Crônica | Parêntese

Isolada em Amsterdã – ou em qualquer lugar

Change Size Text
Isolada em Amsterdã – ou em qualquer lugar

25.01.2021, Amsterdã, Holanda. 

Estar trancada em casa num país estrangeiro durante uma crise mundial é indiferente e, ao mesmo tempo, confuso. Turistas de supermercado é o que somos, e ninguém entende por que estamos longe de casa. Preparo um café e me conecto no aplicativo Zoom, que hoje dispensa explicação. O ambiente virtual é o único ambiente de trabalho que eu e outros milhões podemos frequentar atualmente. 

Me conecto na sessão de café da manhã que organizo quinzenalmente, e voluntariamente, com criativos do Sul de Londres. Hoje quem apresenta o seu portfólio e conta um pouco da sua trajetória criativa é a Charlotte, ilustradora e ‘designer’ francesa expatriada vivendo em Londres há alguns anos. Ela viajou em março para o Japão e depois disso ficou bem difícil conseguir voltar para a Inglaterra. O Japão vive hoje em estado de emergência devido à pandemia e aos Jogos Olímpicos que se aproximam. 

Nathan, artista inglês e funcionário de um teatro fechado desde o ano passado, está no mesmo encontro e conta sobre o seu pai, que foi visitar amigos na Colômbia em março de 2020 e nunca conseguiu voltar para casa. No Natal ele tentou e chegou no meio do caminho, mas precisou dar volta. Não deixaram ele prosseguir. Terminada a nossa sessão matinal, a sensação é de acolhimento, afinal, estamos vivendo a mesma situação, e os agrupamentos online e momentos de troca ajudam a combater a solidão. Conforme a minha frase mais dita em 2019 – a pandemia não é privilégio de ninguém.

Eu mesma, isolada em Amsterdã desde o início de dezembro, posso afirmar que caminhadas e pedaladas diárias pelos canais são idílicas, porém a vontade de ir para qualquer outro lugar vem e vai constantemente. O fato de sermos obrigados a ficar aguça o desejo por sair, sem dúvidas. A única saída quando não se pode controlar a situação é se adaptar. 

Toda a vez que falo com a família no Brasil me perguntam se é verdade que estamos em isolamento aqui. Eu sinceramente fico preocupada. Por que não seria? Vamos fazer aniversário de um ano por aqui (desde março de 2020 a Europa e o UK [Reino Unido] passaram a aceitar a gravidade dos fatos) e ainda não deu pra entender que nenhum sistema de saúde no mundo estava preparado para os cuidados que os pacientes mais graves necessitam? É assim simples. É isso. Você quer que um médico ao invés de poder salvar ou tratar um paciente precise escolher quem vive e quem morre? 

Infelizmente essa é a realidade de vários países, e a crise mundial parece começar a mostrar outras facetas por aqui. Os holandeses inicialmente não aceitavam que o governo determinasse nem mesmo o uso da máscara. Pessoas venceram na justiça as suas reivindicações de viajar sem fazer o teste, por exemplo. O povo entende que o governo não pode obrigar a população a nada. Porém, algo mudou. A situação na Holanda não vai ser flexibilizada. No dia 23 de janeiro iniciamos o esquema de curfew: estamos proibidos de sair na rua após as 21h, e o policiamento está reforçado. Desde a Segunda Guerra Mundial esse esquema é colocado em prática por aqui pela primeira vez. O lado obscuro do isolamento, das regras quebradas em nome de jantares com os amigos, tem os seus dias contados. Ainda há pessoas trabalhando em escritórios, porém nesta próxima semana novas medidas serão adotadas e a proibição integral entrará em vigor. 

A Inglaterra proibiu voos de Portugal e do Brasil, e a Holanda aumentou as restrições para passageiros vindos da Inglaterra. 

O meu próximo compromisso do dia foi em silêncio, na frente da tela do computador. Os desafios diários envolvem a facilitação e colaboração em rede. Como crescer a presença digital de pessoas, projetos e empresas que precisam se adaptar, mudar. Os clientes italianos se perguntam como irão recuperar o seu diferencial competitivo: o carisma transmitido pela gesticulação e calor humano. Recém-graduados buscam entender como irão aprender se os seus estágios agora acontecem em casa. Pessoas se mudam de país em função de um novo trabalho, mas trabalham em casa, sem ter nenhuma previsão de quando conhecerão os seus locais de trabalho. A burocracia dos sistemas de taxação não consegue dar conta dos anseios por deslocamento dos trabalhadores europeus. Muitos tentaram voltar a morar com as suas famílias e logo mudaram de ideia. Já é tendência, em agregadores de conteúdo, matérias sobre pessoas que buscaram realocação durante o primeiro isolamento e se arrependeram. Corporações tradicionais tentam controlar os seus funcionários com intermináveis reuniões onde ninguém mais quer ligar a câmera, nem mesmo prestar atenção no que é dito. 

