrancuda do homem metálico que se ergue impávido a mais de 10 metros de altura é como de alguém que diz: “ninguém me tira daqui”.

Diferentemente do movimento em curso nos Estados Unidos e na Europa, não há sinal de que as estátuas de personagens escravocratas em solo gaúcho, como Bento Gonçalves, venham a ser derrubadas – ainda que, ao menos na Capital, elas sejam numerosas. Em contraponto, os negros homenageados são minoria. As informações são de um mapeamento inédito feito pelo Matinal a partir de dados da Secretaria Municipal de Cultura. A obra de Antônio Caringi, concebida na Alemanha nazista, é uma das mais de 80 dedicadas a homens brancos na estatuária pública de Porto Alegre, o que soma 60% das pessoas homenageadas. Dos mais de 130 monumentos que representam ou homenageiam figuras humanas, apenas nove são para a população negra e outras nove para mulheres. Há também marcos, obeliscos e placas para o povo judeu e o sírio-libanês, entre outros.

A estátua de Bento Gonçalves foi erigida em 1935, para a comemoração do centenário farroupilha, como parte da renascença regionalista iniciada a partir do fim do século 19 – ou seja, um revisionismo histórico-cultural que buscava destacar os elementos desejáveis do “gauchismo”. Nessa narrativa, ficaram escanteados os componentes negro e indígena (inclusive fortemente presente na genética dos gaúchos originários, mas que foi apagado no curso da história). 

“As estátuas de maior destaque em Porto Alegre são representações da elite social e cultural da história do Rio Grande do Sul e que preservam uma identidade forjada em torno do mito do gaúcho”, explica a historiadora Izis Abreu, que pesquisa a representação e representatividade de pessoas negras na arte gaúcha. 

Antes de comandar a Revolução Farroupilha e presidir a efêmera República Rio-Grandense entre 1836 e 1841, Bento Gonçalves era um herdeiro de uma rica família de fazendeiros. Inicialmente, seus pais queriam que ele virasse padre. Mudaram de ideia ao conhecer a habilidade do jovem com a espada, quando ele matou um homem negro em um duelo porque se sentiu ofendido. Foi aí que começou sua carreira militar.

Ao contrário do que se fazia crer, a Guerra dos Farrapos não era exatamente um projeto abolicionista. “Bento Gonçalves, ao mesmo tempo em que solicita como condição de paz ao governo imperial a liberdade dos escravos que estão a serviço da República, deixa, como herança ao morrer em 1847, 53 escravos em sua fazenda de Camaquã”, relembra, em um artigo, a historiadora Margaret Bakos. Outros chefes farroupilhas também mantiveram pessoas escravizadas vários anos após o fim da luta armada. 

No Parque Farroupilha, tem até um busto do maior antagonista dos farrapos: Luís Alves de Lima e Silva, mais tarde agraciado com o título de Duque de Caxias, um dos principais chefes militares da história brasileira. Era ele o governante oficial do Rio Grande do Sul nos anos finais da revolta – uma vez que a monarquia não reconhecia os separatistas. E foi ele também um dos artífices por trás do Massacre de Porongos, que aniquilou os Lanceiros Negros em 14 de novembro de 1844. Embora não haja consenso na historiografia oficial sobre a possível traição dos farrapos nesse ataque, o certo é que o corpo de soldados escravizados estava escassamente armado, foi pego de surpresa e não tinha como se defender diante das forças imperiais. Os lanceiros eram inicialmente compostos por cerca de 400 homens, sendo a maioria negros escravizados que combateram sob a promessa de alforria ao final do conflito. O massacre impediu a liberdade.

O busto de autoria desconhecida não revela o que Duque de Caxias pensava sobre os não brancos. Em 1846, um ano após o fim da guerra, Caxias atribuiu os poucos crimes cometidos na província à “última classe da sociedade, desgraçada de todas as luzes da religião e da civilização e por causas tão animais, e mesquinhas, como a inteligência dos bugres selvagens, e dos escravos africanos que as cometem”. Segundo escreve Bakos, “tais palavras são mais do que suficientes para deixar claro que a mentalidade escravista da classe dirigente brasileira e sul-rio-grandense não sofrera qualquer modificação ao longo de dez anos de conflito”.

A estátua do Duque de Caxias – que ainda nomeia a rua onde está localizada a sede do governo estadual – foi criada em 1971, junto com outras esculturas patrocinadas ou inspiradas pela ditadura militar. A maior de todas fica no Parque Moinhos de Vento, junto à Rua 24 de outubro. É o titã de aço, cobre e ferro de 50 toneladas e 28 metros de altura em homenagem ao ditador Humberto de Alencar Castelo Branco, articulador do golpe de 1964 e primeiro presidente do regime. O monumento foi inaugurado em 1979, obra do escultor Carlos Tenius financiada pela Federação das Indústrias, a Federação da Agricultura e a Federação das Associações Comerciais do Rio Grande do Sul. Curiosamente, o gigante metálico foi chamado na época de “monstrengo” – um dos vários apelidos maldosos que o próprio Castelo Branco recebeu dos colegas de infância no Colégio Militar de Porto Alegre, onde ingressou em 1912.

Pelo fato de ser uma escultura abstrata, a identidade do homenageado não é imediatamente revelada aos que passam pelo local. A situação é semelhante à da lança metálica em tributo a Zumbi dos Palmares, líder negro que combateu os colonos portugueses na segunda metade do século 17. De autoria da escultora Cláudia Stern, a obra foi inaugurada em 1997. O quilombola é uma das figuras mais destacadas pelos movimentos negros, convertido em símbolo da luta antirracista. 

