Crônica | Parêntese

José Falero: Amsterdã

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José Falero: Amsterdã Amsterdã Tem coisa na vida que a gente só dá conta de entender depois que gira uma chavezinha dentro da gente, como diz a Dalva. Mas também tem coisa que a gente parece que já nasce sabendo. Claro, pode não ser uma consciência plena, mas se manifesta dentro da gente, de algum jeito. Pode ser que a gente não consiga nomear, mas já era um incômodo antes mesmo de ganhar nome. Lembro da minha infância. Final dos anos 80, início dos anos 90. A casa da minha avó materna era uma das poucas da rua feitas de alvenaria: imensa bondade do patrãozinho dela. Ele tinha pedido, ainda antes de eu nascer, que a minha avó dissesse como queria a sua casa, porque ele mandaria construí-la tal qual o seu desejo. E assim se fez: um quarto, uma cozinha e um banheiro, tudo feito de alvenaria. Eu fico pensando nesse tipo de configuração residencial. A coisa mais comum em casa de pobre é não existir uma sala, ou a sala ser ao mesmo tempo cozinha. É como se não precisássemos de um espaço projetado unicamente para podermos apenas estar, sentar, pensar, fazer nada. A própria estrutura da nossa casa sugere o que podemos e o que não podemos fazer. Há o quarto, claro, pois temos o direito de dormir, e imagino que só temos esse direito porque não podemos evitar de dormir; há o banheiro, claro, pois temos o direito de cagar e mijar, e imagino que só temos esse direito porque não podemos evitar de cagar e mijar; e há a cozinha, claro, pois temos o direito de trabalhar no preparo da nossa própria comida, e imagino que só temos esse direito porque não podemos evitar de comer. Mas o ócio, a reflexão, o estar à-toa, tudo isso parece não nos caber. Uma sala é um cômodo perfeitamente dispensável em nossa casa. E a casa da minha avó, fruto da imensa bondade do patrãozinho dela, possuía ainda uma outra particularidade: o banheiro havia sido construído em anexo, do lado de fora, de modo que era preciso passar pela rua para ir até ele. Claro, porque tudo bem cagar e mijar, mas ter um banheiro dentro de casa já seria uma comodidade exagerada. Lembro que esse banheiro da casa da minha avó era o único, para todos os que moravam no pátio. Quatro famílias, cerca de dezesseis pessoas, todas compartilhando aquele mesmo banheiro. A essa altura da vida, eu nem sequer fazia ideia da existência de sabonete ou shampoo. O que usávamos no banho, tanto para lavar a cabeça como para lavar o resto do corpo, era uma barra de sabão grosso, desses que não se usa mais nem para lavar louça. Uma barra de sabão grosso. Uma só. A mesma. Para dezesseis pessoas. E isso nos dizia algo. Isso sempre nos disse algo. Baixinho, bem baixinho, mas sempre nos disse. Esfregar aquele sabão fedorento e seboso em nós mesmos sussurrava em nossos ouvidos uma história sobre injustiças. Lembro que os […]

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Amsterdã Tem coisa na vida que a gente só dá conta de entender depois que gira uma chavezinha dentro da gente, como diz a Dalva. Mas também tem coisa que a gente parece que já nasce sabendo. Claro, pode não ser uma consciência plena, mas se manifesta dentro da gente, de algum jeito. Pode ser que a gente não consiga nomear, mas já era um incômodo antes mesmo de ganhar nome. Lembro da minha infância. Final dos anos 80, início dos anos 90. A casa da minha avó materna era uma das poucas da rua feitas de alvenaria: imensa bondade do patrãozinho dela. Ele tinha pedido, ainda antes de eu nascer, que a minha avó dissesse como queria a sua casa, porque ele mandaria construí-la tal qual o seu desejo. E assim se fez: um quarto, uma cozinha e um banheiro, tudo feito de alvenaria. Eu fico pensando nesse tipo de configuração residencial. A coisa mais comum em casa de pobre é não existir uma sala, ou a sala ser ao mesmo tempo cozinha. É como se não precisássemos de um espaço projetado unicamente para podermos apenas estar, sentar, pensar, fazer nada. A própria estrutura da nossa casa sugere o que podemos e o que não podemos fazer. Há o quarto, claro, pois temos o direito de dormir, e imagino que só temos esse direito porque não podemos evitar de dormir; há o banheiro, claro, pois temos o direito de cagar e mijar, e imagino que só temos esse direito porque não podemos evitar de cagar e mijar; e há a cozinha, claro, pois temos o direito de trabalhar no preparo da nossa própria comida, e imagino que só temos esse direito porque não podemos evitar de comer. Mas o ócio, a reflexão, o estar à-toa, tudo isso parece não nos caber. Uma sala é um cômodo perfeitamente dispensável em nossa casa. E a casa da minha avó, fruto da imensa bondade do patrãozinho dela, possuía ainda uma outra particularidade: o banheiro havia sido construído em anexo, do lado de fora, de modo que era preciso passar pela rua para ir até ele. Claro, porque tudo bem cagar e mijar, mas ter um banheiro dentro de casa já seria uma comodidade exagerada. Lembro que esse banheiro da casa da minha avó era o único, para todos os que moravam no pátio. Quatro famílias, cerca de dezesseis pessoas, todas compartilhando aquele mesmo banheiro. A essa altura da vida, eu nem sequer fazia ideia da existência de sabonete ou shampoo. O que usávamos no banho, tanto para lavar a cabeça como para lavar o resto do corpo, era uma barra de sabão grosso, desses que não se usa mais nem para lavar louça. Uma barra de sabão grosso. Uma só. A mesma. Para dezesseis pessoas. E isso nos dizia algo. Isso sempre nos disse algo. Baixinho, bem baixinho, mas sempre nos disse. Esfregar aquele sabão fedorento e seboso em nós mesmos sussurrava em nossos ouvidos uma história sobre injustiças. Lembro que os […]

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