A educação vê prenúncios de que as universidades têm os seus dias contados, enquanto pessoas acumulam nas suas caixas de entrada cursos comprados, nunca cursados. As habilidades antes desprezadas, ignoradas ou até mesmo tratadas com menor valor hoje são as únicas que podem amenizar o isolamento: socializar, conversar, almoçar junto do colega que faz o que chamávamos ‘conversas menores’ (small talk) nunca foi tão desejado e necessário. Uma amiga marroquina que trabalha num banco e trata com planilhas e números o dia todo desabafa: eu sinto falta de gente.

Ao meio-dia a ida ao supermercado se tornou rotina porque é o único lugar onde se pode ir. No mapa do Google muitos locais da cidade estão permanentemente fechados. A previsão é ruim e acredito que vamos ficar em isolamento até a Páscoa enquanto o número de mortes e a iminência da nova variação, especialmente na Inglaterra, não diminuírem. 

Mais tarde, no final do dia, facilito pelo Zoom uma aula com um grupo de pessoas morando em Berlim. Entre os temas do dia estava presente a ansiedade – ansiedade ecológica de jovens que querem ajudar a salvar o planeta e não sabem como; ansiedade política dos angustiados pela posse de Biden e as dúvidas sobre o seu caráter e passado político; ansiedade pelo fim do isolamento, que também tem regras rígidas na Alemanha; ansiedade digital pelo número de horas na frente do computador e desconhecimento sobre como interagir e socializar digitalmente sem ficar preso nas possibilidades oferecidas pelo único dono do jogo todo – Facebook, WhatsApp, Instagram. Democracia digital em pauta. 

Na Holanda faz frio, mas raramente neva. Há uma semana, algumas horas de neve levaram uma parte da população – especialmente crianças, cachorros e os seus cuidadores – a sair pelas ruas e esquecer um pouco o que estamos vivendo. No parque, um casal fantasiado. Ela, com roupa de unicórnio, trazia uma caixa de som e dançava ‘I feel Good’, de James Brown, na neve, convidando os passantes para uma guerra de gelo. No cenário branco e efêmero que derreteria horas depois com a temperatura elevada de 5 graus, a distração necessária para entender que vai passar e por enquanto só podemos contar com a colaboração coletiva, já que, como dito anteriormente – a pandemia não é privilégio de ninguém. 

O meu isolamento no rigor do inverno holandês não é pior que o isolamento da Charlotte no Japão, ou do pai do Nathan que há um ano está preso na Colômbia, ou de quem tem familiares nos grupos de risco, ou de quem tem que trabalhar e cuidar dos filhos em casa, ou de quem perdeu o emprego e está em dificuldades financeiras, ou de quem está na linha de frente cuidando dos pacientes e vivenciando as mortes que nós não enxergamos. O seu isolamento não é pior que o isolamento de todas as outras pessoas que vivem hoje no planeta Terra. Comemoramos a virada do ano, mas parece que estamos vivendo o lado B de 2020. 

A vacinação começou e a previsão é de que entre abril e setembro as coisas melhorem por aqui. Certamente o que temos para aprender é sobre o impacto das nossas ações na vida das outras pessoas. Fica muito difícil, quando olhamos para a nossa situação individual, imaginar que estamos prejudicando alguém ao não respeitarmos as regras do isolamento quando elas se fazem necessárias. Enquanto pensarmos que a vida dos que estão em maior vulnerabilidade é menos importante do que a nossa própria – como se fôssemos imunes nós mesmos –, não sei se teremos aprendido alguma lição com esse momento histórico.  


Ana Bender é Mestre em Publishing pela University of Arts London (2018) e Design Estratégico pela Unisinos (2010), onde atuou por 6 anos como pesquisadora, coordenadora do Bacharelado em Moda e professora de Design Estratégico e Inovação em especializações – também na Faculdade Senac. Nascida em Três Passos, RS, viveu em Porto Alegre desde a adolescência e atualmente reside na Inglaterra, atuando como freelancer em pesquisa e gestão de projetos na Indústria Criativa. Está em vias de publicar um método para ideação e planejamento de conteúdo pela editora holandesa BIS Publishers.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.