Porém, à diferença do colosso da ditadura, o monumento de Zumbi não tem um lugar de destaque no cenário urbano. A escultura é ofuscada por um fundo de prédios altos, em um dos cantos do Largo dos Açorianos, na avenida Loureiro da Silva, onde quase não há fluxo de pedestres. Além disso, quem rouba os holofotes do local é o Monumento dos Açorianos, feito por Tenius e inaugurado em 1974.

Busto de João Cândido no Parque Marinha do Brasil. Foto: Juan Ortiz

Em Porto Alegre, uma das poucas estátuas com rosto de uma pessoa negra é a de João Cândido, no Parque Marinha do Brasil. O “almirante negro” ficou famoso em 1910 por se rebelar contra os castigos físicos que recebiam os marujos, quase todos negros, no episódio conhecido como a Revolta da Chibata. Para apaziguar o conflito no Rio de Janeiro, o presidente Hermes da Fonseca prometeu o fim das chibatadas e anistia aos insurgentes. Mas o governo descumpriu o pacto e expulsou os marinheiros que participaram da revolta. Cândido ficou preso por um ano em uma masmorra onde vários de seus colegas morreram sufocados, depois transferido para um hospital psiquiátrico e, por fim, absolvido em 1912. Mas a marca em sua história havia sido suficiente para afundar sua carreira militar e sua vida pessoal. Morreu de câncer e pobre em 1969.

“Fui um dos que lutou para colocar o busto lá. A obra original do Vasco Prado está na sede da mais antiga sociedade negra do Brasil, o Floresta Aurora”, conta o advogado Antônio Côrtes, um dos principais líderes do movimento negro gaúcho. A escultura foi inaugurada em 2001 e restaurada em 2008, depois de ter sido danificada. 

Além da Lança de Zumbi e do monumento de João Cândido, outras estátuas na capital gaúcha que homenageiam a população negra são os dois bustos do cantor e compositor Lupicínio Rodrigues, expoente da MPB e autor do hino do Grêmio, e as obras do Museu do Percurso Negro, como o Tambor, na praça Brigadeiro Sampaio. Mas ainda são insuficientes para contrabalançar a estatuária majoritariamente branca. “Sou a favor de uma retomada crítica dos monumentos. O Museu do Percurso de Negro precisa de mais visibilidade. Falta um memorial crítico da escravização”, aponta Côrtes.

Estátua da cantora Elis Regina, junto à Usina do Gasômetro. Foto: Juan Ortiz

Não há qualquer monumento específico para mulheres negras – apenas o monumento à orixá Oxum, divindade das águas doces nas religiões de matriz iorubá. A estátua está localizada em Ipanema, junto à orla do Guaíba. Além disso, a única indígena retratada no estatuário da cidade é a lendária Obirici, numa fonte escondida embaixo do viaduto da Plínio Brasil Milano com a Assis Brasil. A ausência dessas figuras não se dá por falta de registros históricos. 

“O Largo da Quitanda, assim como outros locais da cidade, foi marcado pela presença física e simbólica de mulheres africanas e crioulas (termo usado para se referir às pessoas descendentes diretas de africanos, já nascidas no Brasil), nos séculos 18 e 19. Reconhecer esse território implica em afirmar a noção de pertença e a posição delas como sujeitos. No entanto, não vemos nenhum resquício que aponte para a tentativa de preservação da memória dessas mulheres naquele local”, observa a historiadora Izis Abreu. 

Para Abreu, há um processo de embranquecimento da história. “A glorificação exclusiva da branquitude, ou seja, daqueles considerados superiores e, por isso, dignos de representação, em detrimento da invisibilidade e exclusão da parcela considerada inferior, chama-se ideologia do embranquecimento”, defende. “Acho totalmente legítima a retirada de estátuas que glorificam a opressão”. 

Não só as mulheres negras foram esquecidas na estatuária porto-alegrense. Se são raros os monumentos a figuras femininas em geral, mais escassos ainda são os de mulheres sozinhas – a menos que sejam anônimas, como a Samaritana da Praça da Alfândega. A guerreira Anita Garibaldi e a artista Lydia Moschetti recebem, respectivamente, uma estátua e um marco, mas acompanhadas dos maridos. A única mulher de carne e osso que teve uma escultura figurativa dedicada só para ela foi a cantora Elis Regina. De autoria do artista plástico José Passos, a obra foi inaugurada em 2009 junto à Usina do Gasômetro. 

Para além da dimensão social da questão, outro ponto é apontado pelo historiador José Francisco Alves: “o problema aqui é o povo inculto e muitos ladrões de monumentos, uma praga terrível”, diz ele, responsável por fazer o inventário original de todos os monumentos públicos da cidade, em um livro publicado em 2004. De fato, dos 130 monumentos a pessoas listados pela Secretaria Municipal de Cultura, mais de 40 estão deterioradas ou tiveram alguma parte removida. “Muitos monumentos foram roubados, perdidos, mutilados, pichados, abandonados. Nos últimos 20 anos, perdemos quase tudo”, lamenta Alves. Uma cidade acostumada a agredir suas estátuas – de personagens nefastos ou não – talvez não esteja mesmo pronta para discutir a possibilidade de derrubá-las. 

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